O
ano era 1949 e vivia-se em meio à guerra fria, que no ano seguinte se tornaria
quente na Coreia. O Brasil, sob o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra,
havia entrado firme – e prematuramente –nessa sombria era. Em maio de 1947, o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cancelou o registro do Partido Comunista do
Brasil (PCB) e, em janeiro do ano seguinte, foi cassado o mandato de seus
parlamentares num golpe parlamentar. Desde então, aumentou a escalada da
repressão aos “vermelhos”. Os seus principais dirigentes, tendo suas prisões
preventivas decretadas, entraram na clandestinidade. Vários jornais, mesmo não
pertencendo oficialmente ao partido comunista, passaram a ser constantemente
censurados e empastelados pela polícia.
Assim,
o governo Dutra teve como uma das suas marcas acentuadas a truculência contra a
esquerda e os movimentos populares. Realizou aproximadamente 400 intervenções
em sindicatos, visando a afastar as direções suspeitas de serem ligadas ao
comunismo. As manifestações e greves foram proibidas e algumas dissolvidas à
bala. O saldo da repressão governamental desmedida foi 55 militantes mortos e
centenas de feridos.
No
estado de São Paulo, a situação não diferia muito da do resto do país, mas
havia um detalhe. Ali, os comunistas tinham apoiado a eleição do governador
Adhemar de Barros pelo Partido Social Progressista (PSP), e inclusive eleito
dois deputados federais por aquela legenda: Pedro Pomar e Diógenes Arruda
Câmara. Ameaçado de cassação – entre outras coisas,pelo apoio recebido do PCB
–, Adhemar passou a perseguir o antigo aliado eleitoral. Para agradar Dutra,
tornou-se mais realista do que o próprio rei.
Nesse
ambiente hostil, os comunistas mantiveram-se firmes na sua missão de organizar
os camponeses pobres do interior. Esta era uma de suas tarefas mais difíceis
devido à persistência do coronelismo, apoiado em milícias privadas e no poder
oligárquico local. Mesmo assim, envolveram-se ativamente na preparação do
Congresso de Trabalhadores Rurais da Alta Paulista, cujo objetivo era organizar
uma União Camponesa naquela região do estado de São Paulo. Tupã deveria se
constituir num dos polos desse perigoso empreendimento. Ali dominavam os
grandes proprietários de terra. O mais famoso deles, por sua riqueza, seu poder
e truculência,era Luiz Souza Leão, fundador da cidade.
Inicialmente,
o congresso camponês estava planejado para ser realizado em maio em Marília;
contudo, foi proibido pela polícia. Nesse processo Edgard de Almeida Martins,
principal dirigente do Partido na área, terminou sendo preso. Mesmo assim os
comunistas não desistiram da ideia. Dando curso a esse projeto arriscado, convocaram
uma reunião clandestina com militantes da região em Tupã.
No
dia 23 de setembro, Maria Aparecida Rodrigues chegou àquela cidade vinda de
Santa Cruz. Tinha apenas 20 anos e sua missão era ajudar na preparação daquele
encontro que daria os primeiros passos no sentido da fundação da tão sonhada
entidade camponesa. A imprensa conservadora a intitulara “mocinha do barulho”,
pois tinha “aprontado” num comício de Prestes Maia, candidato a governador pela
UDN, na cidadezinha de Osvaldo Cruz. Sabendo que muitos camponeses iriam
participar daquela manifestação política, por terem confundido Prestes Maia com
o líder comunista Luiz Carlos Prestes, a jovem resolveu comparecer e, num
determinado momento, pediu a palavraem nome das mulheres locais apoiadoras de
Prestes. Não disse, porém, de qual Prestes se tratava. Para assombro geral, ela
defendeu as candidaturas comunistas e terminou gritando “Viva a Paz!”,
principal slogan do PCB naquele momento. Em seguida, desceu rapidamente do
palanque e sumiu na multidão, protegida pelos seus camaradas.
