Da série De Tédio Ninguém Morre Neste País – parte 3,
exsurge no horizonte, ao mesmo tempo, PEC do Dep. Ivan Manente (a CCJ da Câmara
aprovou dia 20.11.2019 o relatório por 50 a 12) e Projeto capitaneado por
Alcolumbre, este por alteração do Código de Processo Penal, para impor prisão
em segunda instância — a revanche ao julgamento das ADCs 43, 44 e 54. Se não
for PEC, vai por via ordinária. De algum modo, dizem que vai.
Um dos projetos tem como alvo o artigo 283 e os dispositivos
que tratam dos recursos no Código de Processo Penal. Dizem que foi Moro quem
assoprou no ouvido dos senadores essa “saída”.
A proposta de nova redação do artigo 283 do CPP é a
seguinte:
Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em
decorrência de condenação criminal exarada por órgão colegiado ou em virtude de
prisão temporária ou preventiva.
Como se vê, uma técnica legislativa inadequada porque faz
uma "mistura" entre a prisão processual, garantia do processo ou da
sua efetividade, e execução provisória da pena, a prisão como modalidade de
pena. Na verdade, diz o contrário do que decidiu o STF.
Além desse problema, há a violação ao artigo 5º, LVII da
CF. O legislador ordinário quer fazer como o ministro Fachin: quer interpretar
a Constituição de acordo com a lei ordinária, moda que parece que vai pegar. O
Brasil ainda vai mostrar ao mundo essa nova “técnica”, pela qual é possível
mudar a Constituição via lei ordinária...!
O Congresso parece não se dar conta — dominado em parte
pelos gritos das alas punitivistas — de que, se aprovar uma proposta que anula
a decisão do STF, dirá que o STF já não tem a última palavra sobre a
constitucionalidade das leis. Mas, afinal, que importância tem isso para um
enorme grupo de parlamentares que pregam até mesmo o fim da Constituição?
Uma questão intriga a comunidade jurídica: se o artigo 283 foi declarado constitucional
via ADC, isso tem efeito vinculante. Esse efeito não atinge o próprio
Parlamento? Não estaria o parlamento, agora, querendo dar o drible da vaca no
STF? O parlamento nunca está proibido de legislar. Todavia, quando há uma ação
constitucional com efeito vinculante explícito, de que modo o parlamento pode
inventar uma espécie de moto contínuo, porque a nova lei pode ser declarada
inconstitucional e, assim, criar ainda maior instabilidade
jurídico-institucional?
Já as outras propostas de alteração (e até inserção de um
novo artigo no CPP) invertem o ônus argumentativo. Sim, um código de garantias
que inverte o ônus contra o acusado. A regra passaria a ser prender após a
segunda instância, o que contraria de novo e sempre a decisão do STF e a
cláusula pétrea da CF.
Vejamos:
Artigo 617-A. Ao proferir acórdão condenatório ou
confirmatório da condenação, o tribunal determinará a execução provisória das
penas aplicadas, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser
interpostos.
§ 1º O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de
autorizar a execução provisória das penas se houver questão constitucional ou
legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa levar à provável
revisão da condenação.
(...)
§ 3º O mandado de prisão somente será expedido depois do
julgamento dos eventuais embargos de declaração ou dos embargos infringentes e
de nulidade interpostos.”
Mais:
Artigo 637. O recurso extraordinário e o recurso especial
interpostos contra acórdão condenatório não terão efeito suspensivo.
§ 1º Excepcionalmente, poderão o Supremo Tribunal Federal
e o Superior Tribunal de Justiça atribuir efeito suspensivo ao recurso
extraordinário e ao recurso especial, quando verificado cumulativamente que o
recurso:
I - não tem propósito meramente protelatório; e
II - levanta questão constitucional ou legal relevante,
com repercussão geral, e que pode resultar em absolvição, anulação da
condenação, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto.
Por essa inversão, a de que prender é a regra, a proposta
viola o princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da
decisão, retirando-lhe a eficácia prática. Não passa de fraude à lei e à
Constituição. Direito sendo derrotado por discursos morais.
A proposta de alteração do 283 peca inclusive pela falta
de técnica legislativa, criando uma cortina de fumaça, porque coloca a decisão
condenatória decorrente de decisão colegiada (inclui o júri, porque não fala em
segunda instância) como forma autônoma autorizativa de prisão (imediata). A
decisão se basta. Automatiza a prisão. Nem precisa fundamentar a necessidade de
prender.
Já a inserção de um 617-A inverte o sentido da garantia da
presunção de inocência tal como consagrada na Constituição, além de afrontar a
decisão do STF que acaba de dizer que o artigo 283 é constitucional.
Na sequência, cria-se um efeito suspensivo, por exceção
(excepcionalmente, diz o projeto), para recursos que tenham matéria com
repercussão geral (no STJ e STF). Quando é que se tem essa “excepcionalidade”?
De que modo um caso concreto de um réu, para ter efeito
suspensivo, pode ter demonstrada a sua repercussão geral? Ou: de que modo
poderá ser rejeitado o efeito suspensivo caso o réu não consiga provar que há
repercussão geral? Terá que iniciar o cumprimento de sua pena, porque seu caso,
por mais absurdo que possa parecer, não teve a sorte de ser contemplado com um
juízo de Repercussão Geral?
