Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a concepção de
democracia nos planos político e jurídico tem sido reformulada.
Ela deixa de ser entendida sob o ponto de vista meramente
formal, de regras de procedimentos de disputa entre interesses conflitantes, e
passa a ser concebida como instrumento para a preservação e garantia de
direitos.
Isso foi possível principalmente por conta do que Luigi
Ferrajoli chama de “semente antifascista” plantada nas Constituições rígidas
elaboradas a partir de então e que surgem para limitar as decisões políticas e
judiciais, no plano jurídico interno das nações, impedindo que elas contrariem
os direitos de liberdade, e levando os Estados a realizar os direitos sociais.
Não se cogita mais, nesse sentido, decisão política ou
judicial que não esteja condicionada ao que determina a Constituição, seja pelo
modal deôntico do proibido – no caso dos direitos de liberdade que o Estado é
proibido de vulnerar –, seja no modal deôntico do obrigatório – no campo dos
direitos sociais, no qual o Estado é obrigado a realizar.
No plano jurídico internacional, surgem os Direitos
Humanos como normas limitadoras das soberanias estatais.
A plenitude do exercício da soberania pelos Estados
estabelecida no que se convencionou chamar de Paz de Westfália, um conjunto de
tratados firmados no século XVII, passa a ser moderada pelos Direitos Humanos
como normas civilizatórias, ou seja, surge um pacto implícito a determinar que
cada Estado tenha soberania para suas decisões, desde que não ofenda certos
valores de civilização na relação com seu próprio povo.
Assim, temos os Direitos Humanos “juridicizados” e as
Constituições rígidas como fator de limitação dos poderes políticos estatais,
tanto no plano internacional quanto no local.
Esse sistema está inegavelmente em crise, razão pela qual
se pode dizer que a democracia, tal como concebida no Pós-Guerra, também está.
A crise tem múltiplas facetas, mas observarei
especificamente uma determinada dimensão.
Como se sabe, a vida em sociedade demanda um certo common
ground, um solo comum mínimo de valores jurídicos, políticos e morais,
essencial para que a própria sociabilidade possa se realizar.
Mas a crise observa-se também numa outra dimensão, no
common ground racional, aquilo que Durkheim chama de consenso lógico.
Esse consenso lógico, racional, diz respeito a coordenadas
materiais de tempo e espaço, a acordos mínimos estabelecidos pela ciência, como
a existência do espaço sideral, da lei da gravidade, e também a certos fatos,
como a ida do homem à Lua.
Esse mínimo de visão material comum de mundo, que propicia
a sociabilidade, passa a ser questionado.
Um dos efeitos mais pitorescos dessa crise de concepção
racional de mundo no ambiente social talvez seja a crença no chamado
terraplanismo.
Segundo recente pesquisa do Datafolha, 11 milhões de
brasileiros acreditam na ideia de que a Terra é plana, divergindo, portanto, da
concepção multissecularmente aceita de que o nosso planeta tem forma esférica.
Embora a divergência em torno de questões como a forma
geométrica da Terra pareça inofensiva, se comparada aos riscos da negação da
eficácia das vacinas, colocá-las em xeque é também potencialmente perigoso,
pois rompe com o common ground, ou seja, torna instável o ambiente de certezas
obtidas durante esse percurso de existência humana civilizada.
Essa perda de referências mínimas se reflete em diversos
campos do saber, como, por exemplo, na Teoria do Direito.
O Direito, enquanto prática social, é comumente visto como
dotado de um grande campo de incertezas, dúvidas e disputa de narrativas.
A interpretação do Direito, das leis e das Constituições
leva a divergentes entendimentos, como fica claro a qualquer um que acompanhe
debates legislativos ou julgamentos das cortes superiores.
Apesar das incertezas, constituíram-se também nessa área
do conhecimento ambientes de maior segurança.
Atualmente, colocam-se em questão valores e saberes que
correspondem ao terraplanismo no campo das ciências naturais.
Valores mínimos de civilidade no âmbito do processo penal,
como o direito de defesa, para citar o mais elementar, são colocados à prova
pela adoção de teorias muitas vezes produzidas no mundo desenvolvido e por
gente muito erudita, mas que nem por isso devem ter credibilidade teórica para
se contrapor a esse acúmulo mínimo de saberes desenvolvidos.
Preocupa a formação dessa jurisprudência de exceção, que
tem sido, também no dizer de Ferrajoli, um verdadeiro processo desconstituinte,
ou seja, de esvaziamento de sentido material e concreto dos direitos
fundamentais postos nas Constituições, resultante do mau uso de teorias
jurídicas legítimas e vigentes e da produção de teses fraudulentas a respeito
da natureza e da extensão dos direitos e garantias fundamentais.
Estamos diante de um fenômeno perigoso.
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/direito-e-uma-das-maiores-vitimas-do-avanco-da-ignorancia-e-da-ma-fe/
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