Abro
parênteses para falar um pouco da combativa Maria Aparecida. Filha de
comunistas, nasceu em Brodowski, terra natal de Cândido Portinari, em 2 de
junho de 1929. Depois de ter morado cerca de cinco anos em pequenas cidades em
torno de Ribeirão Preto, mudou-se para Vera Cruz, na Alta Paulista. O pai era
caixeiro-viajante, e aos 14 anos ela começou a acompanhá-lo pelo interior,
chegando a trabalhar como boia-fria, colhendo algodão e café. Entre 1946 e
1947, aproximou-se do Partido Comunista do Brasil (PCB) e ajudou a fundar a
União Feminina de Vera Cruz. Em julho de 1948, enviou uma carta à redação do
Momento Feminino, congratulando-o pelo seu primeiro aniversário. No ano
seguinte, participou, como única delegada de sua cidade, da 1ª Convenção
Feminina do Estado de São Paulo.
Numa
entrevista dada posteriormente ao mesmo Momento Feminino, descreveu a
importância que teve aquele encontro de mulheres: “A I Convenção Feminina,
realizada em 1949, trouxe-me para a verdadeira atividade da luta organizada;
foi lendo os seus trabalhos, foi entrando em contato com mulheres lutadoras,
que senti a necessidade de reforçar a minha atividade frente aos problemas
femininos. (...) Terminada as atividades da Convenção, já me achava entrosada
nas do Congresso da Paz, havendo tomado parte nas assembleias estadual e
nacional. Assisti a cena vandálica da Polícia Especial na sede da UNE (...) e
isto, como era natural, veio ativar em mim o propósito de não perder mais um
minuto sequer na luta pela conquista de nossos direitos”. Continua ela: “Voltei
a Santa Cruz mais orientada e com maiores experiências: havia adquirido maior
confiança na luta do povo! Dediquei-me então à organização da mulher camponesa
(...). Muitas coisas interessantes surgiram nas singelas reuniões daquelas
humildes mulheres do campo.” (Momento Feminino, 2 de março de 1950). A I
Convenção Feminina de São Paulo ocorreu entre 27 e 29 de março; ou seja, poucos
meses antes de ela desembarcar em Tupã.
Segundo
Airton Souza de Lima, “Dário de Paula, que viajava frequentemente pela Alta
Paulista, recebia visitas de ‘companheiros comunistas camponeses’, em sua casa,
na Fazenda Luar, em Tupã. Irineu de Moraes, o Índio, ligado à Direção do
Partido no Estado, trazia as orientações, responsável que era pela articulação
dos movimentos rurais no interior paulista (...). A casa de Dário (...) teria
sido o lugar escolhido para a reunião pró-paz, objetivando a fundação da
‘Associação Camponesa do Estado de São Paulo’”. Maria Aparecida opinou que não
era uma boa ideia fazer a reunião naquele lugar, pois era muito visado pelos
fazendeiros e autoridades policiais da região. Mas, infelizmente, não se
encontrou um local mais adequado e a reunião terminou por ser realizada na
gleba de Dário.
Pouco
mais de uma dezena de trabalhadores, sendo três de Tupã, se reuniu durante o
dia 25 de setembro. O fato não passou despercebido. Tudo indica que a própria
proprietária da fazenda denunciou-os à polícia. O delegado Renato Imparato rapidamente
montou uma patrulha com oito homens e seguiu até o local. Chegaram à noitinha.
Desceram das viaturas e se aproximaram sorrateiramente do casebre onde pouco
antes ocorrera a reunião. Havia restado ainda algumas poucas pessoas, que
viajariam de trem na manhã seguinte. A invasão policial caracterizou-se pela
extrema violência, típica do período. Existem várias interpretações sobre o que
teria ocorrido naquele momento. O resultado da ação repressiva foi três
trabalhadores e um policial mortos. O acontecimento entraria para a história
como a Chacina de Tupã.
Os
militantes assassinados foram: Afonso Marma, operário de São Paulo; Pedro
Godoy, marítimo de Santos; e Miguel Rossi, trabalhador rural de Garça. E o
soldado Sebastião Jacinto Lima. A polícia e a imprensa, como sempre, buscaram
jogar a responsabilidade da tragédia nas costas dos comunistas. Eles teriam
recebido os policiais à bala. Nos dias seguintes, os jornais trouxeram fotos
dos corpos ao lado das supostas armas que estariam usando na hora do conflito.
Método comum até os dias de hoje.
