Para tentar se livrar de uma condenação pesada, um
empresário acusado de fazer doações secretas a políticos decidiu fazer acordo
com seus acusadores. Em troca de ficar menos tempo preso, o empresário
confessou que havia reformado uma casa para um político importante.
Parece uma descrição das denúncias da “lava jato” que
atingiram o ex-presidente Lula. Mas aconteceu em 2006, nos Estados Unidos. O
então dono e presidente da empresa do setor de petróleo Veco, Bill Allen, disse
ao FBI ter bancado a reforma de um chalé do senador republicano Ted Stevens.
Dois anos depois, foi descoberto que os procuradores do caso fraudaram
documentos e impediram a defesa do senador de ter acesso a provas que o
beneficiariam.
O caso foi anulado em 2010, mas o objetivo foi conseguido:
Stevens, um dos principais líderes do Partido Republicano, não conseguiu se
reeleger, desequilibrando as forças políticas no Congresso na época da votação
do Medicare for All, o programa de saúde público lançado pelo governo Barack
Obama.
Não é coincidência que os casos de Ted Stevens e Lula
sejam parecidos, diz o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende o
ex-presidente na “lava jato”. Na análise dele, são capítulos da mesma história.
Zanin acaba de lançar, junto com os advogados Valeska Teixeira Martins e Rafael
Valim o livro Lawfare: uma introdução, em que conceitua esse tipo de processo
judicial carregado de contexto político e misturado com objetivos geopolíticos.
De acordo com os autores, lawfare, que é traduzido em
círculos militares como guerra jurídica, “é o uso estratégico do Direito para
fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o inimigo”. Lula não é o primeiro
nem o único caso de vítima de lawfare no mundo, mas é o mais recente, diz
Zanin, em entrevista exclusiva à ConJur.
A “lava jato”, analisa o advogado, é uma ferramenta de
lawfare, e não meramente um processo penal. Na verdade, diz ele, o método de
trabalho dos procuradores de Curitiba “impede o real combate à corrupção”.
Para Zanin, o modelo de força-tarefa alimentado por
delações premiadas não serve à realização de justiça ou descoberta da verdade.
Serve para “botar narrativas de pé”. “Os acordos são assinados para confirmar
as teses acusatórias, e não para revelar o que aconteceu e mostrar o caminho
para se chegar aos responsáveis”, afirma o advogado.
Cristiano Zanin Martins é, junto com a advogada Valeska
Teixeira, advogado de Lula desde o início da “lava jato”. É formado em Direito
pela PUC de São Paulo com especialização em Processo Civil e membro da
International Bar Association (IBA).
Leia a entrevista:
ConJur —- O livro defende a tese de que as acusações que
pesam contra o ex-presidente Lula são um caso de lawfare, é isso?
Cristiano Zanin Martins —- Na verdade, o livro é
conceitual. É uma introdução ao debate sobre o tema e contamos alguns casos de
como o lawfare acontece. O caso Lula é um deles. Também contamos o caso da
Siemens, que sofreu diversos processos, com base na FCPA [lei de corrupção
internacional dos EUA], em reação a uma relação comercial com o Irã, furando o
embargo comercial dos Estados Unidos. Outro caso é o do ex-senador republicano
Ted Stevens. Ele seria um voto decisivo numa votação importante no Congresso
dos EUA [a aprovação do plano de saúde público Medicare for All, conhecido como
Obamacare] e passou a ser alvo de diversas acusações e investigações, tudo sem
materialidade, mas que conseguiram impedi-lo de participar as eleições e de ser
reeleito, desequilibrando o jogo. Esse caso é muito parecido com o do
presidente Lula.
ConJur —- Por quê?
