A delação premiada precisa de limites claros sobre os
poderes de negociação do Estado. Especialmente do Ministério Público. E, claro,
que esses limites sejam respeitados. É o que defende o ministro Nefi Cordeiro,
do Superior Tribunal de Justiça, em seu novo livro Colaboração Premiada —
caracteres, limites e controles, que será lançado na quarta-feira (23/10), no
Espaço Cultural do STJ.
Em entrevista à ConJur, o ministro diz que a delação
premiada está banalizada. "A colaboração é um favor que o Estado é
obrigado a dar para ajudar a eficiência da persecução. O que estou vendo é que
a colaboração está sendo transformada em guilty plea, que a pessoa confessa a
culpa. E colaboração premiada não é forma de confissão, é forma de obtenção de
provas em situações onde o estado não consiga", afirma.
O ministro analisa ainda que o Supremo Tribunal Federal
está precisando dar a palavra final em temas que nem sempre têm um bom debate
doutrinário ou até jurisprudencial anterior.
Leia a entrevista:
ConJur — A delação
tem sido usada corretamente?
Nefi Cordeiro — Temos muitos exemplos de eficiência e bom
uso da colaboração, e a "lava jato" mostrou alguns deles. Mas o
instituto tem trazido muitas dúvidas quanto à interpretação do seu
procedimento, se tem limites.
ConJur — Em que
sentido?
Nefi Cordeiro — Por exemplo, o Supremo reconheceu uma
falha da violação ao contraditório: de ser o colaborador ouvido ao mesmo tempo
nas razões finais do que aquele que é delatado. Assim, quem era delatado não
tinha como rebater os pontos trazidos pelo colaborador. Vários outros pontos me
parecem ainda muito perigosos.
ConJur — Pode citar
alguns dos principais exemplos?
Nefi Cordeiro — Temos colaborações premiadas que se
combinam e nas quais existem cláusulas prevendo que o colaborador fique com
parte do produto do crime. Existem colaborações em que o acordo é para não mais
investigar o colaborador e aí se abre mão de descobrir crimes que podem até ser
mais graves. Ou se abre mão de perseguir, investigar familiares do colaborador
por crimes que não sabemos quais são. O Ministério Público está afixando penas
inventadas: regime fechado diferenciado, em que a pessoa cumpre a pena no seu
domicílio, o que não é previsto no Código de Processo Penal; a execução
imediata agora prevista em acordos. E aí chego a ver situações de pessoas que
estão fazendo acordo e começando a cumprir pena sem nem ter sido denunciadas, e
que podem ser depois absolvidos.
Enfim, estamos fazendo acordos sem limites.
ConJur — E por que o
MP faz isso?
Nefi Cordeiro — Porque acha que isso gera maiores chances
de acordo. E tem razão: se o réu sabe que vai ter uma pena exata, que essa pena
vai ser na sua casa e pode começar a cumpri-la imediatamente, esse acordo passa
a ser interessante. O réu tem medo de que, depois, o juiz determine uma pena
maior e o mande para um presídio, que é local de cumprimento de regime fechado.
ConJur — Então qual
o problema?
Nefi Cordeiro — O grande problema é que estamos fazendo
esses procedimentos fora da lei. A lei não prevê essas possibilidades de
negociação. A lei não prevê penas inventadas. Não prevê também que o MP possa
fixar pena. A Lei da Organização Criminosa diz que o acordo propõe que o juiz
possa reduzir a pena, mas quem fixa a pena é o juiz. E vemos muitas negociações que não seguem os
limites da lei e isso me parece extremamente perigoso. O Direito Penal tem que
ser regido pela lei estrita, não posso confiar no bom senso para o Direito
Penal. Até consigo imaginar razoabilidade, proporcionalidade, no Direito
Administrativo, no Direito Civil. Mas pena, processo, tem que seguir os limites
estritos da lei. Senão colaboradores em situações muito parecidas correm o
risco de ter negociações muito diferentes, de serem invenções absurdas
para a maioria da sociedade.
ConJur — Invenções
de que tipo?
