O texto afirma que a nova normativa representa “um passo
decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz
se confunde com a do investigador/acusador, numa crítica indireta ao ministro
Sergio Moro
Por Rafa Santos, no Conjur – Cinquenta juízes e
desembargadores federais assinaram uma carta aberta em apoio a criação do “juiz
das garantias”.
O texto afirma que a nova normativa representa “um passo
decisivo para a superação do processo penal inquisitivo, onde a figura do juiz
se confunde com a do investigador/acusador, indo ao encontro do modelo
acusatório consagrado na Constituição da República (artigos 129, I e 144)”.
Assinam a carta magistrados como os desembargadores
federais Ney Bello (TRF-1), Roger Raupp Rios (TRF-4) e Celso Kipper (TRF-4).
Leia a carta na íntegra:
A Lei n.
13.964/19 modificou o Código de Processo Penal para, dentre outros pontos,
introduzir no sistema de justiça criminal brasileiro o “juiz das garantias”,
cujas atribuições consistem em controlar a “legalidade da investigação
criminal” e garantir os “direitos individuais cuja franquia tenha sido
reservada à autorização prévia do Poder Judiciário” (art. 3º-B, CPP).
Sem entrar no
mérito das demais modificações operadas na legislação penal e processual penal
brasileira pela Lei n. 13.964/19, nós, juízas e juízes federais abaixo
identificados, manifestamos nosso apoio à adoção, no Brasil, do instituto do
“juiz de garantias”. Trata-se de figura indispensável à densificação da
estrutura acusatória de processo penal (imparcialidade do juiz e separação das
funções dos sujeitos processuais) e à concretização de direitos humanos.
Ao dispor sobre
o “juiz de garantias”, a nova lei estabelece uma hipótese de divisão da
competência funcional do juízo e de impedimento decorrente dessa divisão: a
competência do “juiz das garantias” finda ao ser recebida a denúncia ou queixa
(art. 3º-A, CPP), de modo que, se uma/um magistrada/o atuar na fase preliminar
de investigação, não terá competência funcional para jurisdicionar no processo,
porquanto objetivamente impedida/o de instruir e julgar as ações penais dela
originada, sob pena de nulidade de suas decisões[1] (art. 3º-D, CPP).
Eventuais
dificuldades logísticas decorrentes do afastamento do juiz das garantias/juiz da
instrução e julgamento da sede do juízo onde tramita o inquérito/ação penal
podem ser resolvidas com regras de distribuição dos feitos entre juízas/es com
competência criminal a serem editadas pelos tribunais e com recursos
tecnológicos do processo eletrônico, que tornam cada vez mais realizável a
ideia de “núcleos regionais das garantias”[2] criados a partir de critérios
prévios, impessoais e objetivos. Mesmo em uma vara única em que atuem dois
juízes, por exemplo, basta determinar que, no processo em que um deles atue
como juiz de garantias, o outro jurisdicione como juiz de processo e vice
versa. Não há órgão novo. Não há nova instância. Há divisão funcional de
competência.
Afigura-se a
novidade como um passo decisivo para a superação do processo penal inquisitivo,
onde a figura do juiz se confunde com a do investigador/acusador, indo ao
encontro do modelo acusatório consagrado na Constituição da República (arts.
129, I e 144). Com o “juiz de garantias”, aprofundamos a estrutura acusatória
do sistema de justiça criminal, impedindo a indevida e indesejável cumulação
das funções de garantia e as de julgamento, pois a/o juiz/juíza que decide
sobre (ausência de) culpa não participa da investigação criminal, não produz
prova por iniciativa própria e tampouco fundamenta condenação com elementos de
convicção obtidos sem contraditório judicial. Com o novo regramento, cabe à
juíza/ao juiz de julgamento conhecer apenas os atos de prova produzidos em
contraditório, e não mais os atos de investigação conduzidos pela/o juíza/juiz
das garantias, que permanecem acautelados em juízo distinto, sempre com acesso
às partes (art. 3º-B, §§ 3º e 4º, CPP). Na figura do “juiz das garantias”,
cria-se “circunstância que objetivamente afastará o magistrado da
fantasmagórica suspeita de acusador/investigador, tão rechaçada pelos
instrumentos internacionais de direitos humanos”[3].
Além disso, a
nova divisão funcional de competências atua no sentido da preservação da
imparcialidade do juiz de julgamento, aprimoramento há tempos exigido não só
por nossa Constituição da República desde 1988 como, também, pelas disposições
normativas e jurisprudenciais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos,
razão pela qual grande parte dos países da América Latina já introduziram a
figura do “juiz das garantias” em seus sistemas de justiça criminal.
A criação do
“juiz de garantias” representa a qualificação da garantia do juiz imparcial tal
como compreendida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao interpretar
o artigo 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a exemplo dos casos
Castillo Peruzzi, Durand e Ugarte, Cantoral Benavides, todos versus Peru, bem
como no Caso Tibi versus Equador, nos quais a Corte concluiu ser imprescindível
a “separação de funções entre o juiz da fase da investigação e o do processo,
sob pena de violar-se a imparcialidade do julgador.”[4]
No caso Castillo
Peruzzi versus Peru, a CorteIDH concluiu ter havido violação à garantia do juiz
imparcial ao detectar “coincidência entre as funções de luta antiterrorista das
Forças Armadas e o desempenho jurisdicional” por parte dos “tribunais
militares, que seriam ao mesmo tempo parte e juiz nos processos. Para a
CorteIDH, se o mesmo juiz que instrui a investigação exerce as funções de
julgamento, a garantia do jurisdicionado a um juiz imparcial estará violada.”
