A portuguesa Ana Telma Rocha interrompeu um direto da Sky
News para expressar a sua revolta. Vive há quase 20 anos no Reino Unido. Serviu
nesse país “em 32 empregos diferentes”, segundo confessa. Trabalha 63 horas
semanais. Cria riqueza na Grã-Bretanha, mas só serve para trabalhar calada. Na
hora de decidir, sobre o seu futuro e a sociedade em que vive, ela não é
chamada.
“O que me preocupa é o estado das coisas, o estado da
sociedade da qual uma pessoa fez parte durante 20 anos e do nada é apagada, é
invisível”, diz.
A operação que permite descartar os imigrantes como se
fossem lixo baseia-se numa correlação de forças que faz com que lhes seja
negada a voz nas nossas democracias.
As sociedades europeias têm como modelo a Grécia antiga:
não a sua elevação filosófica, mas o fato de só os nacionais terem alguns
direitos, o resto são metecos, que servem para trabalhar calados.
Aqueles que trabalham têm a força do trabalho, mas a sua
fraqueza política baseia-se na divisão. Metade dos pobres da Europa dirigem o
seu ódio e rancor para a outra metade dos pobres, por razões tão curiais como
não terem nacionalidade, “raça” ou religião que os mandantes de turno garantem
que é a certa. Os pobres de todas as “raças”, credos e nacionalidades podem
bater-se à paulada, mas o resultado é que ficarão sempre na mesma, pobres e
subalternos.
A criação da invisibilidade é uma operação ideológica que
se alicerça na privação de poder da maioria da população do planeta. É um
poderoso instrumento que permite fazer várias coisas, desde não conceder
direitos políticos aos imigrantes nos países europeus, até negar o direito à
vida às milhares de pessoas que são literalmente jogadas ao mar para morrerem
afogadas no Mediterrâneo. Gente que tem como único crime procurar uma vida
melhor para si e para os seus.
Para os pobres se sentirem contra outros pobres e
esquecerem que quem fica com a sua parte são os ricos é preciso um processo
histórico, econômico, político e conseguir condicionar a forma como os
oprimidos, migrantes ou não, veem a realidade.
As migrações são um dos processos que se aceleram com a
globalização. Tal como acontecem, no capitalismo globalizado, elas não derivam
da liberdade para circular, mas da liberdade de explorar. Os imigrantes –
mantidos propositadamente com poucos direitos sociais e nenhuns direitos
políticos – são usados como tropa de choque para implodir os poucos direitos
conquistados ao longo de gerações pelas classes operárias locais. Esta
degradação das condições sociais para a maioria da população é acompanhada por
uma outra operação ideológica de relevo: a tentativa de etnização do conflito
social.
Quem manda na política define um território e escolhe
aqueles que são amigos e aqueles que são inimigos, como explicava Carl Schmitt.
Quem consegue tornar hegemônicas essas regras ganha o tabuleiro do confronto
político. As elites que mandam no capitalismo vendem-nos, nos países
desenvolvidos, como uma divisão entre uma enorme classe média, a que eles
também pertenceriam, e uma matilha de imigrantes que habitam nos territórios
selvagens dos subúrbios.
Entre as elites autoritárias, do novo populismo de
extrema-direita, e as elites com o discurso clássico, apenas muda o tom. Nos
primeiros, os imigrantes devem ser controlados pela polícia e não ter apoios
sociais; nas elites do bloco central dos interesses, os imigrantes não devem
ter direitos mas devem ter caridade e reconhecimento da sua diferença cultural.
Na maioria dos países da Europa os governos reconhecem com mais facilidade a
existência de comunidades com culturas próprias que a existência de direitos
sociais para toda a gente.
Nessa operação ideológica , em que se divide a sociedade
em classes médias e gente de fora, consegue-se fazer desaparecer as classes
populares originárias do país e, mais importante, fazem-se desaparecer da vista
das pessoas o fato das elites ganharem uma fatia cada vez maior do rendimento
mundial.
Transforma-se o conflito social num jogo de sombras em que
se opõem comunidades culturais e étnicas diferentes, tornando invisível a luta
de classes. Essa estrutura generaliza-se para a sociedade no seu conjunto. Todo
o campo da luta social se torna um conflito entre identidades diferentes. A
luta das mulheres pela igualdade, dos migrantes pelos direitos políticos e
sociais, dos homossexuais pelo direito a não serem discriminados, dos negros
contra o racismo deixam de ser lutas universais pela igualdade para passarem a
ser apenas políticas identitárias. A ideologia dominante aprofunda divisões e
identidades de modo a que nunca haja uma maioria social pela igualdade de
todos, e para que toda a luta seja uma continua multiplicação de divisões entre
aqueles que não têm nenhum poder.
Blanqui esteve preso 37 anos. Na sua última prisão, nas
vésperas da Comuna de Paris, escreveu um enigmático texto chamado “A Eternidade
Conforme os Astros”. Páginas esquecidas que o malogrado pensador Walter
Benjamin comparava a Baudelaire. Nelas, o homem das muitas conspirações dos
iguais remetia para um universo frio e infinito as possibilidades de novas
formas de vida e sociedade que triunfassem onde a humanidade tinha tropeçado.
“Saberão por certo que o céu obedece às leis da igualdade, e encontra em si
mesmo os recursos para escapar à morte. Mas saberão que esse combate da vida
contra a morte é um drama que não tem nem começo nem fim, que obriga os que o
tomam como modelo a travar um combate indefinidamente repetido, e certo apenas
quanto a uma coisa, que nenhum final feliz se encontra no fim do caminho”.
