Empresas estabeleceram controle orwelliano sobre
necessidades e desejos das populações. Em resposta, busca-se agora a
experiência social compartilhada
Os primeiros bens genéricos foram aqueles baseados em um
único modelo universal. O modelo preto T, da Ford, é o exemplo clássico. A
produção em massa permitiu uma enorme economia de escala e com redução de
custos nunca antes realizada. A função básica do transporte rodoviário de
pessoas foi satisfeita. Mas empresas temiam que, com produtos genéricos, todas
as necessidades seriam logo satisfeitas e pouco restaria para produzir. Um
primeiro passo para superar isso foi a introdução de mais escolhas, de acordo
com a capacidade de compra. Uma grande diferenciação de produtos foi
introduzida por meio das diferenças de preço e qualidade.
Os bens serviam a uma mesma função básica, mas uma média
muito superior de preços foi possível pela introdução de bens de luxo (de
classe alta). Os psicólogos ensinaram a empresários e marqueteiros como
condicionar e manipular as emoções e necessidades de consumidores, conseguindo
que eles comprassem coisas de que não precisavam. Os produtos poderiam ser
propagandeados como se prometessem maior status social, ou sugestionassem uma
ansiedade na mente do consumidor e apresentassem um produto que a aliviassem.
As empresas, interagindo com as observações da pirâmide de
Maslow, começaram a suprir necessidades mais secundárias por meio de uma
variedade de qualidades e preço. Isso seria mais socialmente aceitável se todos
tivessem já satisfeito suas necessidades primárias de alimentação, vestimenta,
moradia e educação. Obviamente, não era e nem é o caso. Mas com a desculpa de
que a maré crescente da economia “levantaria todos os barcos”, foi dada uma
atenção limitada ao excesso de bens não primários e serviços que eram
produzidos e consumidos. Além disso, as empresas procuravam impulsionar a
ascendente mobilidade de bens, passando dos básicos aos extraordinários, como
num espelho da mobilidade social crescente. Isso funcionou bem quando de fato
existia mobilidade social, do pós-II Guerra Mundial até os anos 1970.
Com o avanço dos processamentos informatizados, e mais
tarde da Internet, os hábitos, compras, preferências e psicologia de indivíduos
puderam ser identificados, medidos e classificados. Agora, os produtos podiam
mirar um indivíduo único, de acordo com suas necessidades particulares e com
grande precisão. Ao mesmo tempo, a produção, com a ajuda da automação, pôde introduzir
uma ampla variação dentre os próprios produtos. Como as preferências eram
extremamente diversas e uma necessidade secundária poderia ser satisfeita de
infinitas maneiras, o potencial de demanda explodiu. As empresas não mais
temiam um excesso de oferta. Os consumidores cedem seus dados de consumo e aos
indivíduos são constantemente fornecidas (bombardeadas) propagandas e produtos
que mais se adequam a eles. É difícil resistir à compra, e muitas famílias se
envolvem em considerável dívida para que isso se viabilize. O consumismo
triunfou, satisfazendo precisamente desejos individuais únicos. É claro que há
a importante questão de renda e desigualdade de renda, mas a satisfação de
consumo parece tão completa que o problema de salários estagnados do rendimento
médio da família trabalhadora veio à baila apenas nas últimas décadas.
Esse novo consumismo evoluiu em favor de uma satisfação
instantânea, de curto prazo: exemplos incluem todos os computadores e
videogames, entretenimento de todos os tipos que estão disponíveis no Youtube.
Há um interesse renovado em séries de TV superdramáticas com uma direção bem
profissional, que oferecem episódios curtos (30 minutos) mas satisfatórios,
como a NCIS e House of Cards. A própria televisão evoluiu para serviços on demand
(sob demanda) e compete com programas e filmes, disponíveis de imediato,
ofertados pela Netflix. O interesse em produtos mais difíceis e exigentes —
como livros – declinou particularmente na geração mais jovem. Livrarias e
pequenos cinemas estão fechando em todos os lugares.