No caso Durand e Ugarte, a CorteIDH entendeu que “a justiça militar peruana
tanto foi a encarregada pela investigação quanto pelo processamento dos
militares envolvidos”, havendo, portanto, “grave violação à garantia processual
do juiz imparcial.” Por fim, no caso Cantoral Benavides versus Peru, a CorteIDH
manteve o entendimento firmado nos casos anteriores, concluindo que o acúmulo
das funções de conduzir investigações e instruir/julgar processos penais
aniquila a garantia de um juiz imparcial, o que se apresenta “totalmente
dissonante com o sistema acusatório, para o qual a garantia da imparcialidade é
alicerce.”[5]
Defendemos que a
melhor justiça criminal será prestada por uma magistratura que recusa a
renitência persecutória de Javert e também o arbitrário aprisionamento das
diferenças pelo Alienista. Repudiamos o papel de juiz que se mostra “de braços
dados com a acusação, em uma cruzada pelo clamor público e pelos valores morais
e absorvendo todo o discurso moralista do senso comum”. Trata-se de um erro que
se torna “maior ainda quando Deus invade o Estado laico e conclama a todos para
a cruzada metafísica contra um inimigo etéreo.” A ideia de um juiz combatente
“nos faz abandonar a construção moderna de um Poder Judiciário independente,
imparcial e afirmativo dos direitos fundamentais.”[6]
Juramos cumprir
e fazer cumprir a Constituição, garantindo as liberdades públicas e
concretizando direitos mesmo que – ou especialmente quando – as maiorias de
ocasião, sejam as das ruas ou as dos gabinetes, possam com seu ódio aniquilar
as minorias políticas. Não seremos nós os Porteiros da Lei.
Assinam o documento:
Ana Inés Algorta Latorre, Juíza Federal, SJRS/ TRF4
Antônio Lúcio Túlio de Oliveira Barbosa, Juiz Federal,
SJBA/TRF1
Antônio José de Carvalho Araújo, Juiz Federal, SJAL/TRF5
Augustino Lima Chaves, SJCE/TRF5
Célia Regina Ody Bernardes, Juíza Federal, SSJ Teixeira de
Freitas/TRF1
Celso Kipper, Desembargador Federal/TRF4
Claudia Maria Dadico, Juíza Federal, SJSC/TRF4
Cláudio Henrique Fonseca de Pina, Juiz Federal, SJPA/TRF1
David Wilson de Abreu Pardo, Juiz Federal, SJDF/TRF1
Diego Carmo de Sousa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
Edevaldo Medeiros, Juiz Federal, SJSP/TRF3.
Edvaldo Mendes da Silva, Juiz Federal, SJSC/TRF4
Eduardo Pereira da Silva, Juiz Federal, SJGO/TRF1
Fábio Fiorenza, Juiz Federal, SJMT/TRF1
Felipe Mota Pimentel de Oliveira, Juiz Federal, SJPE/TRF5
Filipe Aquino Pessôa de Oliveira, Juiz Federal, SSJ
Guanambi/TRF1
Flávio Antônio da Cruz, Juiz Federal, SJPR/TRF4
Francisco Donizete Gomes, Juiz Federal, SJRS/TRF4
Gabriela Azevedo Campos Sales, Juíza Federal, SJSP/TRF3
Gilton Batista Brito, Juiz Federal, JFSE/TRF5
Grace Anny de Souza Monteiro, Juíza Federal, SJRO/TRF1
Isaura Cristina de Oliveira Leite, Juíza Federal,
SJDF/TRF1
Jacques de Queiroz Ferreira, Juiz Federal, SJMG/TRF1
Jorge Maurique, Desembargador Federal/TRF4
José Carlos Garcia, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
José Henrique Guaracy Rabelo, Juiz Federal Emérito,
SJMG/TRF1
Lincoln Pinheiro Costa, Juiz Federal, SJBA/TRF1
Luciana Bauer, Juíza Federal, SJPR/TRF4
Luís Praxedes Vieira da Silva, Juiz Federal, SJCE/TRF5
Luiz Fernando Wowk Penteado, Desembargador Federal/TRF4
Marcelo Eduardo Rossitto Bassetto, Juiz Federal, SSJ São
Sebastião do Paraíso/TRF1
Marcello Enes Figueira, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
Marcelo Elias Vieira, Juiz Federal, SJRO/TRF1
Marcos Antonio Garapa de Carvalho, Juiz Federal, SJSE/TRF5
Marcus Vinícius Reis Bastos, Juiz Federal, SJDF/TRF1
Ney Bello, Desembargador Federal/TRF1
Paulo Roberto Parca de Pinho, Juiz Federal, SJPE/TRF5
Pedro Pimenta Bossi, Juiz Federal, SJPR/TRF4
Polyana Falcão Brito, Juíza Federal, SJPE/TRF5
Ricardo José Brito Bastos Aguiar de Arruda, Juiz Federal,
SJCE/TRF5
Ricardo César Mandarino Barretto, Juiz Federal Emérito,
SJPE/TRF5
Rodrigo Gaspar de Mello, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
Rogério Favreto, Desembargador Federal/TRF4
Roger Raupp Rios, Desembargador Federal/TRF4
Rosmar Antonni Rodrigues Cavalcanti de Alencar, Juiz
Federal, SJAL/TRF5
Simone Schreiber, Desembargadora Federal/TRF2
Thalynni Maria de Lavor Passos, Juíza Federal, SJPE/TRF1
Vanessa Curti Perenha Gasques, Juíza Federal, SJMT/TRF1
Victor Curado Silva Pereira, Juiz Federal, SSJ de
Balsas/TRF1
Victor Roberto Correa de Souza, Juiz Federal, SJRJ/TRF2
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