Cristiano Zanin Martins —- A acusação é de que ele teria
recebido propina por meio da reforma de um chalé no Alasca e essa propina viria
de uma empresa do ramo de petróleo e gás. O script é exatamente o mesmo. O que
a gente conta no livro é que o lawfare não é um fenômeno que atinge apenas a
política ou apenas o campo da esquerda. O caos da Siemens é um lawfare com fins
comerciais. Ted Stevens era um senador do Partido Republicano [o senador morreu
em 2010, num acidente de avião].
ConJur —- E todos os casos têm a ver com os EUA?
Cristiano Zanin Martins —- Sempre os EUA e sempre o mesmo
grupo de procuradores do Departamento de Justiça. Que é o mesmo grupo que atuou
na “lava jato”.
ConJur —- E sempre por meio da FCPA?
Cristiano Zanin Martins —- O conceito que a gente propõe
de lawfare é o do uso estratégico do Direito para fins de perseguição política,
mas também para fins geopolíticos, militares e comerciais. A gente parte de
conceitos da guerra convencional, em que primeiro acontece a escolha do campo
de batalha — no lawfare, da jurisdição mais favorável —, a escolha das armas —
no lawfare, são as leis, a propaganda — e as externalidades.
ConJur —- O que são externalidades?
Cristiano Zanin Martins —- São os meios para viabilizar
essa guerra jurídica para que ela se torne aceitável perante a população e a
opinião pública. Para isso, sobretudo, é usada a imprensa para viabilizar
outras táticas também, incluindo as operações psicológicas.
ConJur —- No caso Lula, a jurisdição favorável seria o
Paraná?
Cristiano Zanin Martins —- Sim. Alguns autores
participaram de seminários e congressos patrocinados pelo governo americano.
ConJur —- Toda vez que vocês falam nisso, são acusados de
teoria da conspiração.
Cristiano Zanin Martins —- A participação dos americanos
na “lava jato” não é teoria da conspiração. Provamos nos processos que
procuradores norte-americanos prestaram ajuda para a construção do caso e para
a viabilizar uma condenação — totalmente descabida, como se vê. Isso está
gravado em vídeo, procuradores norte-americanos reconhecendo publicamente em
uma audiência, que tinha a participação do ex-PGR Rodrigo Janot, que eles
haviam participado da construção do caso e da viabilização da sentença
condenatória. E aí, num momento, falam: “Fizemos isso informalmente, diante das
relações que temos com as autoridades brasileiras”. Ocorre que existe um
tratado dos EUA com o Brasil para disciplinar a cooperação em matéria penal [MLat],
que foi totalmente desrespeitado.
ConJur —- E o caso do ex-presidente Lula se encaixa em
qual categoria de lawfare?
Cristiano Zanin Martins —- Nossa interpretação é que
usaram de maneira perversa das leis e dos procedimentos jurídicos para fins de
uma perseguição política e geopolítica.
ConJur —- Mas o objetivo ali era Lula ou a Petrobras?
Cristiano Zanin Martins —- Os dois. Existe uma entrevista
muito interessante do Julian Assange [fundador do Wikileaks] ao jornalista
Fernando Morais em que ele diz que os EUA viam o Brasil de duas formas:
Petrobras e militares. Então a Petrobras foi colocada no olho do furacão não
por uma investigação, ou aleatoriamente, mas de caso pensado. A Petrobras tem
uma importância geopolítica enorme e estratégica. É preciso lembrar que
imediatamente antes da “lava jato” foi revelada a espionagem dos EUA no Brasil
tendo como alvo também a Petrobras. Não se pode olhar para a “lava jato” sem
verificar essa espionagem.
ConJur —- Mas o fato é que houve corrupção na Petrobras.
Cristiano Zanin Martins —- Sim, havia ali um foco de
corrupção em alguns diretores e alguns gerentes. Só que isso foi transformado
em propaganda para viabilizar esse uso perverso das leis e procedimentos
jurídicos contra alvos pré-estabelecidos. O problema foi transformar esses
casos de corrupção numa causa nacional que pudesse viabilizar essa perseguição
a algumas pessoas e algumas instituições.
