No sul da Espanha, uma pequena vila de 2626 habitantes
organiza-se há décadas para administrar comunalmente a propriedade da terra, do
trabalho e das casas. A pequena aldeia andaluza de Marinaleda, que se dedica
principalmente à agricultura, revelou-se ao mundo com o seu sistema de
cooperativas como um exemplo de como este modelo de gestão pode reduzir de
forma absolutamente eficaz os níveis de desigualdade e alcançar o pleno
emprego.
Entre os olivais do sul espanhol, pedimos aos
trabalhadores rurais com seus velhos tratores e vans que nos levassem a
Marinaleda. Francisco abre um lugar para nós em seu carro, e enquanto dirige ao
longo da estrada local, conta os principais pontos da aldeia: a Casa do Povo,
onde o Sindicato dos Trabalhadores do Campo realiza tarefas comuns de educação,
ativismo e organização; os serviços públicos como a piscina, as escolas e os
centros esportivos.
Marinaleda, coberta de cal branca como qualquer outra vila
da serra sevilhana, tem vários murais pintados nos seus predios: os olhos
escuros de Che Guevara observam-nos a partir dos edifícios municipais. As
bandeiras de uma Andaluzia vermelha, uma Catalunha independente, um País Basco
e uma Palestina livre pintam a cidade de vermelho, verde e azul. Os pombos voam
sobre as palavras de paz, rebelião e esperança.
Juan Manuel Sánchez Gordillo é uma figura central no
“milagre de Marinaleda”. Prefeito desde 1979, o ano do retorno da democracia
após a morte de Franco, ele ganhou as eleições com amplas maiorias absolutas.
Intelectual, revolucionário, preso por ocupar terras militares e filho de
agricultores, o papel central de Gordillo na construção de Marinaleda como uma
“utopia para a paz” comunista, como diz o lema da cidade, ganhou fama e ódio em
partes iguais. Os apoiadores de Gordillo comemoram sua liderança nas inúmeras
campanhas que transformaram Marinaleda em um oásis de pleno emprego, em uma
região onde o desemprego ainda sobe acima de 20% e o desemprego juvenil acima
de 40%. A taxa de desemprego de 5% da
Marinaleda é muito inferior à das grandes cidades como Madrid ou Barcelona.
A luta mais importante da aldeia azeitoneira foi a
campanha de doze anos para tomar a terra da aristocracia moderna e devolver a
propriedade ao povo que a cultivava, os trabalhadores diaristas. A partir de
1979, a luta pela reivindicação da coletivização da terra começou com uma greve
de fome de mais de 700 vizinhos que durou meio mês. O processo continuou com
inumeráveis ocupações de lotes privados, e longas disputas e negociações legais
que finalmente lhes renderam, em 1991, a propriedade legal de uma vasta
extensão de terra chamada El Humoso, um latifúndio de 1200 hectares que era
propriedade do Duque del Infantado e que hoje é administrado como uma
cooperativa pelos trabalhadores de Marinaleda
O prefeito Gordillo: anarquismo e comunismo, com um toque
cristão
Na entrada da propriedade lê-se um grande letreiro: “Esta
terra é para os trabalhadores diaristas desempregados de Marinaleda”. No
Humoso, a agricultura é 100% ecológica, os campos são irrigados e completados
com oliveiras, estufas e viveiros. Foi também impulsada uma fazenda de criação
de cabras e ovelhas e uma fábrica local de conservas de legumes. Os pilares da
produção são o pimentão, o feijão, a alcachofra e o azeite de oliva.
Reconhecendo que sua luta não foi apenas uma batalha local
pela terra, os moradores de Marinaleda tornaram-se os líderes morais do
movimento contra a austeridade na Espanha após o colapso do sistema
habitacional em 2008. E durante longos anos de crise econômica, Gordillo
alcançou fama nacional por suas políticas contra a pobreza, o desemprego e a
falta de moradia que dispararam durante anos de recessão.
Entrando em seu escritório, a bandeira da Segunda
República Espanhola – símbolo da esquerda antifranquista – brilha com seu
tricolor vermelho, amarelo e roxo no canto, enquanto uma fotografia de Che
Guevara dirigindo-se às Nações Unidas fica ao seu lado. A peça central da sala
se assenta numa mesa redonda: uma escultura de punhos grandes erguidos,
tratando de se libertar das correntes de ferro que prendem os pulsos. Abaixo do
punho se lê gravado:”MARINALEDA”
A filosofia política de Gordillo amadureceu à medida que o
regime fascista espanhol se enfraquecia; após a morte de Franco, Gordillo se
envolveu com o Sindicato de Trabalhadores do Campo, uma união agrária que se
aliou ao Coletivo de União dos Trabalhadores (CUT) para apresentar Gordillo
como candidato a prefeito nas primeiras eleições municipais espanholas em 1979,
após o colapso do regime de Franco.
Depois de ganhar a prefeitura, Gordillo lançou uma
campanha após a outra com o objetivo de satisfazer as necessidades básicas das
pessoas: alimentação, água, moradia e eletricidade. O passo mais audacioso
nesses primeiros anos foi a histórica greve de fome e ocupação que buscava
transferir vastas terras privadas para os camponeses sem terra. Explicando a
razão desta greve de fome e desta ocupação, Gordillo conta: “Compreendemos que
a luta contra o desemprego significava uma luta pela terra.” Este confronto com
os proprietários privados fez do gabinete de Gordillo um gabinete de prefeitos
que enfrentou os problemas em suas raízes; um gabinete raro e radical.