Diante
do juiz, o sargento Nilo Cipriano Oliveira, um dos participantes da operação,
declarou que os revólveres e uma carabina haviam sido colocados propositalmente
ao lado dos cadáveres e pertenciam à própria Delegacia. Além disso, depois das
execuções, os policiais teriam atirado de dentro para fora da casa, visando a
incriminar as vítimas e responsabilizá-las pelo início do tiroteio. Cipriano
afirmou terem dado voz de prisão aos que estavam conversando ao lado do
casebre. Um dos soldados tentara desarmar Miguel Rossi, e este reagira. Ato
contínuo, o líder camponês foi executado pelos demais policiais. Os que ainda
estavam na casa tentaram fugir e foram alvejados. Dois outros trabalhadores
tombaram. Afonso Marma morreu no local e Godoy ficou gravemente ferido. O
delegado não teve pressa de levá-lo ao hospital, onde faleceria no dia
seguinte. As vítimas comunistas foram enterradas como indigentes embora
portassem documentos. Enquanto isso, o enterro do soldado se transformou numa
manifestação anticomunista.
O
jornal Voz Operária descreveria assim a morte de Godoy: “O delegado Imparato
impediu que fosse prestado socorro médico a Godoy. Dirigindo-se ao bravo
proletário, o bandido policial disse ‘Você pode salvar-se. Mandarei tirar a
bala, fazer os curativos se você der os nomes dos outros’. O cão policial
propunha que trocasse sua vida pela honra. Pedro Godoy, dominando as dores
atrozes que o consumiam, queimou o bandido com o lampejo de ódio do seu olhar.
Escarrou na cara do policial e, reunindo suas últimas forças, deu-lhe um
pontapé com a perna ferida. Depois se voltou para a parede, fechou os olhos e
esperou a morte.” (VO, 25 de setembro de 1954). A cena teria sido vista por um
enfermeiro que contou posteriormente a um membro do PCB.
No
dia seguinte à Chacina, dois outros comunistas seriam presose levados ao DOPS,
onde permaneceriam por onze dias, incomunicáveis: Maria Aparecida, a “mocinha
do barulho”, e o sapateiro Honório Tavaresde Faria, militante em Marília. Em
seis de outubro, foram transferidos para a cadeia de Tupã e processados pela
Lei de Segurança Nacional. Dário, proprietário da casa, conseguiu escapar e
comunicou à direção do PCB o que ocorrera.
O
Partido Comunista e demais correntes democráticas denunciaram as violências
ocorridas em Tupã – como parte de uma política repressiva mais ampla
desencadeada pelos governos de Dutra e Adhemar de Barros. Um Manifesto ao povo
de São Paulo dizia: “Os parlamentares e cidadãos abaixo-assinados (...) ainda
mal refeitos da indignação que lhes causaram os bárbaros e desumanos
acontecimentos de 25 de setembro em Tupã, onde, ultrapassando todos os limites
do arbítrio e da ilegalidade, a polícia atirou mortalmente contra três honrados
chefes de família, vêm pelo presente tornar público o seu protesto por tão
violenta atitude tomada justamente por aqueles que têm o dever de evitar fatos
dessa natureza. Proclamam sua irrestrita solidariedade ao povo de São Paulo e
as famílias de Miguel Rossi, Afonso Marma e Pedro Godói que tombaram em Tupã,
vítimas de um ataque brutal, quando no franco exercício dos direitos que a
Constituição garante a todo cidadão”. Entre os que assinaram esse contundente
protesto estão os deputados federais Euzébio Rocha e Pedro Pomar; os deputados
estaduais Porfírio da Paz e Manoel de Nóbrega; e os vereadores da capital
paulista Jânio Quadros e Cid Franco.
Dias
depois a imprensa começou a divulgar a biografia dos comunistas mortos. Afonso
Marma (24-01-1908) nasceu na Lituânia e chegou ao Brasil em 1927. Logo se
vinculou ao Partido Comunista do Brasil e contribuiu para a organização da
comunidade lituana, criando clubes e jornais desses imigrantes, em geral
pró-soviéticos. Devido a seu trabalho militante, foi preso e deportado em julho
de 1930. Trabalhou na Argentina e no Uruguai, também organizando os imigrantes
lituanos. Voltou ao país em 1935. Continuou sua vida de operário em várias
empresas, incluindo a Laminação de Metais em Utinga. Possivelmente, em meados
de 1949, pela sua experiência, foi deslocado para ajudar na organização dos
camponeses da Alta Paulista. Sua morte teve repercussão internacional,
inclusive na Lituânia soviética.