Nefi Cordeiro — As primeiras colaborações não tinham pena
exata, hoje têm. Depois surgiu a ideia de fazerem acordos em que se começava a
cumprir a pena imediatamente. Isso é algo mais recente, de uns quatro anos para
cá. Temos agora acordos que preveem que se o réu deixar de colaborar, as provas
vão ser usadas contra eles e eles não vão ter favor nenhum. Cada vez mais vão
surgindo cláusulas por essa ideia de invenção e cláusulas que podem ser
altamente danosas ao processo, ao sistema acusatório e ao direito de defesa.
ConJur — E isso tudo
é culpa do Ministério Público?
Nefi Cordeiro — O Ministério Público é uma instituição
belíssima, com integrantes muito capacitados. Mas são seres humanos e qualquer
ser humano precisa de limites e de controle. Se não tiver controles, o abuso vai
acontecer. E o Brasil é enorme, onde qualquer promotor, que é humano e pode
errar, pode sair inventando penas e cláusulas de acordos. Se o juiz fizer uma
análise muito normal da lei na homologação, esse acordo pode sair injusto. Já
vi acordos em que foram combinadas penas maiores que as previstas em lei. Volta
e meia se tem a discussão se não acontecem até favores exagerados.
ConJur — O senhor
fala em lacunas no livro. Quais são essas lacunas?
Nefi Cordeiro — Ah, várias. O Brasil já trabalha com a
colaboração premiada há uns 20 anos. Lembro, por exemplo, que o ministro Sergio
Moro estava começando na vara do sistema financeiro em Curitiba e eu era
desembargador federal em Porto Alegre na época de processos do Banestado. E já
lá se fazia colaboração premiada,, na época era delação premiada, sem que a lei
previsse nada de procedimento. Hoje a lei prevê alguns itens de procedimento.
Mas não prevê, por exemplo, o que fazer em caso de resolução de acordo. A lei
não prevê a questão do contraditório, que agora o Supremo previu — e o Supremo
não previu apenas o direito de falar por último. O pedido de contraditório não
é só de falar, mas também de provar. O delatado tem o direito de falar depois,
como diz o Supremo, mas também o direito de provar depois. E isso não está
sendo discutido: a lei não prevê o contraditório, não prevê mais detalhamento
sobre qual é o controle de legalidade que o juiz tem de fazer, não prevê se o
acordo, depois de homologado, pode ter suas cláusulas revistas. O Supremo ainda
vai resolver isso, mas ainda existem muitas lacunas.
ConJur — O instituto
está banalizado?
Nefi Cordeiro — Sim, estamos vivendo isso. Cheguei a ver
processos em que havia quatro réus, três fizeram colaboração. Isso não é
colaboração premiada. A colaboração premiada é um favor que o Estado é obrigado
a dar para ajudar a eficiência da persecução. Então, numa organização
criminosa, a ideia é que eu pegue o motorista, a secretária, alguém que tenha
uma atuação mais periférica, para falar sobre o crime daqueles que tem uma
atuação mais intensa. Se eu precisar realmente de alguém da parte de inteligência
da organização criminosa, posso até pegar alguém mais alto nessa organização.
Mas vai pegar uma pessoa, não 80.
ConJur — Mas isso
aconteceu com bastante frequência durante a "lava jato", não?
Nefi Cordeiro — O que estou vendo é que a colaboração está
sendo transformada em guilty plea, que a pessoa confessa a culpa. E colaboração
premiada não é forma de confissão, é forma de obtenção de provas em situações
em que o Estado não conseguiria. Se o Estado consegue a prova pela sua
investigação, não vai fazer colaboração com ninguém. Se o Estado tem
dificuldade na obtenção de provas, então pode usar a colaboração, mas
moderadamente.
ConJur — Mas isso
está dito na lei?
Nefi Cordeiro — Realmente, isso não está previsto na lei e
deveria ter sido. Como na escuta telefônica, que a lei diz que ela deve ser
subsidiária das outras formas de prova, só pode ser usada se outras provas não
atingirem o mesmo resultado. Isso deveria ter sido previsto na colaboração.