ConJur —- Agora, existe um argumento poderoso contra essa
tese: se for verdade que o consórcio de Curitiba está num conluio com os EUA
para desmoralizar o PT, o ex-presidente Lula e depenar a Petrobras, como dizer
isso também do STJ e do Supremo?
Cristiano Zanin Martins —- De um lado há as pessoas que
praticaram o lawfare conscientemente, mas de outro há as que foram iludidas por
aquilo que chega até elas por meio, sobretudo, da imprensa. No caso do
ex-presidente Lula, toda a fase da instrução foi conduzida de maneira
absolutamente parcial pelo ex-juiz Sergio Moro. Ou seja, todo o conteúdo do
processo foi conduzido pelo Moro, que não permitiu que fossem feitas provas da
defesa e conduziu de forma enviesada a produção de provas pela investigação
para que prevalecesse a tese acusatória. Esse foi o pacote que chegou aos
tribunais superiores e a partir dele é que fizeram a análise jurídica dos
fatos, confirmando as decisões do ex-juiz Sergio Moro, que foram produzidas
nesse ambiente de parcialidade.
ConJur —- E o Ministério Público, onde se encaixa nessa
história?
Cristiano Zanin Martins —- Não tenho a menor dúvida de que
o MPF de Curitiba estava plenamente consciente do que estava acontecendo e foi
um ator importante de lawfare. A denúncia do Power Point é peça fundamental
nessa história, é uma peça de propaganda para iludir a população e fazê-la
acreditar que havia um grande esquema e que o ex-presidente Lula seria o que
eles chamam de “maestro” desse esquema. Aquilo não foi feito de maneira
despropositada. O conteúdo foi totalmente deturpado. Tanto é que conseguimos,
na Justiça Federal em Brasília, o arquivamento do inquérito do quadrilhão, que
era o eixo central dessa tese da “lava jato”.
ConJur —- Mas o que o Power Point tem a ver com lawfare?
Cristiano Zanin Martins —- Ele tem uma linguagem
totalmente norte-americana. Fala em “propinocracia”, que é um departamento que
existe dentro do Departamento de Justiça dos EUA [o departamento, ligado à
seção de combate a crimes financeiros, se chama Kleptocracy]. Não é coincidência
que o Power Point se refira a esse termo. Se você pegar isso e o vídeo em que
os procuradores americanos admitiram ajuda plena, mas informal, aos
procuradores da “lava jato”, você chega à origem de tudo isso.
ConJur —- E isso tudo seria causa de nulidade das
condenações, ou dos processos? Qual seria a consequência concreta dessa
análise?
Cristiano Zanin Martins —- Colocamos inúmeros argumentos
para demonstrar a nulidade dos processos e essa ajuda informal foi um deles.
Ela não tem respaldo no ordenamento jurídico e deveria ser vista como causa de
absoluta nulidade de todos os processos.
ConJur —- Agora, foram os governos petistas que
transformaram as operações policiais em espetáculos midiáticos.
Cristiano Zanin Martins —- Não posso fazer a defesa disso
porque não sou filiado ao PT e nunca participei dos governos petistas. Este ano
completo 20 anos de advocacia e tenho muito orgulho de fazer a defesa do
ex-presidente Lula. Mas não é uma posição política. É uma atuação profissional
associada, claro, a uma admiração pessoal ao presidente Lula. Mas não tenho
filiação partidária e nem participei dos governos dele.
ConJur —- Houve inclusive uma pressão forte no PT para que
vocês fossem substituídos no caso, para que Lula contratasse um medalhão da advocacia
criminal e coisas do tipo. Isso atrapalhou a defesa?