Pedro
Godoy (17-01-1920) era estivador na baixada santista e filiou-se ao PCB em
1946, durante o breve período de legalidade. Candidatou-se a vereador por
aquele partido no município de Guarujá. Destacou-se nas greves de1947 e 1948.
Perseguido, mudou-se para Alta Paulista. Ali se envolveu com as lutas
camponesas. Miguel Rossi (14-09-1907) entrou para o Partido em 1933 e participou
da ANL. Preso em Marília em 1936, permaneceu um ano no famigerado presídio
Maria Zélia. Trabalhava e militava na cidade de Garça quando foi assassinado.
(VO, 5 de abril de 1952).
Iniciou-se
um movimento de solidariedade aos dois militantes presos, especialmente Maria
Aparecida. Esta, além de muito jovem, estava com alguns problemas de saúde. O
jornal Voz Operária informou da realização da Caravana de Tupã, organizada pela
Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, cujo objetivo era visitar e prestar
solidariedade à Maria Aparecida, presa fazia quatro meses em condições
insalubres. A Caravana partiu no dia 23 de janeiro. Afirmava o artigo assinado
por Carlota Gonçalves: “As mulheres demonstraram o alto espírito de
combatividade. Iniciaram o seu trabalho no próprio trem que as conduzia,
fazendo comícios e distribuindo volantes em todas as estações de parada,
explicando ao povo o significado da caravana e pedindo-lhe apoio e colaboração.
Realizaram um comício na Estação de Marília onde receberam calorosa
manifestação de simpatia por parte de sua população”. Ao chegarem ao seu
destino, as mulheres foram presas e algumas agredidas. Acabaram sendo colocadas
de volta num trem para a cidade de São Paulo de onde vieram. (VO, 11 de março
de 1950).
No
dia 29 de março, embarcou no Rio outra caravana, composta por 20 mulheres
representando a Federação das Mulheres do Brasil e a União Feminina do Distrito
Federal. Objetivavam protestar contra a truculência do governadorpaulista que
havia proibido as comemorações do Oito de Março. Tentaram falar com Adhemar,
mas não foram recebidas. Passados alguns dias, Maria Aparecida e Honório
Tavares foram libertados. Haviam passado seis meses e nove dias na prisão.
A
história daquela jovem prosseguiria por caminhos imprevistos. Ela setornaria
aluna do pintor e gravurista Ivan Serpa, destacando-se no mundo artístico. Na
década de 1970,tornou-se uma das maiores pintoras naïf do Brasil, considerada
sucessora de Djanira e Tarsila do Amaral. Morreu em 2006 com 77 anos de idade.
*
Augusto C. Buonicore é historiador e diretor de publicações da Fundação
Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução
brasileira: encontros e desencontros; Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento
de João Amazonas; e Linhas Vermelhas: marxismo e os dilemas da revolução. Todos
publicados pela Fundação Maurício Grabois e Editora Anita Garibaldi.
Bibliografia
ALVES
FILHO, Ivan. A pintura como Conto de Fadas. Brasília (DF): Fundação Astrojildo
Pereira/ Abari, 2003.
LIMA,
Airton Souza de. Vítimas do ódio: a militância comunista e as lutas camponesas
no interior paulista. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais.São Paulo:
Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2010.
POMAR,
Pedro Estevam da Rocha. A democracia Intolerante: Dutra, Adhemar e a repressão
ao Partido Comunista (1946-1950).São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa
Oficial, 2002.
WELCH,
C.; GERALDO, S. Lutas camponesas no interior paulista: memórias de Irineu Luís
de Moraes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
ZEN,
Erick Reis Godliauskas. Mataram Afonso Marma: imigração, comunismo e repressão.
Rio de Janeiro: Planeta Azul, 2015.
http://www.grabois.org.br/portal/artigos/154904/2019-08-02/os-70-anos-da-chacina-de-tupa-a-saga-comunista-nos-tempos-da-guerra-fria
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