“Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que
sois pagãos, e somos nós quem traz aos pobres, aos explorados, as novas da
fraternidade e da igualdade. Somos nós quem está a marchar para a conquista do
mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar
pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu”. Rosa de
Luxemburgo, revolucionária comunista alemã.
“Se quiserem fazer uma ideia das primeiras comunidades
cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional de
Trabalhadores”. Ernest Renan, historiador alemão do século XIX autor de A vida
de Jesus e um dos principais estudiosos do cristianismo.
“E perguntou-lhe (a Jesus) um aristocrata. Bom, mestre,
que devo fazer para possuir a vida eterna? (...) Ainda te falta uma coisa.
Vende o que tens, dá aos pobres e terás tesouros no céu; então, vem e segue-me.
Então, ao ouvi-lo, ficou muito triste porque era muito rico”. Novo Testamento.
Um cristianismo
proletário e comunista
Um anticomunismo atávico ganhou nova força no interior das
cúpulas de algumas igrejas ditas cristãs. Nesse processo não se incluem apenas
os pastores pentecostais, mas também setores do clero católico. Estranhamente,
apareceu até uma exótica “teologia da prosperidade”, cujo espírito é:
enriquecei-vos (e não no sentido espiritual, como prevê os Evangelhos). O
objetivo das preces é nos tornar mais prósperos materialmente. Ganhar na
loteria passou a ser a maior graça possível a ser alcançada. Igualmente há uma
perigosa aproximação desse clero reacionário com políticos e governos que negam
os direitos humanos e até admitem práticas abomináveis, como a tortura e
genocídio. Algo que teria sido veementemente condenado pelos primeiros
cristãos.
De fato, o processo de enfraquecimento do comunismo
original junto às cúpulas das igrejas cristãs é antigo e não se deu sem
contradições. Ele teve como um dos marcos fundamentais a fusão Igreja-Estado
durante o reinado de Constantino, que viveu entre 272-337. Até meados do século
III o comunismo era uma das bases ideológicas do cristianismo. Os exemplos se
multiplicam nos próprios textos do Novo Testamento e dos primeiros teólogos
cristãos. E estão presentes em escritos pagãos do Império Romano. O historiador
alemão Max Beer no seu clássico História do socialismo e das lutas sociais
escreveu: “Nos anos seguintes ao martírio de Jesus, as primeiras comunidades,
compostas quase que exclusivamente de judeus proletários, viveram ou de acordo
com o sistema comunista ou no espírito do ideal comunista”.
Aquele comunismo dos primeiros cristãos não é idêntico ao
comunismo moderno, criação do século XIX, contudo tem algumas similitudes. Não
sem razão, os fundadores do “socialismo científico” (Marx e Engels) e alguns de
seus primeiros ideólogos/intelectuais, como Karl Kautsky e Rosa de Luxemburgo,
se interessavam pela história desses primeiros cristãos e buscaram construir
pontes entre ela e o socialismo do seu tempo. Vejamos o que diz a Apresentação
ao livro A luta de classes na França de K. Marx feita por Engels: “no Império
Romano atuava um perigoso partido subversivo. Esse partido minava a religião e
todos os fundamentos do Estado; negava sem rodeios que a vontade do imperador
fosse a lei suprema; era um partido sem pátria, internacional (...). Este
partido subversivo, que era conhecido pelo nome de cristãos, tinha também uma
forte representação no exército; legiões inteiras eram cristãs (...). O
imperador Diocleciano já não podia assistir tranquilamente ao minar da ordem
(...). Então, emitiu uma lei contra os socialistas, queria dizer contra os
cristãos (...). Foram proibidas as reuniões desses subversivos, os seus locais
de reunião encerrados ou demolidos, os símbolos cristãos, cruzes, proibidos,
como na Saxônia são os lenços vermelhos (dos socialistas). Mas estas leis de
exceção não tiveram êxito (...). Este (Imperador) vingou-se com a grande
perseguição aos cristãos no ano 303 da nossa era (...). E foi tão ‘eficaz’ que
dezessete anos mais tarde (...) o autocrata de todo o Império Romano,
Constantino, (...) proclamou o cristianismo religião de Estado”.