Em vez disso, os armazéns e a entrega rápida da Amazon
estão revolucionando o comércio com uma ampla seleção de produtos, preços
baixos e entregas em um ou dois dias. O consumo instantâneo é possível. Também
a maneira de produção e marketing de produtos da moda evoluiu com a Zara
(Inditex), testando o mercado nas lojas e por meio de uma produção acelerada,
provendo, em algumas semanas,os modelos aceitos. Finalmente, temos mídias
sociais na forma do Facebook, WhatsApp, Instagram e Twitter, que realizam
contato instantâneo, envio de mensagens e serviços.
Obviamente, a internet e os celulares revolucionaram as
comunicações, tornando as conexões com pessoas, as informações e os
produtos/serviços extremamente fáceis. A Nokia, que produziu inicialmente o
celular mais vendido, tinha imaginado ofertar apenas serviços essenciais;
entretanto, a decisão da Apple, de se abrir para aplicativos de terceiros,
desencadeou centenas de milhares de novos serviços online, disponíveis nos
smartphones. Isso somado ao ascenso da Amazon, que propôs uma rapidez até então
desconhecida de entregas (até no mesmo dia) de milhões de produtos, combinado
com a propaganda individualizada, constitui um nível de consumismo sem
precedentes e extremamente individualizado.
Ao mesmo tempo, para conseguir mais compradores em
potencial, essas mídias tiveram que entreter mais, ser melhor modeladas,
chocantes e, em uma única palavra, viciantes. E o futuro de realidade virtual
irá nos mergulhar em mundos artificiais convincentes, não necessariamente de
nossa escolha. Novamente, o potencial é enorme, sem excluir as novas formas de
arte, mas a oportunidade em propaganda é gigantesca, já que esta terá controle
da realidade.
Mesmo adultos, não conseguimos ficar fora do telefone dia
e noite. Talvez não seja surpreendente que os país que trabalham em empresas de
tecnologia do Vale do Silício tenham se tornado mais restritivos ao uso de
serviços móveis por seus filhos, numa indicação do excesso. A própria Apple
começou a introduzir aplicativos para monitorar e limitar o uso.
Ainda está para ser visto qual tipo de relações de longo
prazo entre pessoas este novo sistema irá favorecer. E, mais importante, a
questão é qual controle podemos ter – enquanto consumidores e cidadãos – sobre o
design dos novos sistemas. Iremos deixá-los, como sempre, sob controle das
empresas?
Essa evolução de consumismo ocorreu dentro do contexto de
globalização, onde economias de escala extremamente grandes são possíveis para
países com grandes mercados internos e, portanto, com a possibilidade de
produzir para estes – e então exportar para o resto do mundo a baixos custos.
Até produtos complexos como o iPhone, com mais de 300 componentes, são
produzidos por intermédio de terceirização da produção, nas melhores fábricas
do mundo todo. Quanto a produtos menos complexos, como painéis solares, quase
todos podem ser produzidos e exportados do maior mercado interno, a China. O
controle de tecnologia e do acesso aos mega mercados internos dificulta a
competição por atores mais limitados, como a indústria italiana. Milhões de
postos de trabalho italianos foram perdidos por meio da realocação das fábricas
no Oeste Europeu e Ásia. Por consequência da concentração de centros de
produção, a partir dos quais se exporta e controla a tecnologia, a globalização
definiu um novo conjunto de ganhadores e um grande conjunto de perdedores;
criando desemprego em muitos setores e países onde atores minoritários não
conseguem competir.
