Preliminarmente,
importa ressaltar que a sugestão é chamar o novo diploma legislativo de “LEI
CANCELLIER”, em homenagem ao reitor da Universidade Federal de Santa Catarina,
que se suicidou em lugar público, após ter sido humilhado por absurda prisão
temporária e revistas vexatórias.
Examinei
o texto que foi aprovado pelo Congresso Nacional e está dependendo de sanção
(ou vetos) do nosso tenebroso presidente da república.
Fiquei
surpreso. Não esperava, mas o texto é muito bom. Gostei da forma e do conteúdo.
Lógico que sempre haverá críticas pontuais, mas o projeto merece poucas
ressalvas, nada obstante o meu espírito crítico.
Democratas
não precisam ter medo da futura lei de Abuso de Autoridade. Ela se nos afigura
bastante razoável e tem escopo louvável, segundo os postulados do Estado de
Direito.
Não
acho desejável qualquer veto presidencial ao projeto. Entretanto, o autoritário
senhor Sérgio Moro sugere cerca 9 (nove) vetos, conforme vem sendo noticiado
pela imprensa. Sintomático …
Alguns
reparos, que aponto na reflexão abaixo, são perfeitamente contornados por
corretas interpretações das futuras doutrina e jurisprudência. Toda norma
jurídica, para sua aplicação, depende de interpretação, atividade
essencialmente subjetiva.
Aprovo
a seleção das condutas abusivas que nele são tipificadas como crimes. Não vejo
muitos problemas na redação destas normas penais incriminadoras, sendo elas de
fácil interpretação e aplicação aos casos concretos.
Não
há “normas penais em branco” e tipos não são excessivamente abertos. Os
elementos normativos do tipo sempre exigirão um cuidado interpretativo maior,
como já ocorre nos demais diplomas legais que tipificam condutas como
criminosas. Nada de novo …
Aliás,
o primeiro artigo de projeto tem grande utilidade para o intérprete e para o
aplicador deste futuro diploma legal.
O
parágrafo primeiro do artigo primeiro do projeto em análise pode ser entendido
como uma espécie de norma de intepretação autêntica, na medida em que esclarece
que a tipicidade das condutas elencadas pressupõe sempre um “especial fim de
agir”, que a antiga doutrina chamava de “dolo específico”.
Com
o mesmo escopo de auxiliar o aplicador da futura lei, no parágrafo segundo
deste mesmo artigo, o legislador dispõe que a “divergência na interpretação da
lei ou na apreciação dos fatos e provas não configura, por si só, abuso de
autoridade”.
Assim,
não configurará crime uma acusação penal com base em prova que possa ser
reputada como frágil e insuficiente. Só haverá abuso de autoridade se a
acusação não se lastrear em prova alguma, conforme vamos salientar mais
adiante.
Com
relação à persecução penal em juízo, o artigo terceiro em nada inova ao que já
dispõe o Código de Processo Penal. A ação é pública incondicionada e a ação
penal subsidiária pressupõe o esgotamento do prazo de que dispõe o Ministério
Público para o oferecimento de sua denúncia.
Perfeitos
os artigos quarto e quinto do projeto ora analisado. Tratam eles dos efeitos da
condenação e das penas restritivas de direito.
Vamos
às poucas ressalvas que faço ao projeto. Tudo o mais merece aprovação ou mesmo
criterioso elogio.
Em
verdade, no projeto encontramos algumas expressões relativamente genéricas,
como a expressão “prazo razoável” do artigo 9. Isto não é desejável, mas a
jurisprudência saberá consolidar um entendimento uniforme.
Como
advertimos acima, muitos tipos penais contêm elementos normativos, exigindo
interpretações mais atentas e cuidadosas, tendo em vista o salutar e
constitucional princípio da reserva legal.
O
artigo 10 parece permitir genericamente a condução coercitiva do investigado.
Ora, se ele tem direito ao silêncio, não faz sentido obrigá-lo a comparecer
perante a autoridade policial para dizer que vai ficar calado !!! Entendo só
caber tal condução forçada para outro ato investigatório, como uma perícia ou
uma tentativa de reconhecimento. Mesmo assim, só se for desatendida uma prévia
intimação, conforme prevê o projeto.