Dado a importância do tema, Engels retomou o tema num
pequeno ensaio dedicado ao estudo do cristianismo primitivo. Assim iniciou sua
obra: “A história do cristianismo primitivo oferece curiosos pontos de contato
com o movimento operário moderno. Como este, o cristianismo era, na origem, o
movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos
libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou
dispersos por Roma. Os dois, o cristianismo como o socialismo operário, pregam
uma libertação próxima da servidão e da miséria (...). Os dois são perseguidos
e encurralados, os seus aderentes são proscritos e submetidos a leis de exceção
(...). E, apesar de todas as perseguições, um e outro abrem caminho
vitoriosamente. Três séculos depois do seu nascimento, o cristianismo é
reconhecido como a religião do Estado e do Império romano: em menos de sessenta
anos, o socialismo conquistou uma posição tal que o seu triunfo definitivo está
absolutamente assegurado”. Essas seriam comprovações de que, como o
cristianismo, o socialismo poderia ser vitorioso apesar da repressão e das
calúnias contra os quais recaiam. Os grandes caluniadores eram justamente os
membros do alto clero.
Rosa de Luxemburgo e
o clero reacionário
Rosa de Luxemburgo, da mesma forma, escreveu sobre o
assunto, O socialismo e as Igrejas, visando ganhar para sua causa os operários
católicos poloneses e isolar o clero ultrarreacionário: “Os social-democratas
propõem-se a pôr fim à exploração do povo pelos ricos. Pensar-se-ia que os
servidores da igreja deveriam ter sido os primeiros a desempenhar-se desta
tarefa (...). Não é Jesus Cristo quem ensina que ‘é mais fácil um camelo passar
pelo furo de uma agulha que um rico entrar no Reino dos Céus’? (...) Se o clero
realmente deseja que o princípio ‘Ama o teu próximo como a ti mesmo’ seja
aplicado na vida real, por que é que não recebe bem e com entusiasmo a
propaganda dos social-democratas? Os social-democratas tentam, através de uma
luta desesperada e da educação e organização do povo, subtraí-lo à opressão em
que se encontra e oferecer-lhe um melhor futuro para os filhos. Todos devem
admitir que, neste ponto, o clero deveria abençoar os social-democratas, pois
não é ao clero que eles servem, e sim a Jesus Cristo, que diz que ‘o que
fizeres aos pobres é a mim que o fazeis’?”.
Continua Rosa: “Contudo vemos o clero, por um lado,
excomungando e perseguindo os social-democratas (...). Assim, o clero, que se
torna o porta-voz dos ricos, o defensor da exploração e opressão, põe-se em
flagrante contradição com a doutrina cristã (...). Os padres de hoje, que
combatem o comunismo, condenam, na realidade, os primeiros apóstolos cristãos,
pois estes não passavam de ardentes comunistas (...). Se Cristo aparecesse na
terra, atacaria com certeza os padres, os bispos e arcebispos que defendem os
ricos e vivem explorando os desafortunados, como outrora atacou os comerciantes
que expulsou do templo para que a presença ignóbil deles não maculasse a Casa
de Deus (...). Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que sois
pagãos, e somos nós quem traz aos pobres, aos explorados, as novas da
fraternidade e da igualdade. Somos nós quem está a marchar para a conquista do
mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar
pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu”.
Rosa cita o historiador alemão Vogel que ainda em 1780
constatou: “De acordo com a regra, todo cristão tinha direito à propriedade de
todos os membros da comunidade, caso quisesse, podia pedir que os membros mais
ricos dividissem a sua fortuna com ele, de acordo com as suas necessidades.
