Em 1940, ano da sua morte ao fugir do nazismo, Benjamin
escreve aquela que seria sua derradeira obra, considerada por muitos como o
mais importante texto sobre o materialismo histórico desde Marx, enquanto que
para outros, a antiga ortodoxia, um retrocesso no pensamento benjaminiano. São
elas as “Teses Sobre o Conceito de História”.
Adorno, referindo-se àquele de quem foi o único discípulo,
disse que Benjamin, apesar de não ser poeta, pensava poeticamente inclusive
questões tão concretas quanto o materialismo histórico. Ele é quase sempre
metafórico, na própria acepção grega de “metaphorien”, do transporte que
estabelece conexões sensorialmente percebidas, dispensando muitas
interpretações. O sentido da importância do progresso material, por exemplo, é
por Benjamin cotejado com a excelente metáfora do Anjo da História:
Paul Klee desenhou o “Angelus Novus” e nele se inspira
Benjamin. O anjo messiânico nos traria uma imagem de transparência rumo à
verdade, à justiça social, à racionalidade amorosa.
“Ele representa um anjo que parece querer afastar-se de
algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca
dilatada, suas asas abertas. O Anjo da História deve ter esse aspecto. Seu
rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruínas
sobre ruínas e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar
os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e
prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as
costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o
que chamamos progresso.”
G. Sholem, o amigo mais próximo de Benjamin, expressou em
versos o sentimento deste sobre sobre o Anjo da História:
“Minhas asas estão prontas para o voo,
se pudesse eu retrocederia,
pois eu seria menos infeliz,
se permanecesse imerso no tempo vivo”.
O “historicista” e o
materialismo histórico
Para Benjamin, todo historiador que não traga em seu
coração o materialismo histórico estabelecerá uma relação de empatia com os
Vencedores e estes são os que dominam aqueles que têm sido sempre os Vencidos.
Esta empatia diz tudo para um materialista histórico: “Todos os que até hoje
venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de agora
espezinham os corpos dos (vencidos) que estão prostrados no chão”.
“Os despojos carregados em cortejo são o que chamamos bens
culturais”. Estes devem sua existência não somente ao esforço dos grandes
gênios que os criaram como à corveia anônima de seus contemporâneos, “pois
nunca houve um momento da cultura que também não o fosse da barbárie”.
A luta de classes que um historiador educado por Marx
jamais perde de vista é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais
não existem as refinadas e espirituais. Mas na luta de classes as coisas do
espírito não podem ser representadas como despojos atribuídos ao vencedor. Elas
se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da
astúcia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questionarão
cada vitória dos dominadores.
Dessa forma, articular historicamente o passado não
significa conhecê-lo “como de fato ele foi”. Significa apropriar-se sempre de
uma reminiscência, tal como relampeja no momento de um perigo. Cabe ao
materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como a mesma se apresenta
nesse momento ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso.
Esse perigo ameaça tanto a existência da tradição como os
que a recebem. Para ambos, o risco é o mesmo: entregar-se às classes
dominantes, como seu instrumento. “Em cada época é preciso arrancar da tradição
o conformismo, que quer apoderar-se dela”.
O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é
privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não
estarão em segurança se o inimigo vencer. “E esse inimigo não tem cessado de
vencer na História”.
Fascismo e “o
progresso”
A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de
exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um
conceito de História que corresponda a essa verdade. O fascismo se beneficia da
circunstância de que seus adversários, os democratas, os socialistas, os
anarquistas e os marxistas enfrentam-no
em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. Ora, o assombro com
o século XX não gera conhecimentos, a não ser o conhecimento de que a concepção
de História do qual emana é insustentável.
“Nosso ponto de partida é a ideia de que a obtusa fé no
progresso dos políticos antifascistas, sua confiança no “apoio das massas” e,
finalmente, sua subordinação servil a um aparelhamento da máquina incontrolável
são três aspectos da mesma realidade”. Como vimos, todos eles se reproduziram
no caso recente dos governos petistas no Brasil, e seu fracasso abriu as portas
ao fascismo.
Acontece que o conformismo, que sempre esteve na essência
da de nossa “subdesenvolvida”, viciada e pobre socialdemocracia, que jamais
rompeu com o militarismo repressor, não condicionou apenas suas táticas políticas, mas também
suas ideias econômicas, na terrível ilusão que a formação de grande “campeões
nacionais” nos conduziria ao desenvolvimento social .
No caso da Alemanha de Benjamin, nada fora mais corruptor
para a classe operária que a opinião de que ela nadava a favor da corrente. O
desenvolvimento técnico era visto como a água do rio. Daí só haveria um passo
para crer que o trabalho industrial, sob o manto do progresso técnico,
representava a grande conquista política. O trabalho era definido como “fonte
de toda a riqueza e civilização”. E a socialdemocracia e com ela Marx,
preferiram atribuir à classe operária o papel de salvar gerações futuras. E
esta classe desaprendeu na escola socialdemocrata tanto o ódio de classe quanto
o espírito de sacrifício, “pois tanto um quanto o outro se alimentam da imagem
dos antepassados escravizados e não dos descendentes que um dia serão
libertados”.
A ruptura necessária
A consciência de fazer explodir o “continuum” da história
é própria da revolta social no momento da ação. O materialista histórico não
pode renunciar ao conceito de um presente que é transição, mas que estaciona no
tempo e se imobiliza. Porque esse conceito define exatamente aquele presente em
que ele mesmo escreve a história. Enquanto o “historicista” apresenta a imagem
“eterna” do passado, o materialista histórico faz deste passado uma experiência
única. “Ele deixa a outros a tarefa de se esgotar no bordel do historicismo com
a meretriz que principia com o fatídico ‘era uma vez… ’”
O trabalho do capitalismo desenvolvido visa à exploração e
destruição da natureza, comparada com igual complacência à exploração do
proletariado e sua transformação em despojos do processo. Ao conceito
corrompido de trabalho corresponde o complementar da natureza que “está ali,
grátis”, para ser usada, massacrada e destruída. Ora, a natureza não se
reproduz na velocidade de sua destruição, como sói ocorrer com a classe
operária.
Através do conceito de história de Benjamin, concluído
pouco antes de seu suicídio com overdose de cocaína diante da possibilidade de
ser enviado aos campos de concentração nazistas, chegamos claramente ao
desprezo que Bolsonaro e seus militares fascistas expressam para com os
trabalhadores e para com nossa riqueza e diversidade natural: foram feitos para
servir e serem exterminados pelo capital.
No entanto, ao final, a perspectiva histórica de Benjamin
se faz soar:
“Nesse planeta, um grande número de civilizações pereceu
em sangue e horror. Naturalmente é preciso desejar ao planeta que algum dia
experimente uma civilização que tenha abandonado o sangue e o horror; de fato
estou inclinado a pensar que nosso planeta espera por isso. Mas é terrivelmente
duvidoso que nós consigamos trazer tal presente em sua festa de aniversário de
100 milhões ou de 400 milhões de anos. E se não o fizermos o planeta nos punirá
a nós, com nossos irrefletidos bons votos a ele, presenteando-nos com o Juízo
Final.”
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