Como será feito essa aferição? Ora, repercussão geral no
STF, por exemplo, tem pauta para os próximos 5 anos (no mínimo). Como lidar com
isso em termos de urgência que a liberdade necessita? Ou liberdade não tem
urgência?
Mais: Quer dizer que o sujeito é condenado e terá que
comprovar que o seu caso não é só dele, de sua liberdade, ou seja, seu caso tem
de ter transcendência? Mas, a liberdade não é só dele? Liberdade tem como
condição a demonstração de transcendência — e só então tem possibilidade de
efeito suspensivo?
Já prevejo a formação de um muro para conter os recursos.
Como já acontece hoje. É o que chamamos de jurisprudência defensiva.
Mas, calma. Tem mais. Tem a PEC capitaneada por Ivan
Manente ( a CCJ da CD aprovou ontem). Ela altera dois dispositivos da CF (102 e
105). Faz o drible da vaca nas cláusulas pétreas. Bola por um lado, jogador do
outro. A regra é: condenação em segundo grau, prisão. O acusado pode fazer
revisão criminal. Por que ninguém pensou nisso antes? De novo, o Brasil dará
lições de processo penal e direito constitucional ao mundo. Alguém sabe como
funcionam hoje as ações de revisão criminal? Os requisitos? Como serão as
“revisionais”? De todas as ideias, essa parece ser a mais absurda. O sujeito é
condenado, vai preso e busca, via revisão criminal... deixa pra lá. Ação
revisional... com repercussão geral. Essa é novíssima. Mas tem também a ação
revisional especial, esta a ser proposta junto ao STJ. Parece que a tal PEC
altera o sentido do que seja coisa julgada. Confuso isso, pois não? Esse
parlamento... Ficou mesmo insuflado pelos discursos tipo GloboNews, Datena
etc.
Lamentavelmente, os parlamentares não entendem que, ao
eliminarem o RE e o Resp, para executarem a pena de prisão na segunda
instância, estão criando um impacto sistêmico. Um tsunami processual!!! Para além da crítica da revisão criminal via
rescisória, esqueceram especialmente do cível. Sim, todas as condenações,
também as cíveis, transitarão em julgado na segunda instância. Economicamente
desastroso para o setor privado, mas, especialmente, para a Fazenda Pública! Os
valores a pagar por precatórios chegarão a trilhões! Uma bomba. Bom, talvez com
isso alguns parlamentares alcançarão o que desejam, consciente ou
inconscientemente: a destruição do país. E da democracia! Viva eu, viva tu,
viva o rabo de tatu!!!!
Ah, para não esquecer. Nada disso é necessário. Como venho
me esfalfelando em dizer, o STF não proibiu que se prenda a partir do segundo
grau. Demonstrei isso na semana passada, a partir de um caso de São Paulo
(decisão do juiz Ali Mazloum).
Mas não adianta. Vale o “fator Sarderberg” — esse grande
jurista contemporâneo, ganhador da Balança de Ouro no último campeonato de
direito constitucional — pelo qual o que vale são falsas narrativas. Vale,
mesmo, é dizer: o dólar subiu porque o STF decidiu proibir a prisão em segundo
grau. O dólar só baixará de for aprovada a volta da prisão. Ou seja: a redenção
do Brasil virá das prisões! Que coisa, não? A ABDGLOB (academia brasileira de
direito GloboNews) faz escola. Já posso ver livros de direito facilitado
citando os constitucionalistas Merval e Sarderberg (deve ser um jurista alemão,
dirão alguns professores!).
Para se ter uma ideia, tão “caótico” (sic) ficou o sistema
depois da decisão das ADCs que, no Rio Grande do Sul, depois da “caótica
decisão do STF” (sic) que “consagrou a impunidade” (sic), apenas 3 condenados —
sim, apenas 3 — saíram com base na nova posição do STF. Realmente, doutor
Sarderberg e quejandos, estamos diante de um caos. E foram 8 da Lava Jato.
Outro caos (sic).
Bom, segundo o pessoal que anda de camisa amarela da CBF
pelas praças, chutando retrato de ministros do STF (em Porto Alegre velaram um
caixão de defunto no Parcão, onde estava escrito: STF), seriam 190 mil os
condenados a serem soltos. Uma vereadora foi ao delírio “denunciando a saída do
casal Nardoni”. “— Tudo culpa do STF, berrava a edil”, vestindo amarelo.
Pois é. Mas, de que modo podemos convencer as neocavernas
de WhatsApp, essas verdadeiras células terroristas de ignorância artificial que
estão tomando conta da esfera pública? O meme é: Fatos não há; só há
interpretação dos fatos. O niilismo venceu.
Portanto, o Parlamento pode vir a estragar tudo, ao dar
ouvidos a senadores e deputados que têm raiva do Direito e das Instituições. E
dar ouvidos a parlamentares que pregam a ditadura. Afinal, que diferença faz
uma PEC ou uma decisão do STF para eles? Nenhuma, certo?
Vamos jogar a água suja com a criança dentro? Com a
palavra, o parlamento. E a comunidade jurídica, que de há muito já se entregou
para os juízos morais. O direito foi substituído pela moral. O problema maior
ocorrerá quando a moral já não servir. Chamaremos, então, o Direito? E depois,
se não concordamos com o Direito, apelaremos de novo à moral? Até quando?
Até quando se instalar a anomia.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa
(RJ).
https://www.conjur.com.br/2019-nov-21/senso-incomum-alterar-presuncao-inocencia-nao-mudam-leis-raiva
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