Os maoires perdedores continuam a ser as nações em
desenvolvimento, que na verdade não estão se desenvolvendo: a fome aumentou de
460 milhões de pessoas, em 1974, para 800 milhões atualmente e a pobreza é a
mesma medida em 1984: aproximadamente 1 bilhão de pessoas sem nenhuma melhora
em mais de 35 anos. Quase todos os ganhos na redução da pobreza relativa
estiveram em um lugar, a China. Se uma linha mais alta de pobreza for utilizada
– a de cinco dólares ao dia –, o número de pessoas pobres chega a 4,3 milhões,
ou mais de 60% da humanidade. A saída líquida de recursos financeiros do mundo
em desenvolvimento foi negativa em 26,5 trilhões de dólares entre 1980 e 2012,
como confirma o relatório de 2016 da Global Financial Integrity and Center for
Applied Research na Escola Norueguesa de Economia. Os países desenvolvidos são
a rede de devedores das nações em desenvolvimento, o que exacerba bastante a
situação de fome e pobreza. Justamente o oposto do que seria de esperar. O
modelo de “desenvolvimento” proposto pelos ricos aos pobres na verdade ajuda os
ricos. A pobreza tem mais a ver com a relação entre os pobres e os ricos e
evoluiu para novas formas desde o passado colonial. Para superar a fome e
pobreza no Sul global, este mecanismo precisa ser radicalmente mudado. “Por
décadas nos contaram uma história: que a pobreza é um fenômeno natural e será
erradicada por meio de ajudas. É um conto confortante, mas ignora as forças
políticas mais amplas em jogo. Os países pobres são pobres porque são
integrados no sistema global em termos desiguais e as “assistências” apenas
ajudam a esconder isso.” Hickel, J. (2017).
Depois de décadas de intensa produção e consumo
individualizados, talvez alguns de nós estejamos buscando alguma coisa. Há algo
esquecido nas trocas e experiências sociais. É a intensa interação humana,
geralmente entre muitas pessoas, que é compartilhada e altamente valorizada.
Pode ser, por exemplo, uma viagem a um local primitivo e a chance de conversar
e trocar ideias com os que lá vivem. Pode ser um grupo da aula de culinária
para norte-americanos na Toscana. A experiência é construída em torno das relações
que podem ser estabelecidas localmente. Uma experiência muito importante é o
compartilhamento direto de culturas diversas, da música à dança, à arte, à
arquitetura, à antropologia. É claro que esta cultura pode ser compartilhada
indiretamente e vendida como um produto ou vídeo. Existe um continuum entre a
experiência direta e uma experiência indireta menos envolvente. Geralmente, a
experiência direta é sentida como mais única, e enriquecida por inúmeros
detalhes e acontecimentos locais. Há uma diferença entre subir os degraus da
Torre de Pisa e ver a fotografia. Há muita diferença entre experienciar o Palio
de Siena e assistir ao vídeo. O turismo é de fato uma área onde a oferta de
experiências pode reforçar seu valor. O que é requerido são mais programas
locais, atividades e trocas pessoais. Outro exemplo de experiência é a educação
colaborativa. Todos somos experts em algo, ou queremos conhecer mais de algo:
esta é a base de criar valores por meio de seminários e compartilhar variadas
formas de cultura entre amigos e conhecidos.
É claro que a experiência pode envolver muitas
contradições e problemas. Geralmente em concertos de música clássica ou sessões
de jazz, há uma alegria compartilhada entre os músicos e ouvintes. Este pode
não ser sempre o caso; o provedor ou facilitador da experiência compartilhada
pode não necessariamente compartilhar da alegria. Ele ou ela deverá ser
adequadamente recompensado. No melhores casos, o facilitador da experiência
deverá estimular os participantes a um nível profundo de troca, que deverá
também ser satisfatório ao facilitador. Isso requer habilidades consideráveis
em psicologia. É necessário treinamento para prover um nível alto de
experiência. Há também uma parte da psicologia que investiga os picos de
experiência dos indivíduos.
Uma característica chave da experiência, é que envolve
quase sempre uma troca entre pessoas e, portanto, nos leva pra longe da forma
individualista de consumismo. Outro elemento chave da experiência é que pode
ser aplicada a qualquer atividade ou interesse. Isso possui uma variedade de
formas, como os produtos individualizados. Significa que o espaço para
experiências sociais é também infinito. E, é claro, experiências sociais não
são uma novidade cultural e histórica. Os gregos valorizavam-nas bastante por
meio de seu amor pela música, dança, histórias épicas, tragédia, comédia,
filosofia e sua participação na democracia direta. Ainda que tivessem escravos,
a maioria dos gregos não proclamava ou buscava uma acumulação excessiva de
riqueza material.
