Há
cem anos a Terra era acometida por um flagelo que parecia nunca acabar, quiçá
prenúncio do fim dos tempos. Era o quarto ano de uma guerra como nunca se vira
até então. Tempo também de revolução e de crenças místicas. Então, dos
escombros e das trincheiras enlameadas da Primeira Guerra, surgiu uma praga só
comparável à peste negra medieval.
A
gripe de 1918 foi uma pandemia que se espalhou por quase toda parte do mundo,
dona de uma virulência incomum, produzida por uma cepa do hoje conhecido vírus
Influenza tipo A, do subtipo H1N1.
Tendo
contaminado mais de 500 milhões de pessoas (ou quase 27% da população mundial
na época) e fazendo até 100 milhões de mortos (perto de 5% da população
global), foi uma das pandemias mais letais da história da humanidade.
Apesar
do nome “gripe espanhola”, ela não começou na Espanha. A pandemia tomou essa
denominação porque a Espanha, que não entrara na guerra, não censurava notícias
e a imprensa divulgava “o terror causado pelos milhões de infectados ,pela
‘fiebre de los tres días’” que atingiu até mesmo seu rei Espanha. As demais
nações bloqueavam informações que fossem estrategicamente desfavoráveis e
pudessem atingir o ânimo das próprias tropas.
Na
verdade, a doença foi observada pela primeira vez nos Estados Unidos, especificamente
no Kansas e em Nova Iorque, em março de 1917. Já em abril de 1918, contaminara
tropas francesas, britânicas e americanas, estacionadas nos portos da França.
Em maio, a doença atingira a Grécia, Portugal e Espanha; logo após, Dinamarca,
Noruega, Países Baixos e Suécia.
Cientistas
ofereceram ao longo dos anos várias possíveis explicações para a alta taxa de
letalidade da “gripe espanhola”. Algumas destas análises sugerem que, se bem a
virose fosse muito mais agressiva que as
influenzas que existiram no passado, a desnutrição, os acampamentos médicos de guerra e hospitais superlotados,
além da falta de higiene básica nas cidades, ajudaram a promover uma super
infestação de microrganismos em organismos debilitados.
Particularidade
surpreendente está no fato de que as principais vítimas não eram crianças e
idosos, normalmente mais vulneráveis. Jovens adultos, saudáveis até então,
foram os mais afetados.
Quanto
às origens da cepa viral elas seguem desconhecidas, mas sabe-se ser a mesma
comum entre alguns mamíferos e aves, tanto selvagens como domésticas.
A
gripe, posteriormente chamada de Influenza, percorreu todos os continentes em
três ondas distintas. A primeira, nos Estados Unidos onde surgiu e levou à
morte no primeiro semestre de 1917, aproximadamente dez mil pessoas. A segunda
onda foi muito mais forte e ocorreu quando, depois de percorrer os continentes,
a “gripe espanhola” retornou aos Estados Unidos em agosto matando milhões, com
uma taxa de letalidade de 6 a 8%. A terceira onda foi mais moderada e aconteceu
no início de 1919, de fevereiro a maio daquele ano.
Décadas
depois da epidemia, foi descoberta a carta de um médico americano com relato
dramático sobre os sintomas. O texto, publicado no “British Medical Journal”,
diz: "Desenvolvem rapidamente o tipo mais viscoso de pneumonia jamais
visto. Duas horas após (os pacientes) darem entrada, têm manchas
castanho-avermelhadas nas maçãs do rosto e algumas horas mais tarde pode-se
começar a ver a cianose estendendo-se por toda a face a partir das orelhas, até
que se torna difícil distinguir o homem negro do branco. A morte chega em
poucas horas e acontece simplesmente como uma falta de ar, até que morrem
sufocados. É horrível."
No
Brasil os vírus foram trazidos por contágio no norte da África, numa colônia
francesa, em setembro de 1918. Provavelmente Recife foi o primeiro porto
brasileiro a ser infectado com a chegada do navio da marinha brasileira, o
Demerara, que depois seguiu para Salvador e Rio de Janeiro e, em novembro de
1918, aportou na Amazônia. Logo, nossos portos foram os principais focos de
disseminação da doença.
Num
primeiro momento, houve dúvidas das autoridades e da imprensa sobre se a doença
realmente estava no Brasil. A estrutura de saúde pública era precária e a
vigilância sanitária quase inexistia. Logo após, entretanto, realidade se
impôs.
A
pandemia chegou a matar mais de 35 mil pessoas. Segundo o Instituto Butantã,
foram 12.700 no Rio de Janeiro, 6.000 em São Paulo, 1.316 em Porto Alegre,
1.250 em Recife, 386 em Salvador e quase 900 em Manaus. As autoridades de
saúde, entretanto, estimam que o número de mortos possa ter sido bem maior. Na
realidade, muitas pessoas morreram sem obituário ou sequer entraram para as
estatísticas.
