Juiz
Ali Mazloum: em despacho exemplar, ele lembra que uma denúncia não pode se
basear apenas em ilações ou nas palavras sem provas de um delator
Ainda
há juízes na Justiça Federal. O magistrado Ali Mazloum, da 7ª Vara Federal de
São Paulo, rejeitou denúncia da Lava Jato em São Paulo contra o ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e Frei Chico, seu irmão, acusados de corrupção
passiva num caso envolvendo a Odebrecht.
Confesso
que sinto orgulho da relação que mantenho com os leitores. Não me importa qual
é o alvo, procuro saber se a acusação, quando menos, faz sentido.
Vou
transcrever mais adiante trechos do despacho do juiz Mazloum. Antes, quero
lembrar o que escrevi aqui há precisamente uma semana, no dia 10. Segue em
negrito. Prestem atenção porque peço que cotejem, depois, com o que escreve o
juiz.
*
(…)
A
denúncia é uma aberração".
Qual é o caso?
Como
reconhece a própria força-tarefa, Frei Chico fazia um trabalho de consultoria
na área sindical para a Odebrecht desde a década de 90. Em 2002, ano da eleição
de Lula, houve uma interrupção. O trabalho foi retomado em 2003 e se manteve
até 2015.
Onde
estaria a corrupção passiva? Dizem os procuradores que, antes de Lula ser
presidente, Frei Chico efetivamente prestava serviços à Odebrecht. Depois
disso, por alguma razão, só os pagamentos teriam sido feitos, mas sem a
contrapartida em trabalho.
Mais
do que aberração, diria que a denúncia chega a ser ridícula — e pouco me
importa se existem delatores dizendo o contrário. Em troca de benefícios,
pode-se falar muita coisa.
O
valor da "corrupção passiva continuada" seria de R$ 1,5 milhão, que
corresponde à soma dos pagamentos feitos ao irmão de Lula entre 2003 e 2015.
Para
começo de conversa, ainda que se tratasse mesmo de um mimo ao irmão do
presidente, o mandato de Lula terminou em 2010. Que ato de ofício — ou promessa
de — o então ex-presidente praticou em favor da Odebrecht entre 2011 e 2015,
estando fora do cargo? Corrupção passiva por quê? Mas aí o valor seria
substancialmente reduzido, não é? A denúncia pareceria ainda mais fraca do que
é.
Então
Frei Chico, segundo a denúncia, efetivamente prestava serviços antes de o irmão
famoso chegar ao poder, mas, depois disso, resolveu levar apenas a grana? Que
sentido isso faz?
A
denúncia não lista a contrapartida objetiva que Lula teria oferecido à
Odebrecht para que esta mantivesse o pagamento mensal ao irmão — entre R$ 3 mil
e R$ 5 mil. E, quando tenta fazê-lo, a coisa se torna mais ridícula ainda.
Informa
a Folha:
"Lula
é incluído na denúncia porque, segundo a acusação, a Odebrecht optou pelos
repasses para obter benefícios junto ao governo federal da época. Como
contrapartida, é mencionada a articulação da empresa para evitar o retorno da
Petrobras ao setor petroquímico, onde a Odebrecht atua por meio da
Braskem."
É
mesmo? Então uma coisa desta magnitude — o retorno ou não da Petrobras ao setor
petroquímico — custou, em corrupção passiva, a bagatela de R$ 1,5 milhão,
dinheiro que teria sido pago ao longo de… 13 anos?
Só
não é uma piada porque envolve a honra de pessoas.
(…)
A DECISÃO
Volto
para a decisão do juiz Mazloum. O antilulismo virou uma profissão que rende
grana a alguns pilantras — especialmente quando o PT está fora do poder. Há até
aqueles que também ganhavam quando o partido estava no poder…
Assim,
nem se deram ao trabalho de ler a denúncia e saíram vomitando por aí:
"Cadeia para Lula (mais uma!). Cadeia para Frei Chico". Li a
acusação. E só com isso redigi aquele post.
Agora
vejam o que escreve o juiz ao recusar a denúncia:
A
denúncia é inepta. Não seria preciso ter aguçado senso de justiça, bastando de
um pouco de bom senso para perceber que a acusação está lastreada em
interpretações e um amontoado de suposições.
(…)
Considerando
a análise jurídica acima apresentada, somente o período de 2003 a 2010 poderia
ter alguma relevância penal, pois foi esse o interregno em que o denunciado
LUIS INÁCIO LULA DA SILVA exerceu as funções do cargo de Presidente da
República.
(…)
Ex-funcionário
público não mais ostenta a qualidade especial exigida pelo tipo penal, não
exerce função, não pratica ato de ofício, não infringe dever funcional.
Assim,
a partir de janeiro de 2011 a 2015, afigura-se chapada a atipicidade dos fatos
imputados a todos os denunciados, por absoluta ausência da elementar
consubstanciada na figura do funcionário público.