O ponto é que nós podemos substituir consumismo frenético
de produtos e serviços individualizados com as experiências criadas em grande
parte localmente e com uma pegada ecológica muito mais leve. Isso irá nos
beneficiar como indivíduos e globalmente. Podendo ser uma parte essencial da
evolução da sustentabilidade.
As experiências e trocas sociais podem ser um antídoto
parcial ao globalismo. Não precisam ser produzidas em massa para exportação nos
mega mercados. Elas satisfazem uma das maiores necessidades da pirâmide de
Maslow, ao passo que provêm ocupações e as necessidades primárias de todos os
facilitadores locais.
Entretanto, isso requer uma mudança cultural significativa
ao reconhecimento da importância fundamental das relações sociais. Um exemplo
pode ser encontrado no turismo, que pode ser, e frequentemente é, uma jornada
de hotel em hotel, com contato limitado com a população local. “É quinta feira,
devemos estar na Bélgica.” Ou pode evoluir, contando com guias locais, diálogo
com as populações e hospedagem com famílias locais, para aprender e
compartilhar suas culturas.
Nas cidades, isso implica desenvolvimento amplo de
oportunidades sociais e habilidades. Pode tomar a forma de amizade, em
atividades como clubes de livro, grupos de discussão e viagens coletivas. Pode
envolver ativismo político, educação adulta contínua ou trabalho em
organizações voluntárias. Implica escutar seu cônjuge, vizinhos, amigos e
conhecidos.
A evidência empírica apoia os benefícios de experiências e
relações sociais. Nos estudos internacionais sobre felicidade, argumentou-se
(Bjornskov 2003; Vermuri and Constanza 2006; Bjornskovet al 2008) que países
felizes têm alto capital social e fortes redes de amizade. Um estudo notável
por DiTella e MacCulloch (2008) explora o Paradoxo de Easterlin, referindo-se
ao fato de que os dados sobre felicidade são tipicamente estáveis,
independentemente de aumento considerável de renda. Eles aferiram as respostas
sobre felicidade, dadas por aproximadamente 350 mil pessoas vivendo nos países
da OCDE. Apesar das vastas mudanças concretas no padrão de vida, entre 1975 e
1997, muito poucas contribuições à felicidade podem ser atribuídas ao aumento
na renda. Em compensação, elas estão negativamente correlacionadas com o número
médio de horas trabalhadas, degradação ambiental (medida pelas emissões de
óxido de enxofre), crime, abertura ao comércio, inflação e desemprego.
O famoso estudo de Harvard sobre Desenvolvimento Adulto,
sumarizado por Mineo L. (2017), relata: “a pesquisa, que durou quase 80 anos,
provou que abraçar a comunidade nos leva a viver mais e ser mais felizes. As
relações próximas, mais do que o dinheiro ou a fama, são o que mantém as
pessoas felizes em sua vidas, o estudo revelou. Aqueles laços protegem as
pessoas dos descontentamentos da vida, ajudam a atrasar algum declínio físico
ou mental e são melhores preditores de vidas longas e felizes do que classe
social, nível de QI ou até mesmo genes. Essa descoberta provou-se verdade tanto
entre os membros de Harvard quanto entre participantes das cidades do
interior”. Em animais, a sociabilidade é uma reação de sobrevivência às
pressões da evolução. Talvez o ser humano deva ser considerado um animal sob
pressão evolucionária.
A conclusão é que o reconhecimento da importância de
experiências e relações sociais pode nos ajudar a refrear o consumismo
individualista e permitir que mais recursos sejam dedicados a necessidades
primárias e sociais. Os consumidores, empresários e governos precisam ser mais
inteligentes e entender as escolhas em jogo, o que pode apoiar uma resposta
mais efetiva ao risco das mudanças climáticas.
* William Mebane, foi dIretor do Ente Nacional de
Eficiência Energética da Itália
Tradução: Marianna Braghini|Imagem: Banksy, Caçadores de
Carrinhos (2004)
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