Título
B: Como é possível que agentes políticos do Estado desdenhem do luto? Título C:
Surge uma nova categoria no direito penal: o laranja de outdoor!
O
ex-integrante da "lava jato" Carlos Fernando Lima, agora jubilado no
Ministério Público Federal, participou do Globo News em Pauta. Um dos
participantes, o advogado Walfrido Warde “meio que” fez uma armadilha e o
exaltado e nervoso ex-procurador nela caiu. E contou tudo.
Carlos
contou que, de fato, eles tinham partido político na "lava jato".
Disse que seria difícil acreditar no que aconteceria se Haddad vencesse. E
tascou: Vivemos um maniqueísmo e um dilema: Entre a cruz e a caldeirinha, entre
o diabo e a coisa ruim [sic]. Pronto. E a força-tarefa fez a escolha por
Bolsonaro. Só não disse se Bolsonaro era o diabo ou a coisa ruim. E se Haddad
era a coisa ruim ou o diabo.
O
que importa é que um dos chefões da "lava jato" confessou que tinham
lado (vejam matéria de Reinaldo Azevedo). Todos já sabiam. O Intercept revelou
conversas de Dallagnol em que isso ficava claro. Aliás, até nos twitters dos
integrantes da força-tarefa da "lava jato" ficava evidente essa
partidarização.
Diz
Carlos Lima: a opção por Bolsonaro era óbvia [sic]. Ele confessou. Haddad
representava o contrário do que eles pensavam. Bem imparcial isso, não?
(i)
As consequências jurídicas da escolha política
Por
que estou escrevendo sobre isso? Não escrevo para discutir politicamente o
assunto. Não há problema de se votar em Bolsonaro. Não há problema de um
procurador escrever que vota em Bolsonaro. O problema é quando esse lado
escolhido contamina o processo. Por isso, quero discutir o lado jurídico dessa
opção política da "lava jato". Escrevo, pois, para falar do papel do
Ministério Público. Posso falar disso porque lá estive por quase 30 anos (não
que quem não tenha estado não possa falar; apenas conheço o assunto digamos assim,
“por dentro”).
Até
que ponto chegamos... Um integrante, conforme revelações do dia 26 último,
chegou a pagar um outdoor para promover a força-tarefa da "lava
jato". E o corregedor do MPF sabia de tudo (aqui). Mas tudo ficou secreto.
Na iminência de ser investigado e quiçá, afastado, o procurador responsável (ou
que simplesmente assumiu, por todos, a autoria do outdoor) pediu afastamento
por doença, com atestado com efeito ex tunc de um dia.
Em
outras circunstâncias, o MP denunciaria um ato desse tipo, investigando
inclusive o esculápio. Isso sem considerar o estranhíssimo fato de que o
outdoor foi pago por uma pessoa que disse que não pagou e que de nada sabia. Ou
seja, surge uma nova categoria: o laranja de outdoor.
O
tal outdoor permaneceu quase 30 dias. “Ninguém” sabia quem pagara... Nem o cara
que pagou! Pois é. Foi “ninguém”. Lembro, aqui, da Odisseia, livro IX:
"foi Ninguém".
Insisto:
Que tipo de processo penal pode exsurgir se o órgão acusador confessa que teve
lado? Misture-se a confissão de Carlos Lima com os demais elementos já
revelados e teremos uma tempestade perfeita.
(ii)
Qual é o papel do MP? Pode ele tomar lado político? Vejam o Estatuto de Roma
espelhado no direito norte-americano, alemão e italiano
Qual
é o papel do MP? Vou dizer pela enésima vez. MP não pode fazer agir
estratégico. Se o fizer, se igualará a qualquer parte. E se se igualar, não
precisará de garantias. Simples assim.
Insisto:
na Alemanha, para evitar o agir estratégico, o CPP estabelece, no artigo 160,
que o MP deve trazer à lume, sempre, todas as provas que obtiver, inclusive às
que favorecem à defesa (já escrevi quase uma dezena de textos sobre isso).
Mutatis, mutandis, trata-se de uma blindagem criada pelo legislador contra o agir
político do MP. E se não apresentar as provas, pode ser processado por
prevaricação (Rechtsbeugung), conforme artigo 339 do CP.