Também
acho que a redação do artigo 14 poderia ser mais precisa. Este dispositivo veda
fotografar ou filmar, divulgar ou publicar fotografia ou filmagem de preso,
indiciado, etc. O que pode salvar esta regra muito limitadora da atividade
investigatória do Estado é o especial fim de agir (dolo específico) constante
na parte final do dispositivo: “com o intuito de expor a pessoa a vexame ou
execração pública”.
Julgo
equivocado o inc. III do artigo 22 do projeto, ao permitir o cumprimento de
mandado de busca e apreensão domiciliar até as 21 horas. A Constituição Federal
não permite a entrada em residências contra a vontade do morador, salvo para
prisão em flagrante, caso de desastre ou para prestar socorro. Vale dizer, à
noite, nem com mandado judicial se pode violar o descanso domiciliar. O Código
de Proc. Penal tem regra disciplinando isto (artigo 293).
Não
está claro que sindicância ou investigação preliminar sumárias dispensariam
“qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração
administrativa para ser instauradas (ar.27, parágrafo único).
Finalmente,
merece censura o artigo 30 do projeto quando se utiliza de uma expressão não
muito precisa para legitimar a instauração de uma persecução penal, civil ou
administrativa. O legislador usou a dúbia expressão “justa causa fundamentada”.
O
atual artigo 395 do Cod. Proc. Penal, ao colocar a justa causa no seu inc. III,
torna claro que a justa causa não mais é uma condição da ação, que é referida
em seu inc. II.
Assim,
melhor seria exigir a demonstração de um “suporte probatório mínimo” daquilo
que vier narrado na peça acusatória. Já escrevi sobre isto (Site Empório do
Direito).
Vale
esclarecer que neste primeiro momento processual, mero juízo da admissibilidade
de ação penal condenatório, descabe valorar a prova do inquérito ou das peças
de informação. Cabe tão somente constatar ou não a sua existência.
Vejam
que só destaquei estes defeitos de maior relevância em um universo de 45
artigos do projeto. Mesmo assim, tais defeitos são facilmente contornados pela
jurisprudência dos nossos tribunais, com o aconselhamento da melhor doutrina.
A
tipificação do uso abusivo das algemas (artigo 17 do projeto) não difere muito
do disposto na Súmula Vinculante número 11 do Supremo Tribunal Federal. Desta
forma, nada mudará se realmente vier o prometido veto presidencial.
Importante
notar, ainda, que todas as penas privativas de liberdade (detenção) são igual
ou inferior a 4 (quatro) anos. Assim, poderá o condenado cumprir tal pena em
regime aberto, bem como não será permitida a prisão preventiva, tendo em vista
regra expressa do Código de Processo Penal.
Ademais,
todas as penas previstas no projeto em exame admitem a suspensão condicional do
processo, consoante disposto na lei n.9.099/95, aplicável à futura lei por
disposição nela expressa.
No
mais, digo e afirmo que o novo texto vai qualificar e reforçar o nosso
combalido Estado de Direito Democrático. Será um texto normativo que vai nos
orgulhar perante a comunidade jurídica internacional.
Há
muito tempo o nosso Congresso Nacional não produz um texto legislativo sobre
matéria penal e processual penal tão correto e bem elaborado como este.
Concordo
com a tipificação penal das diversas condutas constantes do projeto.
Não
há o que temer, basta que as autoridades públicas atuem em conformidade com as
exigências próprias de um pais que respeita a dignidade das pessoas e os
valores fundantes de uma ordem jurídica justa, equilibrada e protetora dos
valores cunhados pelo nosso processo civilizatório. Como costumo dizer, não á
valioso punir a qualquer preço !!!
Mesmo
os punitivistas não serão punidos se forem razoáveis na sua sanha persecutória.
Basta que cumpram a lei para poderem punir os que não cumprem a lei.
Atuei
31 anos no Ministério Público do E.R.J. e jamais pratiquei qualquer das condutas
tipificadas no projeto. Fui Promotor e Procurador de Justiça e nunca precisei
“arranhar” a ordem jurídica para bem desempenhar amplamente as minhas funções
persecutórias. Não há o que temer. Há de respeitar os princípios que
caracterizam o chamado “devido processo legal”.
Democratas
estão felizes com o novo diploma legislativo. Os autoritários e
corporativistas, nem tanto…
Publicado
originalmente no Empório do Direito
POR
AFRÂNIO SILVA JARDIM, professor associado de Direito Processual Penal da UERJ,
mestre e livre-docente em Direito Processual, Procurador de Justiça
(aposentado)
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