Em entrevista na TV Cultura, esta semana, o ministro do
STF, Gilmar Mendes, parabenizou a Folha de S.Paulo por admitir erro de ótica do
jornal no acompanhamento do espetáculo que se convencionou chamar de “lava
jato”. A boa nova (a autocrítica) foi revelada domingo (6/10) pela ombudsman do
jornal, Flávia Lima.
Em miúdos, a jornalista informou que o diretor de redação,
Sérgio Dávila, admitiu: a Folha deixou-se levar pelo entusiasmo contagioso de
pretensa luta contra a corrupção e, de alguma forma, atendeu mais aos
interesses pessoais de algumas fontes que do leitor. Uma fronteira difusa. Nem
sempre, mas em geral. Justiça seja feita: a Folha é a única publicação
brasileira que admite erros com naturalidade. Nem sempre, mas em geral. Leia o
artigo “Vigaristas do bem”, publicado pelo jornal .
Dávila, no seu ensaio de self-criticism, remeteu à
excessiva valorização de acusações, nem sempre consistentes, sem o
correspondente espaço para o contraditório. O diretor não entrou em detalhes,
mas poderia ter citado um aspecto: o fuzilamento contínuo de ministros que
“desobedeceram” a capital da verdade, Curitiba, para enfraquecer a capital da
mentira, Brasília. A munição: acusações falsas passadas em “off”, pela pretensa
“força tarefa”.
A autocrítica poderia chegar a falsidades repetidas mesmo
em editoriais, como a de que o STF “mudou a jurisprudência” para dar à Justiça
Eleitoral o poder de julgar crimes conexos, com o objetivo de “abafar a lava
jato” e garantir a impunidade de corruptos. Na vida real, nada mudou. Sempre
foi assim. Mas como a difusão da mentira servia para emparedar ministros, vai
assim mesmo.
Outro ‘erramos’ devido ao leitor: a falsa investigação de
auditores da Receita que imputou a Gilmar Mendes os crimes de corrupção,
tráfico de influência e lavagem de dinheiro sem qualquer elemento para
fundamentar a conclusão. Ou a falsificação de documento atribuído a Marcelo
Odebrecht para tentar incriminar o presidente do STF, Dias Toffoli. Falta um
pedido de desculpas, como aludiu Flávia Lima.
Lorotas em profusão
A dura verdade é que a torcida uniformizada foi muito além
de deformar e distorcer a realidade para construir ficções nada científicas.
Jornalistas passaram a reunir-se secretamente com policiais e procuradores não
mais para obter notícias — mas para tramar e combinar botes, artificialmente .
Nessa gangorra, um vazamento seletivo alavanca uma notícia, que alavanca um
inquérito, que alavanca outra notícia. Como o policial que coloca cocaína em um
carro e prende seu dono por ter cocaína no automóvel. E isso vem de longe.
Na apelidada “satiagraha”, elegeu-se herói um delegado que
enriqueceu durante perseguição a inimigos do Partido dos Trabalhadores.
Protógenes Queiroz, hoje foragido, declarou à justiça eleitoral ter recebido em
doação três imóveis de luxo enquanto operava uma guerra comercial privada. A
empulhação foi rejeitada pela justiça.
Uma participação pouco gloriosa da Folha de S.Paulo ficará
eternizada no autos dessa patranha. Um repórter do jornal, na pressa de dar
respaldo a denúncia que um empresário produzia, passou seu texto antes da
publicação no jornal. O procurador da
República Luiz Francisco de Souza, que emprestou sua assinatura para a ação
desonesta incorporou a “reportagem” na petição. O drama foi que o jornal, de
forma sensata, acabou não publicando o texto. Inconformado com o desfecho do
caso, o integrante ad hoc da força tarefa de então, Rubens Valente, lançou o
livro “Operação Banqueiro” para defender o delegado e atacar ministros do
Supremo.