No
Rio de Janeiro, a doença acometeu o Presidente da República reeleito, Rodrigues
Alves, que faleceu antes da posse, em 1919. Além dele, também perderam a vida
outros insignes brasileiros como Anália Franco, importante educadora e
Eurípedes Barsanulfo, educador benemérito e médium fundador do Espiritismo no
país.
A
periculosidade da infecção levou à imposição de rigorosas medidas sanitárias.
Foram fechadas escolas, estabelecimentos comerciais, cinemas, cabarés, bares;
festas populares e partidas esportivas foram proibidas a ferro e fogo, tudo
isso para evitar a aglomeração de pessoas. Por mais de um ano a vida social
limitou-se ao máximo.
No
clima de horror e desespero gerado pela pandemia, diversas explicações rondavam
o imaginário social. Havia aqueles que pensavam que o apocalipse estava por
vir. A guerra e a peste seriam, então, a punição divina por pecados cometidos,
pela devassidão e pelo materialismo. Outros debitavam à passagem de cometas
pelo orbe. Ainda havia aqueles que creditavam a contaminação aos inimigos
bélicos.
"Quem
não morreu na Espanhola?", registou Nelson Rodrigues, recém-chegado ao Rio
de Janeiro, em suas “Memórias”. O dramaturgo produziu um dos mais
impressionantes registros de uma doença na literatura brasileira.
"A
gripe foi justamente a morte sem velório. Morria-se em massa. E foi de repente.
De um dia para o outro, todo mundo começou a morrer".
"Os
primeiros ainda foram chorados, velados e floridos. Mas quando a cidade sentiu
que era mesmo a peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório
seria um luxo insuportável para os outros defuntos... Durante toda a Espanhola,
a cidade viveu à sombra dos mortos sem caixão".
As
formas de morrer conheceram novos parâmetros. "Morrer na cama era um
privilégio abusivo e aristocrático. O sujeito morria nos lugares mais
impróprios, insuspeitados: na varanda, na janela, na calçada, na esquina, no
botequim. Normalmente, o agonizante põe-se a imaginar a reação dos parentes,
amigos e desafetos. Na Espanhola não havia reação nenhuma. Muitos caíam rente
ao meio-fio, com a cara enfiada no ralo. E ficavam lá, estendidos, não como
mortos, mas como bêbados. Ninguém os chorava ninguém. Nem um vira-lata vinha
lambê-los. Era como se o cadáver não tivesse nem mãe, nem pai, nem amigo, nem
vizinho, nem ao menos inimigo".
A
forma de lidar com os corpos era igualmente aterradora. "Vinha o caminhão
de limpeza pública, e ia recolhendo e empilhando os defuntos. Mas nem só os
mortos eram assim apanhados no caminho. Muitos ainda viviam. Mas nem família,
nem coveiros, ninguém tinha paciência. Ia alguém para o portão gritar para a
carroça de lixo: 'Aqui tem um! Aqui tem um! '. E, então, a carroça, ou o
caminhão, parava. O cadáver era atirado em cima dos outros. Ninguém chorando
ninguém".
Se
os próprios familiares não mais tinham ânimo para rituais, os carregadores muito
menos. Nem para esperar o desfecho da morte. "E o homem da carroça não
tinha melindres, nem pudores. Levava doentes ainda estrebuchando. No cemitério,
tudo era possível. Os coveiros acabavam de matar, a pau, a picareta, os
agonizantes. Nada de túmulos exclusivos. Todo mundo era despejado em buracos,
crateras hediondas. Por vezes, a vala era tão superficial que, de repente, um
pé florescia na terra, ou emergia uma mão cheia de bichos".
"De
repente, passou a gripe".
Mas
com o fim da epidemia as coisas não mais foram as mesmas. "A peste deixara
nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro
tédio da morte. Lembro-me de um vizinho perguntando: 'Quem não morreu na
Espanhola?'. E ninguém percebeu que uma cidade morria, que o Rio machadiano
estava entre os finados. Uma outra cidade ia nascer. Logo depois explodiu o
Carnaval. E foi um desabamento de usos costumes, valores, pudores".
A
pandemia passou e, no Brasil, o Carnaval de 1920 representou um desafogo e a
euforia geral tomou conta da população. Em 1938, referindo-se a esse período,
Carmem Miranda gravou "E o Mundo Não se Acabou". A música, composta
por Assis Valente, expressa a atmosfera apocalíptica da aparição dos cometas no
contexto pandêmico:
“Anunciaram
e garantiram que o mundo ia se acabar,
Por
causa disso a minha gente lá de casa começou a rezar,
E
até disseram que o sol ia nascer antes da madrugada,
Por
causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada...
Acreditei
nessa conversa mole
Pensei
que o mundo ia se acabar
E
fui tratando de me despedir
E
sem demora fui tratando de aproveitar
Beijei
na boca de quem não devia
Peguei
na mão de quem não conhecia
Dancei
um samba em traje de maiô
E
o tal do mundo não se acabou”...
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