Uma História de Consciência Política
Em nosso encontro, Gordillo enfatiza que a ação coletiva
deve ser baseada em uma educação política que desenvolva a consciência de
classe: “as pessoas expropriadas devem organizar-se e identificar-se como
expropriadas. Mesmo as classes médias também são expropriadas – da terra, do
capital, do poder. E em Marinaleda, a consciência de classe é uma alta
prioridade. Os murais contra-culturais que pintam as paredes do povo são
testemunho da esperança que leva este povo à ação.”
Mas Gordillo não é um dogmático. Ele se inspira em todas
as fontes, em qualquer ser humano que tenha sonhado em “construir um mundo
diferente no qual os recursos sejam colocados a serviço das pessoas e não de
interesses privados”. Cita Gandhi, Che Guevara, Jesus Cristo, junto com a
experiência de nações que ainda lutam para serem reconhecidas como tais; os
curdos, os saarauis, os palestinos. Ele diz: “Você tem que tirar um pouco de
cada um; você tem que tirar um pouco do anarquismo, do socialismo, do marxismo,
do Che, de algumas coisas de Lênin, de algumas coisas de todos e, acima de
tudo, da sua própria experiência”. A filosofia política de Gordillo é um
mosaico de ideias endurecido na experiência do genocídio que a esquerda viveu
durante o regime de Franco, a guerra civil e a ditadura, e moldado na memória
histórica do nacionalismo andaluz. Questionado sobre o que aprendeu com sua
própria experiência, ele responde: “A não-violência pode realizar qualquer
coisa no mundo. Que tudo é possível”.
Perguntando a sua citação de Cristo entre os seus heróis,
ele nos explica que vê Cristo como o primeiro comunista. “Cristo era um
revolucionário, e assim eles se livraram dele. Cristo o pacifista, Cristo o
agitador, o reformador que declarou que o reino de Deus está dentro do homem,
não em outro lugar, e certamente não dentro de um papa”.
É esta tradição social cristã, a mesma desenvolvida pela
Teologia da Libertação na América Latina, que Gordillo reivindica. Ele insiste
que “o cristianismo e o marxismo, o cristianismo e o comunismo são
perfeitamente compatíveis”, e reconhece o papel de um elemento mais profundo —
pessoal ou espiritual — no humanismo político, demonstrando que, em
contraposição aos projetos neofascistas ou da “supremacia teológica”, pode-se
reconstruir uma tradição cristã progressista.
Marinaleda e a Solução Cooperativa
Os sucessos sócio-econômicos da aldeia, como o pleno
emprego, salários igualitários de 1200 euros por mês (aproximadamente 4450
reais) em jornadas de 6 horas de trabalho ou a inexistência de polícia
fazem-nos pensar sobre como o modelo cooperativo de Marinaleda seria
transferível para outras regiões. O modelo cooperativo tem sido acompanhado por
um sistema participativo no qual todas as decisões estratégicas do município
são tomadas em uma Assembléia Popular, bem como as políticas de gestão de
terras e habitação, oferecendo habitação a partir de 15 euros por mês
(aproximadamente 66 reais)
O modelo cooperativista não apresenta inviabilidade
estratégica. Em vez de canalizar lucros para executivos e acionistas que
agregam pouco valor produtivo, uma cooperativa reinveste no capital da empresa,
permitindo-lhe prosperar em tempos bons e sobreviver em tempos difíceis. É um
modelo que salvaguarda aspirações sociais, econômicas, políticas e culturais
conjuntas por meio de empresas de propriedade coletiva e controladas
democraticamente.
O conflito entre a gestão e os trabalhadores é minimizado
graças à representação democrática e à tomada de decisões, e o exemplo de
cooperativas bem sucedidas como El Humoso de Marinaleda pode ser visto em
outros lugares – como no caso representativo da cooperativa de Mondragon, a
maior do mundo. Localizada no País Basco, norte da Península Ibérica, ela
emprega atualmente cerca de 81 mil trabalhadores e realiza um volume de negócio
anual de mais de 11 bilhões de euros (aproximadamente 50 bilhões de reais).
No atual declínio da social-democracia, substituída por um
neoliberalismo social no contexto espanhol, as cooperativas são um mecanismo
capaz de iniciar modelos transformadores de gestão de recursos. O caso de
Marinaleda revela o potencial de sucesso destes mecanismos intersetoriais,
capazes de enfrentar as desigualdades estruturais resultantes do sistema atual.
Num contexto de crise sistêmica, econômica, ambiental, social e política,
materializada no ascenso das extremas direitas, estas práticas oferecem formas
eficazes de ação coletiva.
No entanto, somente através desta ação coletiva,
mobilizada pelas diversas organizações pró-cooperativistas, bem como pelos
sindicatos, será possível promover uma consciência social efetiva, capaz de
exigir políticas que promovam a cooperativização da economia através de uma
série de incentivos fiscais e creditícios
Marinaleda demonstra que uma comunidade dominada pela
agricultura familiar terá uma estrutura social mais igualitária e uma vida
institucional mais rica, colaborando não só em relações sócio-econômicas
bem-sucedidas, como também na geração de vínculos emocionais e psico-afetivos,
permitindo que essa gestão seja, como diz Gordillo, “uma forma de educação
política e de aquisição de consciência de classe”.
—
Gabriel Bayarri é um escritor e antropólogo espanhol
Timothy Ginty é um escritor australiano. Escreve em seu
blog, Lives and Times: Writing on the World Around Us.
Scott Arthurson é um escritor australiano.
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