Todo o cristão podia fazer uso da propriedade dos seus irmãos. Assim, os
cristãos que não tinham casa podiam exigir do que tinha duas ou três que os
recebesse; o proprietário conservava para si próprio apenas a sua própria casa.
Mas por causa da comunidade de gozo dos bens, tinha de dar-se habitação àquele
que a não tinha’”. Entre os primeiros cristãos, agora segue a própria autora,
“o dinheiro era colocado em caixa comum e um membro da sociedade, especialmente
escolhido para esse fim, dividia a fortuna coletiva entre todos. Mas isto não
era tudo. Entre os primeiros cristãos o comunismo foi levado tão longe que eles
tomavam as suas refeições em comum. A sua vida familiar era, portanto, abolida;
todas as famílias cristãs, numa sociedade, viviam juntas, como uma única grande
família (...) Deste modo, os cristãos do I e II século foram fervorosos adeptos
do comunismo”. Por isso, todos se tratavam de irmãos e irmãs.
Essa situação não poderia durar muito tempo: “Ao
princípio, quando os seguidores do novo Salvador constituíam um pequeno grupo
na sociedade romana, a divisão do pecúlio comum, as refeições em comum e o
viver debaixo do mesmo teto, eram praticáveis. Mas quando o número de cristãos
se espalhou pelo território do Império, esta vida comunitária dos seus
partidários tornou-se mais difícil. Em breve desapareceu o costume das
refeições comuns e a divisão dos bens tomou um novo aspecto. Os cristãos não
mais viveram como uma família; cada um tomou cuidado da sua própria propriedade
e já não ofereciam o total dos seus bens à comunidade, mas apenas o supérfluo.
As ofertas dos mais ricos dentre eles ao organismo geral, perdendo o seu
caráter de participação numa vida comum, em breve se transformaram em simples
esmolas, desde então os cristãos ricos deixaram de fazer caso da propriedade
comum e passaram pôr ao serviço dos outros apenas uma parte do que tinham,
parte que podia ser maior ou menor, consoante a boa vontade do doador. Assim,
no coração do comunismo cristão, apareceu a diferença análoga à que reinava no
Império Romano e contra a qual os primeiros cristãos tinham combatido. Em breve
foram apenas os cristãos pobres – os proletários – que tomaram parte em
refeições comuns”, afirmou Rosa.
Kautsky e o
cristianismo primitivo
Um dos mais importantes estudos sobre o cristianismo
primitivo foi redigido por Karl Kautsky, o principal ideólogo da
social-democracia pós-Engels. Para ele “a comunidade cristã abarcava em seus
primórdios, quase que exclusivamente elementos proletários e era uma
organização proletária. E isto permaneceu ainda durante muito tempo após sua
criação”. Cita então Friedlander – autor de Vida e costumes romanos: “é certo
que antes da metade ou do final do século II, só tinham uns quantos partidários
isolados entre as classes superiores (...). O pobre e o humilde, dizia
Lactâncio, estão mais dispostos a crer do que o rico, cuja hostilidade, sem
dúvida alguma, surgiu em muitos aspectos contra as tendências socialistas do
cristianismo”. Engels, por sua vez, havia escrito: “Os gentios diziam,
desdenhosamente, que os cristãos só podiam converter os ingênuos, escravos,
mulheres e crianças; que os cristãos eram rudes, sem educação e rústicos; que
os membros de suas comunidades eram, principalmente, pessoas sem importância”.
Kautsky constata que: “há (entre os primeiros cristãos) um
selvagem ódio de classes contra o rico. Percebe-se essa condição no Evangelho
de São Lucas (...). O rico é condenado pela única razão de ser rico. (...) O
mesmo Evangelho faz jesus dizer: ‘Quão dificilmente entrarão no reino de Deus
os que tem riqueza! Porque é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma
agulha que um rico entrar no reino de Deus’”. Ou seja, um rico entrar no reino
dos Céus era quase uma impossibilidade para aqueles cristãos originais. Um dos
primeiros grandes apologistas cristãos Tertuliano reafirmou: “Deus despreza os
ricos e protege os pobres. O reinado de Deus foi feito para os pobres e não
para os ricos”.