O delegado, expulso da PF, costumava recomendar a seus
colegas mais novos um truque: “Prova, quando a gente não tem, a gente cava”. Em
outro episódio, este envolvendo o Banco Santos, repórter da Folha cavou pauta
levando uma carta anônima, com suas suspeitas, ao juiz do caso. Ele só não
contava com a astúcia de Fausto De Sanctis, que consignou nos autos a origem do
“documento”. Ainda assim, determinou busca e apreensão na casa da família
mencionada — quando se constatou a falsidade das suposições. Esse modelo foi
replicado na caça a Lula, a Temer e outras vítimas: sempre a mentira em nome da
verdade.
Aplicassem em suas fileiras o rigor que aplicam contra os
outros, jornalistas e procuradores seriam mais cuidadosos. Tampouco seria
necessário simular espanto com os diálogos divulgados pelo The Intercept Brasil
— que apesar do excelente trabalho, está devendo ao distinto público os
diálogos travados com jornalistas.
Pega ladrão!!!
Estima-se que tudo começou na década de 1980. Os países
que comandavam a política mundial passaram a trabalhar em meios para combater o
terrorismo, o narcotráfico e o crime organizado de forma global. Em 1990, o
Grupo de Atividades Financeiras (Gafi), do Grupo dos Sete (G7), decreta as 40
recomendações que seriam impostas a todos os demais países para conter o avanço
inimigo.
Vieram daí novidades como os Coafs, forças tarefas e o
fortalecimento de órgãos de investigação. No Brasil, o Congresso incorporou as
leis derivadas das recomendações do Gafi. O Ministério da Justiça cria a
Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro, parteira
das Varas Especializadas em Crimes Financeiros. O Supremo Tribunal Federal teve
papel central ao sedimentar novos poderes ao Ministério Público, Receita
Federal e às polícias. Estava montado o cerco e criado o palco para o que se
passou a apelidar de “operações da PF”. E para outras pantomimas com nomes
igualmente fantasiosos.
O que deveria ser apenas combate ao crime, tornou-se uma
gincana de vedetes. Sim. A construção das potências ajudou a fulminar cartéis
indecentes, enquadrar corruptos, desmantelar quadrilhas. Mas a prioridade não
foi essa. Foi projetar celebridades instantâneas, ávidas de poder, como Rodrigo
Janot, Moro e Dallagnol. A fila é longa. A serenidade e a firmeza necessárias
para a missão de corrigir o país foi substituída por uma gritaria histérica e
irracional. O processo judicial foi carnavalizado. O país do futebol virou um
país de juristas.
Circo indecente
Assim como das secas e das enchentes nasceu a indústria da
seca e da enchente, o combate à corrupção deu à luz a indústria das “operações”.
Os governos petistas gabam-se de ter patrocinado mais de duas mil “operações”.
Muitas delas contra adversários ou concorrentes de seus patrocinadores. Até que
um dia o PT passou a ser caçado e cassado pela mesma via. Esse jeito de fazer
justiça não é um modelo novo. A “luta contra a corrupção” ajudou a derrubar
governos em todo o planeta. Na China, Rússia, Cuba e mesmo no Brasil, o falso
moralismo trouxe ditaduras trágicas com a promessa de mais ética na política.
Até onde se sabe, por aqui, a criminalidade continuou a
mesma. Mas as hierarquias mudaram. O STF cedeu a primazia de topo do Judiciário
para juízes de primeira instância. Um grupo de procuradores tomou o lugar da
PGR. A voz do constitucionalismo foi abafada em favor de oportunistas que se
aproveitaram da retórica populista. Entre os jornalistas, ascenderam nas
redações e na escala social quem topou fazer parte das milícias formadas por
policiais, procuradores e juízes. Não como jornalistas, mas como assessores de
imprensa dos consórcios que, a depender da sorte, devem ser varridos para a
lata de lixo da história.
Márcio Chaer é
diretor da revista Consultor Jurídico e assessor de imprensa.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-out-09/folha-spaulo-admite-falhou-freguesia
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