Já
na Itália, depois da operação Mãos Limpas, para se prevenir contra
arbitrariedades da magistratura do Ministério Público, a Corte Constitucional,
em 1991, entendeu, por meio da sentença 88/91, que o Ministério Público, em
razão de seu inegável poder para conduzir a investigação criminal, é “obrigado
a realizar investigações (indagini) completas e buscar todos os elementos necessários
para uma decisão justa, incluindo aqueles favoráveis ao acusado (favorevoli
all'imputato).
E
no Estatuto de Roma, já incorporado no direito brasileiro desde 2002, consta no
artigo 54: “A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a
todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade
criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito,
investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação,
quer à defesa.” Preciso falar mais? Esses elementos não bastam para uma tomada
de posição?
(iii)
Os anteparos ao agir político-estratégico; a vedação constitucional
Já
escrevi aqui sobre isso, dizendo que era muito fácil alterar a legislação e
fazer esses calços ao agir estratégico de quem tem poderes de magistratura.
Sim, MP deve agir como magistrado (bom, no caso de Curitiba, o juiz agiu como
MP, mas, bem, deixa pra lá). Mas o leitor entendeu o que quero dizer. Ou bem o
MP é parte e assume ônus de ser parte, ou bem se porta como um órgão imparcial.
Isso
é um aspecto do problema. Há um outro, que exsurge da confissão de Carlos Lima.
Nitidamente, os integrantes a força-tarefa fizeram política partidária. Isso é
vedado pela CF. “Como assim?”, perguntarão.
Respondo:
uma coisa é o agente do MP ou do Poder judiciário dar opinião acerca da
política na esfera privada. Foi o caso dos juízes do Rio de Janeiro processados
por fazer política partidária a favor do PT. Em parecer que fiz, sustentei que
isso funciona como nos dois corpos do rei. Assim, desde que a preferência
partidária não ingresse na esfera dos processos judiciais, trata-se de livre
manifestação.
Todavia,
quando a manifestação está dentro de um processo judicial ou de procedimentos
investigatórios, já aí o busílis é outro. Foi o caso. A escolha entre o diabo e
o coisa ruim (sic) mostra, pela confissão nervosa de Carlos Lima, que essa
escolha comprometeu o agir processual. E isso é vedado pela Constituição. Ou
alguém acha que, diante do que Carlos disse, o agir do MPF foi imparcial?
É
o resultado de não sabermos separar os dois corpos do rei (ler aqui). Enquanto
ainda vivermos sob uma democracia, todos têm a liberdade de, moralmente,
preferirem o que for; ainda que haja critérios para se determinar a
objetividade da resposta — penso que há, pois não sou um emotivista —, os
disagreements (desacordos morais) fazem parte do exercício democrático.
E
o ponto é que o que regula esses disagreements é exatamente...o Direito. E é
por isso que, em sua vida pessoal, os procuradores e os juízes podem ter a
preferência que lhes pareça melhor diante das circunstâncias. Dentro da
institucionalidade, não. Porque é o Direito que filtra a política (e a moral, e
a economia). Nunca o contrário.
(iv)
Desdenhar o direito ao luto de um acusado não é parcialidade jurídica? Esse
escárnio da dor alheia tem nome?
Quem
atua em nome do Estado tem a responsabilidade política de suspender os próprios
pré-juízos e agir por princípio, nunca por política. Carlos Lima confessou que
não fizeram essa suspensão de pré-juízos. Ao contrário. Lutaram, com unhas e
dentes, para impedir a vitória daquele que lhes era tido como adverso. As
instituições devem levar o Direito a sério; em não o fazendo, não levam a sério
a si próprias. Não separando os dois corpos do rei, contrariam exatamente
aquilo para o que elas existem em primeiro lugar: para resolver o que a moral,
a política e a economia não resolvem. Mas o Direito, pelo jeito, importava bem
menos do que os juízos morais dos protagonistas.
Pouco
importa se, no âmbito do “corpo físico” (vida privada), o procurador ou o juiz
escolhe entre a cruz ou a caldeirinha, entre o diabo ou a coisa ruim. Só que,
no âmbito da esfera pública, têm a responsabilidade de decidir, nunca de
escolher. A decisão é em nome do Direito; a escolha, sempre discricionária. E,
conforme se viu do que disse Carlos, aliado àquilo que Deltan falava
(ironicamente, ele falava da omertà petista), nem de longe estava presente a
parte “espiritual” do corpo do rei. Uma procuradora da FT da Lava Jato chamou
os petistas de mafiosos, quando do episódio da proibição de o ex-presidente
Lula conceder entrevista. Para se ver o clima de “imparcialidade” que ali
rolava...! A procuradora Laura Tessler confirma a confissão de Carlos Lima:
indignada com a decisão do STF que autorizara a entrevista, temeu pela eleição
de Bolsonaro (ou pela vitória de Haddad, o que dá no mesmo). Dizer o quê?