Nos Atos dos apóstolos, descrevendo as primeiras
comunidades, lemos: “E preservaram na doutrina dos apóstolo, e na comunidade e
na partilha do pão e das orações (...). E todos os que acreditavam estavam
juntos e tinham todas as coisas em comum; e vendiam suas propriedades e seus
bens e repartiram-nas entre todos” (II,42,44,45) “e ninguém dizia ser seu algo
que possuía, mas todas coisas eram comuns. Não havia nenhum necessitado entre
eles: porque todos que possuíam terras e casas, vendiam-nas e traziam os
valores da venda e os punham aos pés dos apóstolos e era repetido a cada um
segundo tinha necessidade”. (IV. 32, 34,35). Jesus chegou a afirmar “E qualquer
um de vós que não renuncia a todas as coisas que possui, não pode ser meu
discípulo”. Noutra passagem está dito: “E perguntou-lhe (a Jesus) um
aristocrata. Bom, mestre, que devo fazer para possuir a vida eterna? (...)
Ainda te falta uma coisa. Vende o que tens, dá aos pobres e terás tesouros no
céu; então, vem e segue-me. Então, ao ouvi-lo, ficou muito triste porque era
muito rico”.
“Segundo São João, os doze apóstolos possuíam uma caixa
comum enquanto Jesus ainda vivia. Mas Jesus também exige que todos os outros
discípulos entreguem suas propriedades”. Assim, o cristianismo primitivo: “era
um vigoroso comunismo, embora confuso, que prevalecia na comunidade em seus
primórdios, uma condenação de toda propriedade privada, um impulso por uma
ordem social nova e melhor, em que todas as diferenças de classe desaparecerem
com a divisão da propriedade (...). A primeira comunidade comunista do Messias
formou-se em Jerusalém (...). Mas as comunidades logo surgiram em outras partes
que tinham um proletariado judaico.” Logo surgiram entre os não judeus.
O comunismo dos primeiros cristãos foi sofrendo várias
modificações com o passar dos anos, mesmo no período anterior a sua
transformação em religião oficial do Estado sob Constantino. A primeira delas
foi o próprio aumento dos adeptos e das comunidades, distribuídas em várias
regiões. A segunda foi o ingresso gradual de setores sociais mais privilegiados.
“Na medida que aumentava a influência das classes educadas sobre o
cristianismo, este se distancia cada vez mais do comunismo”, diz Kautsky.
Ainda segundo esse autor, originalmente, “a comunidade
cristã deve ter sido, sobretudo, uma organização de luta (...). Isso
correspondia plenamente à situação histórica da coletividade judaica do seu
tempo”, ocupada e oprimida pelos romanos. “Seria totalmente incrível se
precisamente uma seita proletária houvesse permanecido intocada pela atmosfera
geral revolucionária”. Naquela época eram comuns as revoltas individuais e
coletivas contra a dominação romana. “Mas a situação mudou após a destruição de
Jerusalém. Os elementos que haviam dado a comunidade messiânica seu caráter
rebelde foram derrotados. E a comunidade do Messias tornou-se cada vez mais uma
comunidade antijudaica, dentro de um proletariado não judaico, que não tinha
capacidade nem desejo de lutar (...). O reino de Deus que deveria descer do Céu
para Terra, transferiu-se cada vez mais para o Céu (...). Na medida em que a
esperança messiânica no futuro assumiu cada vez mais uma forma celestial,
tornou-se politicamente conservadora ou indiferente”. É claro que esse processo
não se deu da noite para o dia e sem inúmeras contradições.