Mas, mesmo sem previsão legal, isso é um modo de agir: o Ministério Público
pode fazer colaboração com um ou 80, é razoável que ele pense que é melhor para
a sociedade punir 79 e fazer acordo com um ou dois, ou até três, de escalões
diferentes. Mas não pode ser banalizado da forma que está.
ConJur — O senhor
criticou acordos que permitem que o colaborador fique com uma parte do produto
do crime. O Supremo não autorizou isso quando tomou aquela decisão sobre a
delação do Youssef?
Nefi Cordeiro — Pois é, tem uma decisão do Supremo que diz
isso mesmo. Mas não concordo. O produto do crime é coisa ilícita. Não admito
que o Estado faça um contrato, um negócio jurídico de coisa ilícita. É o Estado
admitir que, por interesse, pode agir ilicitamente. E o Estado não tem
autorização de agir ilicitamente. Só pode combater o crime nos limites da lei. Os fins não
justificam os meios no processo penal. O processo penal só é justo se
produzir justiça por um meio justo.
Então o produto do crime não pode ser negociado, embora já tenhamos um precedente
do Supremo dizendo o contrário.
ConJur — Alguns
acordos da "lava jato" também previram que os parentes de delatores
não sejam investigados. Pode isso?
Nefi Cordeiro — Pois é, esse é um problema seríssimo. Não
deveria poder. Agora eu não estou nem mais falando de limite da lei, estou falando
da compreensão da função do Estado no Direito Penal. A sociedade não pode fazer
vingança diretamente, ela deixa na mão do Estado a resposta criminal. E aí o
Estado vem a fazer um acordo em que abre mão do interesse da sociedade na
persecução de criminosos? Quando o Estado faz acordo com muitas pessoas,
prejudica os interesses da sociedade. Quando abre mão de investigar quais são
os crimes que o colaborador praticou, que sua família praticou, ele abre mão
dessa resposta penal que prometeu à sociedade. E assim como digo que é preciso
controle, porque tudo precisa de controle, também devemos considerar que nenhum
poder existe no vácuo.
ConJur — Como assim?
Nefi Cordeiro — Se o Estado agir mal nessa negociação, se
a sociedade sentir que não está sendo feita a persecução penal, esse poder não
fica no vácuo. Há um risco de termos milícias, linchamentos, pessoas querendo
fazer justiça com as próprias mãos porque não vão mais acreditar que o Estado
vai punir criminosos. Isso não pode acontecer. Essa possibilidade de não dar
uma resposta completa tem que ser usada com moderação. E deixar de descobrir
crimes é um abandono à função estatal de ter a resposta penal completa e
correta.
ConJur —
Delatados podem questionar os acordos de
delação?
Nefi Cordeiro — Esse é outro ponto em que divirjo do
Supremo Tribunal Federal. O Supremo tem entendido que o acordo é sigiloso, e aí
o delatado não pode impugnar.
ConJur — E por que
discorda?
Nefi Cordeiro — Por duas razões: deve haver a publicidade
e a ampla possibilidade de discussão do acordo. Primeiro porque o delatado é
atingido pelo acordo e ele tem interesse em verificar por que o delator está
falando aquelas coisas sobre ele. Mas além dele, a própria sociedade tem
interesse. A função da publicidade, da transparência dos atos estatais é
permitir que não só aqueles que fazem parte do processo sabiam as razões de
decidir dos juízes, mas a própria sociedade, a sociedade tem direito de saber o
que está sendo feito com a sua delegação de resposta penal, se estão sendo feitos
bons acordos, se os acordos são razoáveis. Estou evitando falar de casos
concretos e nomes, mas tivemos situações em que a mídia demonstrou uma
insatisfação social enorme por acordos de não persecução de pessoas criminosos
confessos. Como não vão ter pena nenhuma? Isso só pode ser verificado se a
sociedade souber dos acordos. Se não souber, como haverá movimento de
contestação, de crítica? Quando tornamos
o acordo sigiloso e impedimos impugnação por terceiros, impedimos que não só o
delatado conheça e faça a impugnação, mas que a própria sociedade faça a
fiscalização das negociações estatais do processo penal.
ConJur — O que
acontece quando um acordo de delação é rescindido? As provas permanecem
válidas?