Alguém
acredita que o processo contra Lula foi imparcial, depois de sabermos que, em
um diálogo de trabalho, enquanto um procurador entendia que Lula tinha direito
de ir ao enterro do seu neto, um colega diz: "O safado só queria passear e
o Welter com pena". Já uma Procuradora, já conhecida nos meios de
imprensa, arremata, concordando com a frase desumana dita pelo interlocutor:
"O foco tá em Brumadinho...logo passa...muito mimimi". Ou seja,
desdenharam da morte. Desdenharam do luto. Desdenharam da alma. O mais
universal dos direitos – o de enterrar os seus mortos e por eles chorar — foi
ironizado por agentes políticos do Estado. [1] Que feio isso, não? A pergunta
que não cala: Como seria o ânimo deles lidando com as provas contra o
ex-presidente? Cartas para a coluna.
E
os diálogos sobre a morte da esposa de Lula? Melhor não lerem. Fiquei com dor
n’alma ao tomar conhecimento. A acusação de um dos procuradores de que a morte
de Mariza Letícia seria uma eliminação de testemunhas é algo que merece um
estudo psicanalítico. É um case. Diz o agente ministerial: "Estão
eliminando as testemunhas". Que tese, não? E outro brincou dizendo que
Lula, com a morte da esposa, estaria livre para a gandaia.
Outra
procuradora confessa a veracidade dos diálogos: no Twitter, admitiu o erro.
Depois se deu conta do que que dissera e tentou desviar o assunto, dizendo que
reconhecia apenas em parte... Está bem. Pelo menos reconheceu a parte ruim dos
diálogos.
Será
que os procuradores não sabem que um dia todos morreremos? Finitude. Oh,
palavra definitiva. Eis a palavra fundamental. Sic transit gloria mundi (toda
glória do mundo é transitória). O que o Brasil diz de tudo isso? Perdemos a
nossa capacidade de indignação? Nem no luto cessa o ódio? Bem disse Pedro
Serrano: “poucas atitudes são mais moralmente insensíveis do que desdenhar de
quem perde um ente querido”. E Eugênio Aragão foi na pleura: “Esse desvio de
vocês é nosso fracasso. Temos de dormir com isso”.
Resta
saber o que as Corregedorias do MP ou do CNMP farão. Não, as corregedorias não
precisam ensinar aos procuradores o respeito aos mortos e aos vivos. Isso não
se aprende. Isso está na alma de cada vivente. O que as corregedorias devem
investigar são as condutas relacionadas à falta de imparcialidade e à —
confessada — tomada de lado político em procedimentos investigatórios e
processos judiciais.
Quem
foi que colocou o outdoor em Curitiba? Quem fez opção partidária? Já sei. Foi
“ninguém”.
(Talvez
seja hora de um outdoor dizendo: obedeçam às placas! Esse outdoor é o Direito.)
A questão agora é: o que vamos dizer aos alunos nas salas de aula? Joguemos
fora os livros. E os códigos de ética. Já de nada valem. Talvez o CNMP ou o
próprio MPF nos surpreendam. E o STF também. Ou não. Haverá, ainda, um minimum
indignatio?
Ah,
para não esquecer a frase de um certo juiz (ups, foi Moro quem falou), “não
importa quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”. Que frase
sábia!
Post scriptum:
Sobre o papel do Ministério Público, tudo o que venho dizendo de há muito está
no caso Brady v. Mariland (373 U.S. 83 (1963). O precedente é exatamente esse: a acusação é obrigada a entregar à defesa
eventuais evidências que possam exonerar o réu. Bom, o Estatuto de Roma e o CPP
da Alemanha dizem exatamente isso!
Nas
palavras do Justice Douglas, “a sociedade vence não apenas quando os culpados
são condenados, mas quando os processos criminais são justos.”
[1] Sobre a (i)licitude da
captura dos diálogos, já falei aqui na ConJur à saciedade sobre isso, mostrando
que valem a favor do réu objeto dos diálogos.
Lenio Luiz Streck é jurista,
professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados
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