Começou-se a pregar o respeito cego às autoridades, sejam
quais fossem. Lemos na Epístola de São Paulo aos Romanos: “Todo homem se
submeta às autoridades superiores, pois não há autoridade senão de Deus, onde
ela há, por Deus é ordenada. Assim, quem se opõe à autoridade resiste à ordem
de Deus; e os que resistem recebem a condenação ao inferno”. Muitos afirmam que
esta formulação subserviente ao poder seria uma maneira de proteger a pequena e
fragilizada comunidade cristã das autoridades imperiais romanas. O problema é
que muitas das práticas pagãs obrigatórias, como a veneração ao Imperador e a
participação nos cultos do Estado, não eram obedecidas a contento pelos
cristãos. Isso levava a uma eterna desconfiança sobre eles, por mais que
buscassem demonstrar respeito aos governantes de plantão. Isso explica, em
parte, as várias perseguições sofridas até o século IV.
A mesma concessão foi feita em relação à escravidão, que
os primeiros cristãos não viam com bons olhos: “O autor da Epístola de Paulo
aos Colossenses (...) ordena aos escravos o seguinte: ‘servos, obedecei em tudo
os vossos senhores não servindo apenas sob vigilância (...), mas com
simplicidade de coração, temendo ao Senhor’. O autor da Primeira Epístola de
Pedro – provavelmente escrita no tempo de Trajano – usa termos ainda mais
claros: ‘Servos, sede submisso com todo temor a vossos senhores; não somente os
bons e humanos, mas também os indignos’”. Isso repete-se na Primeira Epístola
de Paulo a Timóteo: “E os que tem senhores fiéis (cristãos) não os menosprezem
por serem irmãos; sirvam-nos com ainda melhor vontade, pois são fiéis e
participantes das refeições comuns e se dedicam às boas ações”. Naquele tempo
escravos e senhores chamavam-se de irmãos e compartilhavam conjuntamente da
ceia cerimonial. O cristianismo era uma religião universal que buscava incluir
a todos, independentemente da nacionalidade, incluindo os escravos. No entanto,
não advogou a abolição da escravidão, mesmo nos seus primeiros anos. O
escravismo era o Modo de Produção da época, a base econômica do Império romano.
O abolicionismo, como movimento, seria algo extremamente revolucionário e
perigoso.
“Mas, para fazer com que os ricos se sentissem bem dentro
da comunidade, o caráter dele tinha de mudar: ódio de classe aos ricos tinha
que ser abandonado. O espirito proletário combativo da comunidade foi
prejudicado por esse esforço de atrair o rico e fazer-lhe concessões, como
sabemos a Epístola de Tiago às 12 tribos da diáspora (...) admoesta os membros
de algumas igrejas: ‘Porque se em nossa comunidade entra um homem com anel de
ouro e trajes luxuosos e também entra um pobre com roupas modestas e tratardes
com deferência ao que traz as roupas preciosas e lhe disserdes: Senta-se aqui
em bom lugar. E disserdes aos pobres: Fica em pé, ou senta-se abaixo do estrado
dos meus pés (...). Se fazeis essa diferença entre pessoas, cometeis pecado’.
Conclui Kautsky: “Na teoria, o comunismo não foi largado; e, na prática,
unicamente o rigor de sua aplicação parecia ter se suavizado (...). Apesar do
comunismo haver se enfraquecido muito, as refeições em comum continuaram ainda
a ser vínculo firme que unia todos os camaradas”. Alguns séculos depois isso
desapareceria. Das refeições comunitárias cotidianas participavam apenas os
pobres. Os ricos compartilhavam a comunhão durante a missa em lugares
especiais. Prática consolidada na “Idade Média”.