Nefi Cordeiro — Essa é uma das falhas da lei. A lei prevê
apenas a possibilidade do término, do encerramento do acordo pela vontade das
partes, mas não prevê o que fazer nessa hipótese de rescisão do acordo. No meu
livro, analiso que, se o Supremo assumiu que estamos frente à colaboração, é um
negócio jurídico, temos que aplicar as regras de negócios jurídicos. Claro que
estamos num processo penal, mas vamos aplicar aquilo que é compatível com o
processo penal.
ConJur — Como assim?
Nefi Cordeiro — Por exemplo, o produto do crime. O artigo
185 do Código Civil diz que não se pode fazer negócio jurídico de coisa
ilícita. Isso já resolveria para o processo penal. Se vamos aplicar a regra do
negócio jurídico civil, não pode ter negociação do produto do crime porque o
Código Civil já proíbe. Se formos usar as regras do negócio jurídico, também
resolvemos essa questão da rescisão, da resolução dos contratos. Porque se
formos usar uma linguagem civilista, estamos frente a um contrato bilateral,
que tem vantagens e ônus para as duas partes.
Vou dar um exemplo muito simples, mas que mostraria bem
como seria a solução da questão:
Se você contrata um pintor para pintar o seu apartamento e
ele deixa de pintar a cozinha, você vai poder dizer a ele que não vai pagar
nada? Estamos assim na colaboração premiada. Se o colaborador trouxer 70% das
provas que ele prometeu, 80%, ou 30%, que seja, ele fez parte da sua obrigação
e vai merecer, sim, proporcionalmente, parcela dos favores também prometidos.
ConJur — Mas hoje
não funciona assim, funciona?
Nefi Cordeiro — Hoje temos opiniões jurídicas,
especialmente no MP, que dizem que, além de o colaborador não ter direito a
nada se ele não entregar tudo o que prometeu, mas que as provas poderão ser
usadas contra ele. Ou seja, a pessoa acreditou num contrato que fez com o
Estado, trouxe provas de sua culpa e de terceiros, e daqui a pouco ele não vai
ter favor algum e ainda vai ser incriminado por essas provas.
Isso é violação da boa-fé, do contrato, e a solução
deveria ser a mesma do que a do caso do pintor: se as partes chegarem a um
acordo, está solucionado, eu vou pagar proporcionalmente à pintura do
apartamento tirando o que seria equivalente à cozinha. Posso até prever uma
multa, porque eu vou ter que prever a contratação de um novo pintor e isso vai
me custar um pouco mais. Mas a pessoa tem direito de receber pelo serviço
prestado, assim como o colaborador. Se não houver acordo, o juiz, na dosimetria
da pena, independentemente de pedidos, deverá fazer uma aplicação proporcional
às provas que o colaborador trouxe para o processo.
ConJur — Os
benefícios dados ao delator estão vinculados a um rol taxativo ou meramente
exemplificativo?
Nefi Cordeiro — Taxativo. Porque se sairmos do rol
taxativo e dissermos que é exemplificativo, vamos ter de aceitar razoabilidade
e bom senso. Estamos cheios de exemplos de cautelares absurdas Lembro de uma em
que o juiz mandava o réu frequentar a missa aos domingos. Não importava a
religião do réu. Isso é absurdo, mas o juiz achou que era razoável, que, pela
proporcionalidade, se ele podia mandar prender, ir para a missa é muito menor.
As regras de Tóquio da ONU já preveem que as cautelares
são taxativas, devem ser estritamente o que prevê a lei. E aí vamos ter uma
situação para quem aceita a proporcionalidade, a razoabilidade, na fixação das
penas, vamos ter uma situação em que nós vamos tender a aplicar restrições
temporárias cautelares, penais, taxativamente pelo limite da lei, mas
restrições definitivas não. Isso é um absurdo no processo penal. No Direito
Penal, lei representa o limite da ação do Estado. Não dá para fugir da lei. O
juiz pode ser um gênio e inventar o melhor rito processual. Não vai poder
usá-lo, se não está na lei. Estamos inventando regimes, estamos até discutindo
férias em regimes.

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