Cristiano Zanin Martins —- Claro que ao longo desses
quatro ou cinco anos passei alguns dissabores por ocupar essa posição na defesa
do ex-presidente. Mas houve uma avaliação correta da nossa parte que não se
tratava de procedimentos criminais normais ou de investigações normais. Estavam
ali pelo menos desde 2015 gestando um ataque assimétrico do sistema de Justiça
contra o ex-presidente Lula para inviabilizá-lo politicamente e neutralizar a
posição importante que ele sempre ocupou no país e no cenário internacional. O
tempo mostrou que nossa avaliação foi correta, mas algumas pessoas, acredito
até que pessoas próximas ao ex-presidente, não fizeram a mesma avaliação e
subestimaram o que viria, que já havia uma condenação pré-estabelecida. Hoje
não é possível que alguém genuinamente tenha dúvidas de que esse processo foi
absolutamente ilegítimo, sem diferença entre acusador e juiz, com objetivo
politico e geopolítico claro.
ConJur —- Agora, uma pergunta que fica é: a troco do quê
todos os procuradores e parte do Judiciário fizeram isso? Por que se submeteram
a esse plano do Departamento de Justiça dos EUA? O que ganharam com isso tudo?
Cristiano Zanin Martins —- Não sei, não tenho essa
resposta. O que posso constatar é que eles causaram um dano de elevadas
proporções ao sistema de Justiça brasileiro e que eles efetivamente aderiram a
uma atuação dos EUA. Isso está comprovado. Inclusive o material do Vaza Jato
mostra um arquivo do Deltan que era uma lista de tarefas e uma delas era
procurar empresas que pudessem fazer acordo com os EUA. Foi uma espécie de
agenciamento do governo americano.
ConJur —- E como acha que vai ser a recepção desse
material da Vaza Jato vai ser recebido no Judiciário? Ainda há certa
resistência, não?
Cristiano Zanin Martins —- Isso ainda está em processo de
amadurecimento no Judiciário. Temos alguns pedidos específicos para que essas
mensagens sejam levadas em consideração. Esse material está na posse do Estado
brasileiro, seja na secretaria da 10ª Vara Federal de Brasília, seja no Supremo
Tribunal Federal, e se isso pode comprovar as teses defensivas, meu
entendimento é que nos deve ser dado acesso a ele. Mas não é só a Vaza Jato. O
próprio livro do Janot tem um capítulo inteiro dedicado a Lula em que o
ex-presidente é descrito como uma obsessão da “lava jato”. Todas essas coisas
reforçam o que sempre dissemos.
ConJur —- Uma coisa que se percebe em todos os casos é uma
retórica muito forte dos juízes. Tanto no caso do Guarujá quanto no caso do
sítio de Atibaia, os desembargadores fizeram discursos duros sobre como a
corrupção é um mal maior e como o ex-presidente Lula era o chefe de uma
poderosa organização criminosa que prejudicou o país por muitos anos. Mas o que
se discutia era a posse ou propriedade de dois imóveis.
Cristiano Zanin Martins —- Na verdade, eles não precisam
provar nada, tudo tem um script já traçado. Tudo foi feito com base numa tese
do procurador Deltan Dallagnol que ele chamou de “explanacionismo”. Segundo essa
tese, não é necessário provar, basta argumentar. A tese defende que, se não
houve uma explicação melhor para a hipótese da acusação, a hipótese da acusação
deve ser tida como verdadeira. E se o réu não der uma explicação convincente
sobre as teses acusatórias, ele pode ser condenado. O que se tem, então, é uma
transferência do ônus da prova para o réu.
ConJur —- Uma análise já comum sobre a “lava jato” é que
aquelas leis de 2013, a da Organização Criminosa e a que previu a
responsabilização de empresas foram os principais pilares da operação. Essas
leis são incluídas na sua tese de lawfare também? Elas são anteriores à “lava
jato” e às revelações do Snowden.
Cristiano Zanin Martins —- Essas leis têm origem na
pressão feita pela OCDE sobre diversos países. A Lei 12.850, que tipifica a
organização criminosa, prevê instrumentos muito agressivos que são um prato
cheio para a prática de lawfare.