Heranças do
comunismo cristão
Segundo Iakov Lentman, “seria, no entanto, um erro pensar
que já na primeira metade do século II o cristianismo era a religião das
classes dominantes de Roma. O reconhecimento da escravatura e o apelo à
submissão dirigido aos escravos testemunham antes uma manifestação de
fidelidade ao Império, e não o aparecimento nas comunidades cristãs de um
contingente influente de possuidores de escravos (...). A composição social das
comunidades era ainda bastante homogênea e incluía, para além dos escravos,
artesãos e trabalhadores das cidades. Não é por acaso que no segundo grupo de
Epístola paulinas se encontram frequentemente apelos a ‘trabalhar com as
próprias mãos’ (I Tessalonicenses, IV, 11) (...). O célebre preceito: ‘Se
alguém não quiser trabalhar, que não coma também’ (II Tessalonicense, III, 10)
só pode evidentemente surgir num meio laborioso”. E continua: “mas, é visível
que a partir da segunda metade do século II as camadas dominantes da população
começam já a desempenhar um papel decisivo no seio das comunidades cristãs”.
Gerard Walter, por sua vez, afirma: “Teoricamente, o
princípio da comunidade dos bens, tal como a abolição de toda a propriedade
privada, permanecia inscrito em lugar de honra no programa da sociedade cristã
primitiva. Na prática, depressa se havia regressado às formas econômicas da
sociedade burguesa pagã da época. De compromisso em compromisso, de concessão
em concessão, no espaço de vinte anos os preceitos igualitários ditados
imperativamente pelos primeiros fundadores do cristianismo (...) tinham-se
pouco a pouco transformado numa espécie de recomendação platônica que é para
recordarmos, mas cuja realização integral era antecipadamente tida como
impossível. (...) Mas, apesar de toda fragilidade desta tentativa (...) o
simples fato da existência nos primeiros anos da era cristã de uma pequena
sociedade de homens que se esforçaram por fazer durar tanto tempo quanto lhes
foi possível o regime comunista no seu meio deixou um traço profundo no
espírito das gerações que se seguiram (...) tiveram uma repercussão imensa
através de séculos e séculos”.
Mesmo depois de um certo acomodamento do cristianismo e o
seu afastamento do comunismo, vários “padres da Igreja” continuaram denunciando
o crescimento das desigualdades sociais na comunidade cristã, o privilégio dado
aos mais abastados e exortando a se voltarem ao espírito do comunismo dos
primeiros Apóstolos. São Basílio, ainda no Século IV, dirigindo-se aos ricos
afirmou: "Miseráveis, como vos ireis justificar diante do Juiz do Céu? Vós
dizeis-me: ‘Qual é a nossa falta, quando guardamos o que nos pertence’? eu
pergunto-vos: ‘Como é que arranjastes isso a que chamais de vossa propriedade? Como
é que os possuidores se tornam ricos, senão tomando posse das coisas que
pertence a todos? Se todos tomassem apenas o que estritamente necessitam,
deixando o resto aos outros, não haveria nem ricos nem pobres".
São João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, também
pregou à volta aos Apóstolos: "E havia uma grande caridade entre eles (os
Apóstolos); ninguém era pobre entre eles. Ninguém considerava como seu o que
lhe pertencia, todas as suas riquezas estavam em comum (...) uma caridade
existia em todos eles. Esta caridade, consistia em que não havia pobre entre
eles, de tal modo que os que tinham bens apressavam-se a desprender-se deles.
Não dividiam as suas fortunas em duas partes, dando uma e guardando a outra;
davam o que tinham. Assim não havia desigualdade entre eles. Todos viviam em
grande abundância. Tudo se fazia com o maior respeito”. Em outro momento
afirmou: “Ninguém pode enriquecer honestamente. Mas, poderão objetar-me, se um
homem herdar riquezas de seus pais? Pois bem, ele herdará riquezas adquiridas
desonestamente”. Invertendo a lógica liberal, Santo Ambrósio afirmou: “O
direito comunista foi criado pela natureza. O direito à propriedade privada foi
instituído pela violência”. Assim, a propriedade privada não é um direito
natural.
Kautsky concluiu: “Se o comunismo foi admitido
oficialmente como exigência fundamental da comunidade, certamente semelhante
reconhecimento só foi feito porque era impossível negá-lo, porquanto a tradição
nesse ponto tinha raízes demasiado profundas e era amplamente conhecida”.