Vendem-nos muitas vezes que a política é a arte do
possível. E que qualquer acordo medíocre é melhor que uma divergência de
princípios. É desta massa que é feita a atual Europa, onde se promete aos
eleitores votarem em candidatos a presidente da Comissão Europeia, mas no fim,
o Conselho Europeu resolve mandar fechar esse circo de ilusões e vender os
lugares de poder à melhor licitação negocial.
Num livro de Slavoj Zizek, A Europa à Deriva, encontram-se
duas citações da obra de Oscar Wilde, A Alma do Homem e o Socialismo: “É muito
mais fácil ter-se simpatia para com o sofrimento do que ter-se simpatia para
com o pensamento”, acrescentando-lhe uma outra passagem de Wilde em que este
defende que o simples horror ao sofrimento e a caridade em relação à pobreza
não fazem mais que prolongar as suas causas e aliviar a consciência dos
responsáveis por essa situação. “Tentam, por exemplo, resolver o problema da
pobreza mantendo os pobres vivos; ou, no caso de uma escola muito avançada,
divertindo-os. Mas isso não é uma solução, é um agravamento da dificuldade. O
objetivo adequado é tentar reconstruir a sociedade sobre uma base em que tal
pobreza venha a ser impossível. E as virtudes altruístas têm, sem dúvida,
impedido a realização de tal desígnio”, conclui o autor de A Importância de ser
Ernesto.
Não é por acaso que Zizek escolhe o grande provocador
britânico para inventariar aquilo que se propõe neste livro. O esloveno
coloca-se na posição que mais gosta: a de provocador. Mas sempre vai dizendo
algumas coisas fundamentais. A solução para a questão dos refugiados, apesar
dos horrores das imagens, não passa pela simples caridade para resolver o
problema imediato de centenas de milhares de pessoas; embora esse drama tenha
que ser já resolvido, a urgência da ação não nos pode dissuadir de afirmar que
essas pessoas são sujeitas de direitos e não apenas objetos de caridade. O
autor defende que a resolução da crise humanitária não se faz pela abertura,
maior ou menor, das fronteiras, mas por responder aos problemas globais e às
suas implicações nos países de origem dos refugiados. Zizek defende, também,
que não se pode deixar à extrema-direita o monopólio da proximidade das pessoas
e da preocupação sobre a situação criada na Europa com o enorme fluxo de
refugiados. É talvez aí o ponto mais polêmico do livro, a ideia que uma posição
de abertura de fronteiras aqui e agora, é meramente uma posição simbólica de
quem sabe que isso não acontecerá. Slavoj Zizek, num capítulo sugestivamente
chamado “Quebrar os Tabus da Esquerda”, atira-se a uma concepção muito
difundida da esquerda, dita multiculturalista, segundo a qual “um inimigo é
alguém cuja história nunca ouvimos”.
Para o filósofo, “existe um claro limite para este
procedimento. Também estaremos prontos a afirmar que Hitler era só um inimigo
porque a sua história não foi ouvida? Ou, será que, pelo contrário, quanto mais
conheço e ‘compreendo’ Hitler, mais Hitler é o meu inimigo?” E não se fica por
aí, há em parte da esquerda a ideia que tudo o que vem dos oprimidos é
necessariamente bom. Para além de defender que essas pessoas não sejam oprimidas,
deveríamos, segundo essa esquerda, compreender de tal maneira a sua situação e
circunstâncias, que tudo o que eles fazem deve ser defendido. Para o autor da
Europa à Deriva, as coisas quase nunca são assim. Faz uma crítica similar a
Etore Scola no filme Feios, Sujos e Malvados. A miséria não nos faz ser boas
pessoas e gente aconselhável. Mas isso só reforça a convicção que se deve
combater as causas que levam as pessoas a ser exploradas. No seu pensamento, a
contemporização com os aspectos retrógrados da religião, em prol de um
multiculturalismo fofo, não existem. Ele recupera a ideia de Marx que “a
religião é o ópio do povo” ao defender que “o próximo tabu a ser descartado sem
piedade é a equiparação de qualquer referência ao legado emancipatório europeu com
o imperialismo cultural e o racismo”. Criticar práticas e concepções culturais
do islamismo dos refugiados não significa ser cúmplice da sua opressão. “O
próximo tabu esquerdista a deixar para trás é o de obstar a qualquer crítica ao
islão como um caso de ‘islamofobia’”. A superação desta situação de profunda
desigualdade que se vive no mundo, e a situação de selvajeria a que foram
levados grande parte de territórios do mundo, a golpes de mísseis, não se
corrigem por uma questão de tolerância multicultural, mas resolvendo as
questões através de um novo projeto de
universalismo emancipatório. Para Zizek, existem quatro antagonismos que
podem permitir que o capitalismo global, que gera os racistas e os
fundamentalistas, não se reproduza eternamente: “a ameaça iminente de
catástrofe ecológica, a inadequação da propriedade privada para a chamada
‘propriedade intelectual’, as implicações sócio-éticas dos novos
desenvolvimentos técnico-científicos (sobretudo a biogenética), e, por último,
mas não menos importante, as novas formas de apartheid, os novos muros e
bairros de lata”. É, para o autor, este aspecto final que politiza e dá tom às
contradições existentes no sistema.
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