ConJur —- Mas essa instrumentalização do Direito, para
usar uma expressão muito usada pelo Lenio Streck, não é uma novidade da “lava
jato”.
Cristiano Zanin Martins —- É, o uso do Direito como
instrumento de perseguição é bastante antigo. Mas na lawfare existem outros
instrumentos que viabilizam a prática, a normalização dessa instrumentalização,
que é inaceitável. Se houver esse uso do Direito como instrumento em grande
escala, seria barrado à medida que os tribunais tomassem conhecimento do uso
indevido. Com lawfare, outras táticas são desenvolvidas para impedir que os
tribunais percebam isso de pronto.
ConJur — Outro dos pilares da “lava jato” é a delação
premiada, mas parece que elas andam em baixa. Isso mostra a fragilidade do
modelo?
Cristiano Zanin Martins — As fragilidades são inúmeras.
Primeiro porque, na “lava jato”, ficou mais do que claro que o MPF em Curitiba
conduziu os processos de delação para que eles se referissem ao ex-presidente
Lula, como se fosse uma condição para o acordo. E pior: parece que houve uma
combinação ali para não formalizar o acordo para não parecer que foi algo
encomendado. Isso ficou evidente no caso do Leo Pinheiro. Ele estava o tempo
todo em negociação com os procuradores e mudou a posição processual dele para
acusar o ex-presidente Lula, mas a formalização dos acordos só aconteceu mais
tarde.
ConJur — E essa é a principal base para as acusações
contra o ex-presidente.
Cristiano Zanin Martins — O MPF ignora o parágrafo 16 do
artigo 4º, que diz que ninguém pode ser condenado com base exclusivamente em
delações. A própria lei estabelece uma presunção de que o delator mente, mas
inúmeras sentenças da “lava jato” partem de depoimentos de delatores. Isso só
mostra que esse modelo de delações impede o verdadeiro combate à corrupção.
ConJur — Como assim?
Cristiano Zanin Martins — São assinados acordos para botar
narrativas de pé, não para combater a corrupção. O Ministério Público chega com
uma série de acusações e oferece um acordo que vai te livrar da prisão ou te
permitir ficar com uma parte do dinheiro que a acusação diz que foi desviado.
Mas o fato de o delator ter confirmado não quer dizer que tudo aquilo seja
verdade. Os depoimentos dele foram dados na expectativa de uma contrapartida, e
não no interesse da realização de justiça Na verdade eles estão confirmando
teses acusatórias, e não revelando o que aconteceu “nas sombras do poder”, como
diz o Moro.
ConJur —- Boa parte dos donos do dinheiro no país
aceitaram sem problemas as teses da “lava jato”. Exemplo disso são as palestras
muito bem remuneradas do Deltan, o financiamento de estratégias de marketing
para ajudar os procuradores a divulgar a mensagem da “lava jato”.
Cristiano Zanin Martins —- Muitos foram iludidos por essa
propaganda da “lava jato”. Mas o lawfare aplicado aqui no Brasil levou o país a
um caos jurídico e a um caos econômico. E muitas dessas pessoas já se deram
conta de que subverter o Estado de Direito tem consequências muito graves e
incontroláveis para o país. Tanto para o Direito quanto para a Economia e para
tudo o que for essencial.
ConJur —- Não parece que a “lava jato” tenha ficado
impopular.
Cristiano Zanin Martins —- Tenho sido abordado,
principalmente em aeroportos, por pessoas falando “olha, eu vi você lá em 2016
criticando a ‘lava jato’ e sempre achei que fosse uma coisa meio sem lastro,
pra defender o seu cliente. Mas hoje a conta chegou para mim, para minha
empresa, meus funcionários”. Um deles me disse que era fornecedor de uma
empreiteira que foi atingida pela “lava jato” e teve de demitir milhares de
funcionários e hoje tem 20 empregados apenas para fazer a gestão patrimonial,
porque a atividade produtiva acabou. Esse efeito cascata na economia tem levado
as pessoas, especialmente os empresários, a perceber que a conta dessa
irresponsabilidade chegou até eles também. Talvez hoje tenham uma visão
diferente do processo.