Durante a chamada Idade Média elementos desse comunismo primitivo renasceriam
em várias comunidades cristãs (católicas e protestantes), em grande parte,
consideradas heréticas e duramente perseguidas, a exemplo de Thomas Munzer, os
cátaros, os hussitas, os waldenses e os diggers na Revolução Inglesa. Mais
recentemente esse espírito renasceu na Teologia da Libertação, já sob
influência do marxismo. Como ocorreu com aquelas correntes que buscaram
reaproximar o cristianismo e o socialismo (ou comunitarismo), ela foi
perseguida e calada pela alta hierarquia da Igreja Católica. O mesmo fenômeno
ocorreu em relação às igrejas protestantes. Contudo, não há como impedir que os
interesses e a luta dos trabalhadores empobrecidos – a velha e boa luta de classes
– emerja no interior dessas igrejas que têm bases populares, ainda que
colateralmente.
De Jesus Cristo aos
falsos messias
Segundo os Evangelhos, Cristo nasceu numa manjedoura,
dentro de um estábulo, e era filho de carpinteiro, possivelmente profissão exercida
por ele durante sua infância e adolescência, antes de iniciar suas pregações.
Portanto, foi um jovem proletário. Sempre viveu entre as pessoas mais humildes,
excluídas socialmente: mendigos, leprosos, prostitutas etc. Os seus primeiros
seguidores eram simples pescadores. Ele não tinha propriedades pessoais e o
mesmo exigia dos seus apóstolos. Não era frequentador de palácios reais, nem
tinha convivência íntima com os ricos e poderosos da época. E a pobreza,
inclusive, era a condição essencial para participar da sua comunidade. Protegeu
a adúltera Maria Madalena quando fanáticos religiosos, seguindo à risca as leis
do Templo, queriam apedrejá-la. Disse-lhes: “Quem de vós não tem pecado que
atire a primeira pedra”. Hoje vemos pastores apedrejando (ainda que
virtualmente) LGBTIs, feministas, petistas, comunistas e membros de religiões
afro-brasileiras. Jesus expulsou os mercadores do templo em Jerusalém. Quantos
templos não viraram verdadeiros mercados persas, onde os bens religiosos são
vendidos e os recursos transformados em novos negócios rendosos? Quantos altos
dignitários das igrejas não se enriqueceram às custas dos fiéis e outros meios?
E, por fim, pelas suas palavras e ações, Jesus foi
condenado por dois poderes: o clerical e o imperial. Assim, ele foi o mais
famoso preso político da história da humanidade, torturado e executado
barbaramente na Cruz, forma mais degradante de morte entre os romanos. Morreu
ao lado de dois ladrões e a um deles perdoou e disse que se encontrariam no
reino do Céu. Jesus e os primeiros cristãos, decerto, não aceitariam frases
bolsonaristas: como “bandido bom é bandido morto”. Tomemos cuidado com esses
novos Messias que agora defendem os ricos, disseminam o ódio aos diferentes, a
tortura, o armamento geral e até o genocídio.
* Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de
publicações da Fundação Maurício Grabois. Autor dos livros Marxismo, história e
a revolução brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o
pensamento de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da
revolução. Todos publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita
Garibaldi.
Bibliografia
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Centro do livro brasileiro, Lisboa, s/d
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ENGELS, Friedrich. O cristianismo primitivo, Ed. Laemmert,
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LENTSMAN, Iakov. A origem do cristianismo, Ed. Caminho,
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LOWY, Michael. Marxismo e teologia da libertação, Ed.
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LUXEMBURGO, Rosa. O socialismo e as igrejas: o comunismo
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MARX, Karl & ENGELS. Sobre a religião, Ed. 70, Lisboa,
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RENAN, Ernest. A vida de Jesus, Ed. Martin Claret, SP,
1995
WALTER, Gérard. A origens do comunismo:
judaicas-cristãs-gregas-latinas, edições 70, Lisboa, 1976
Novo Testamento

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