(…)
Não
se tem elementos probatórios de que LULA sabia da continuidade dos pagamentos a
FREI CHICO sem a contrapartida de serviços, muito menos que tais pagamentos se
davam em razão de sua novel função.
Parece
que esqueceram de combinar isso com o então presidente recém eleito. Uma coisa
é a intenção ou objetivos pretendidos pelo Grupo ODEBRECHT, outra, bem
diferente, é a convergência dessas vontades para fins penais (em 3min40s do
termo de colaboração premiada de ALEXANDRINO afirma que a continuidade do pagamento
"foi uma opção da empresa").
Nada,
absolutamente nada existe nos autos no sentido de que LULA, a partir de outubro
de 2002 pós-eleição foi consultado, pediu, acenou, insinuou, ou de qualquer
forma anuiu ou teve ciência dos subsequentes pagamentos feitos a seu irmão em
forma de "mesada" – a denúncia não descreve nem mesmo alguma conduta
humana praticada pelo agente público passível de subsunção ao tipo penal.
Nessa
mesma linha de raciocínio, não se tem notícias, nem mesmo indiciárias, de que
alguém o tivesse avisado (a LULA) de que o motivo ou objetivo da empresa com os
pagamentos sofrera mudanças a partir de 2003 – agora para "evitar decisões
que LULA poderia tomar especificamente no setor petrolífero".
(…)
A
denúncia não pode ser o fruto da vontade arbitrária da acusação, baseada em
suposições ou meras possibilidades. A imputação deve ter lastro probatório
sério e verossímil – nessa senda a própria mesada parece risível para os
supostos fins almejados pelos denunciados.
(…)
Somente
o codenunciado ALEXANDRINO, pois, em colaboração premiada, alegou que LULA
sabia, sem esclarecer o alcance dessa suposta ciência (o que sabia exatamente?)
dos pagamentos e qual seria sua finalidade.
Impende
salientar que a palavra de colaborador, sem provas, não tem o condão de
alicerçar eventual condenação (art. 4º, § 16, da Lei 12.850/2013). E, segundo
orientação do Colendo STF, imputação calcada em depoimentos de réus
colaboradores, sem provas mínimas a corroborarem a acusação, conduz à rejeição
da denúncia por ausência de justa causa.
(…)
RETOMO
É
auspicioso que ainda tenhamos juízes que não considerem um dever aceitar uma
denúncia a qualquer preço, mesmo quando não estão dados elementos para tanto.
A
Segunda Turma do Supremo rejeitou denúncia oferecida pelo Ministério Público
contra Aroldo Cedraz, do TCU. Simplesmente não se apresentou nenhuma evidência
de que tivesse qualquer relação com o ilícito que é imputado a seu filho. Ao
contrário: o que se apresentou como evidência demonstrava justamente a
não-relação.
A
denúncia foi rejeitada por três votos a dois: de um lado, Ricardo Lewandowski,
Gilmar Mendes e Celso de Mello. De outro, os punitivistas Edson Fachin e Cármen
Lúcia. Escrevi, no dia 11 passado, o seguinte sobre o recebimento de uma
denúncia:
Para
tanto [receber uma denúncia], é preciso que haja indícios consistentes de
irregularidade, não simples conjecturas, baseadas no "quem sabe exista
algo de estranho aí…"
Sim,
o juiz é livre para formar a sua convicção mesmo no ato de recebimento de uma
denúncia, que ainda não é a condenação. Mas é preciso que se leve em conta que
não se deve tomar por procedimento corriqueiro ou inócuo transformar alguém em
réu.
Parece
vigorar a máxima entre alguns ministros de que uma denúncia deve ser sempre
recebida para que se tenha, então, a certeza absoluta de que nenhum ilícito foi
cometido.
Trata-se
de uma aberração. Quando o MPF a oferece, esta já foi precedida de um
inquérito; investigações já foram feitas. Se o órgão acusador não conseguiu
oferecer nada de minimamente consistente contra aquele que pretende ver
transformado em réu, não cabe ao juiz entregar-lhe uma vítima de bandeja para
que esta continue a ter a vida escarafunchada, investigada, esquadrinhada
"em busca de alguma coisa".
Infelizmente,
essa concepção, filha legítima da Lava Jato, contaminou setores do Supremo e
tem contribuído para levar à desordem o devido processo legal e o sistema penal
brasileiro.
Ministro
do Supremo não pode ser despachante do Ministério Público Federal.
ENCERRO
Nem
ministro do Supremo nem juiz nenhum. Um magistrado deveria aceitar sempre com
alguma tristeza uma denúncia, nunca com júbilo. E tal consternação, claro!, não
poderia impedi-lo de procurar ser justo.
Faço
essa observação porque, em certos nichos, parece que há juízes interessados
numa estranha forma de produtividade: acham que enfileirar réus é evidência de
Justiça eficiente.
A
eficiência está em cumprir a lei, não em apelar à demagogia que pode produzir
ainda mais injustiça e destruir vidas e carreiras.
Juiz
que decide para atender ao alarido está distante da Justiça e muito perto do
crime.

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