ConJur — Uma das alegações da suspeição de Moro e dos
procuradores se baseia no grampo ao escritório. Isso deu em alguma coisa?
Cristiano Zanin Martins — Nada. Ninguém foi punido, sequer
investigado. O ramal principal do nosso escritório foi grampeado durante 23
dias. Durante 23 dias todos os 25 advogados do escritório foram monitorados e
as estratégias da defesa foram antecipadas, justamente num período fundamental
para a definição da competência da “lava jato”, se o caso ficaria em Curitiba
ou em São Paulo, com o MP estadual.
ConJur — Esses grampos foram usados nos processos?
Cristiano Zanin Martins — Toda a nossa estratégia e nossas
ações foram monitoradas em tempo real pelos órgãos de persecução de Curitiba,
que tentavam a qualquer custo neutralizar nossas estratégias. Essas informações
foram usadas, sim. Foram depositadas na 13ª Vara Federal de Curitiba planilhas
com resumos das nossas conversas e a indicação sobre se aquilo era relevante
para eles ou não. Como se pode aceitar uma violência jurídica dessas?! Mas,
lamentavelmente, isso aconteceu e, até hoje, não teve nenhuma consequência.
ConJur — Houve outras ilegalidades, como a busca de provas
pelo MPF na Suíça ou aquele contato direto da Polícia Federal com a fabricante
do BlackBerry no Canadá. Nada disso teve consequência também?
Cristiano Zanin Martins — Nada. E tudo isso está no
processo. É incrível. Recentemente fizemos uma perícia que levantou todas essas
ilegalidades, inclusive a manipulação nos sistemas da Odebrecht que estão sendo
usados para instruir ações penais. Tudo isso está devidamente comprovado nos
autos. Mas impressiona a criatividade para tentar mascarar todos esses dados,
que seriam suficientes para fulminar de nulidade todos esses processos.
ConJur — Voltando ao lawfare, o que acontece depois? Qual
a consequência de se reconhecer que determinada situação ou uma acusação,
enfim, faz parte de uma estratégia de lawfare? Qual é o passo seguinte?
Cristiano Zanin Martins — Olha, não sou um pessimista. O
ex-presidente Lula já foi absolvido em dois casos que não estavam em Curitiba,
e foram absolvições sumárias, antes mesmo da instrução. No último caso, do
quadrilhão, o próprio juiz reconheceu que ali se estava tentando criminalizar a
atividade política. O outro caso foi o baseado na delação do Delcídio. Foi
feito um grande escarcéu com essa delação e depois ficou comprovado que era
tudo mentira. Tanto é que o MPF foi quem pediu a absolvição do presidente Lula
e não houve recurso depois da sentença. Então, veja: quando você se depara com
a atuação correta do sistema de Justiça, você consegue o reconhecimento de que
esses processos são absurdos. Já há até membros do MPF dizendo que as acusações
são absurdas. E é importante lembrar que esse processo do quadrilhão é o eixo
central da “lava jato”.
ConJur — Uma das frentes da defesa do ex-presidente é
acesso às informações do processo da Petrobras nos EUA. Por quê?
Cristiano Zanin Martins — Primeiro porque a Petrobras
assumiu posições inconciliáveis no Brasil e nos EUA. Aqui ela se diz vítima e
atua como assistente da acusação nas ações da “lava jato” em Curitiba,
inclusive em relação ao ex-presidente Lula. Nos EUA, a Petrobras se declarou
culpada e apresentou às autoridades americanas um relato detalhado dos supostos
ilícitos que ocorreram na empresa. E não há nesse relato qualquer referência ao
ex-presidente Lula.
O segundo motivo é que sempre pedimos, aqui no Brasil,
acesso a todos esses documentos apresentados, com os contratos que as denúncias
apontam contra o ex-presidente Lula, e houve uma resistência enorme à
apresentação desses documentos.
Enquanto a Petrobras nos EUA preparou um arquivo detalhado
e especifico para entregar às autoridades e gastou uma quantia expressiva para
fazer essa compilação, aqui ela nega acesso a esses documentos. O que a gente
quer também é mostrar que essa negativa de acesso aos documentos faz parte de
uma lógica de acusar com base meramente em retórica.
ConJur — E por que não dão acesso?
Cristiano Zanin Martins — Porque com essa documentação
facilmente comprovaríamos que nenhum valor da Petrobras ou desses contratos foi
direcionado ao ex-presidente Lula.
ConJur — Mas o que a acusação diz não é que o dinheiro foi
para o PT e o sistema político?
Cristiano Zanin Martins — Nas denúncias contra o
ex-presidente Lula eles enumeram alguns contratos e dizem que os valores deles
foram usados para pagar vantagens indevidas contra o ex-presidente. Só que eles
nunca fizeram a prova disso – porque isso nunca ocorreu.
ConJur — O próprio Moro já reconheceu que não existe
dinheiro da Petrobras nos casos de Lula, não?
Cristiano Zanin Martins — Não sei se num ato falho, ele
reconheceu que não foram identificados valores da Petrobras destinados ao
ex-presidente Lula. Se não tem nenhum valor da Petrobras destinado a Lula,
então por que essas ações estão em Curitiba? E se a espinha dorsal da operação
foi afastada pelo principal juiz do caso, isso mostra a falta de consistência
das acusações.
ConJur — Vocês já pediram perícia nesses contratos e o
Moro negou, não foi?
Cristiano Zanin Martins — Ele negou várias perícias. Na
verdade, na “lava jato” nunca foi feita nenhuma perícia para comprovar que
qualquer valor da Petrobras foi destinado a qualquer dos acusados. Eles sempre
partiram da premissa de que essa era uma realidade, o que é inaceitável. Como
se pode ter uma acusação de crime financeiro sem perícia para demonstrar o
caminho do dinheiro? A lógica do follow the money [siga o dinheiro] é inerente
a qualquer processo sobre crime financeiro, menos na “lava jato”. Esse é um dos
argumentos sobre a nulidade dos processos: o artigo 158 do Código de Processo
Penal exige a perícia nessas situações.
ConJur — Um dos pilares da “lava jato” é o modelo de força-tarefa,
que também é uma fonte de críticas ao trabalho dos procuradores. O ministro
Gilmar Mendes, por exemplo, diz que o modelo é inconstitucional, porque
aproxima demais investigadores, acusadores e, pior, o juiz. Mas o grande
argumento contra os críticos é a efetividade das forças-tarefa. Sem a da “lava
jato”, por exemplo, a corrupção na Petrobras não teria sido descoberta.
Cristiano Zanin Martins — Não dá para justificar violações
de garantias fundamentais a partir de um eventual resultado. Seria dizer que os
fins justificam os meios. Entre as garantias fundamentais, estão o do promotor
natural e o do juiz natural. Não se pode escolher o promotor que vai tocar um
caso, muito menos o juiz. E o modelo de força-tarefa é uma clara violação a
essas garantias fundamentais. E não há dúvida de que esse modelo impede a
realização de justiça, porque se monta um grupo e uma propaganda para
justificar sua existência. E é impossível garantir a presunção de inocência com
o trabalho da força-tarefa, porque se você entra no radar dela, já significa
uma culpa selada, é como se fosse uma cruzada. Você, investigado, entra numa
cruzada contra um grupo de autoridades que vai defender suas ações a qualquer
preço.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor
Jurídico
Rafa Santos é repórter da revista Consultor Jurídico.
Emerson Voltare é editor da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-dez-15/entrevista-cristiano-zanin-martins-advogado-ex-presidente-lula
Nenhum comentário:
Postar um comentário