Olá, por estratégia ou não, fato é que Bolsonaro conseguiu
mais uma vez monopolizar o debate público ao colocar para fora toda sua falta
de civilidade. Dessa vez, porém, a reação foi um pouco diferente e ultrapassou
os muros da oposição ao governo. Isso no âmbito interno. Lá fora, é a Amazônia
que vem alertando o mundo para a escalada autoritária, que nos confins do
Brasil têm resultado em mais massacre contra os povos indígenas. Estes são alguns
dos sete pontos para entendermos a semana. Vamos nessa.
1. Os limites da
infâmia. Há algo no ar além dos aviões de carreira, diria o Barão de
Itararé. Bolsonaro passou os últimos 30 anos ultrapassando qualquer limite de
bom senso, homenageando torturadores, exaltando a ditadura e prometendo
executar adversários, mas de repente, não mais que de repente, suas declarações
passaram a incomodar parcelas consideráveis da grande imprensa e da classe
política que, antes, não pareciam se importar.
Fato é que causaram asco os ataques de Bolsonaro ao
presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai, Fernando Augusto Santa Cruz,
foi morto por agentes de Estado durante a ditadura, como demonstra farta
documentação ignorada pelo presidente da República, cujo governo inclusive
emitiu na semana anterior um atestado de óbito informando que Santa Cruz teve
"morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto
da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como
opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985". A declaração, ao
menos, serviu para que o MPF denunciasse o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra
por ocultação e destruição de 12 corpos, entre 1973 e 1975, incinerados em
Campos, no Norte Fluminense. Entre eles, Fernando Santa Cruz. Até agora,
Bolsonaro emitiu 230 declarações falsas ou distorcidas em 209 dias de governo.
Após críticas da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, o
governo trocou quatro membros, colocando como presidente um filiado do PSL que é
acusado de beneficiar a mulher e a cunhada em um concurso de uma prefeitura
catarinense.
A palavra impeachment apareceu com força. Até Dória, que
abraçou o bolsonarismo gourmet, agora diz que nunca foi alinhado a Bolsonaro,
num movimento que pode ser lido como uma ruptura ensaiada para 2022. Um dos
autores do pedido de impeachment de Dilma, Miguel Reale Jr. afirmou que a
declaração não é motivo para impeachment, mas sim para interdição. Como lembrou
o jornalista Kennedy Alencar, Bolsonaro teria cometido um crime comum ou de
responsabilidade, agindo de modo incompatível com a honra e o decoro do cargo,
mesma avaliação de advogados ouvidos pelo UOL. Já cientistas políticos e
juristas ouvidos pelo Nexo são menos otimistas: as falas são excessivas, mas a
legislação é vaga e um impeachment é improvável.
A verborragia de Bolsonaro tem transitado por outros temas
nas últimas semanas. “Sou assim mesmo, não tem estratégia”, disse ele em
entrevista na quarta-feira (31). Pode ser verdade, mas este é apenas um dos
cinco pontos levantados por Leonardo Sakamoto para entender as razões da língua
solta: os outros motivos seriam uma tentativa de monopolizar a atenção durante
o recesso do Congresso, desviar o foco de denúncias como o uso do avião da FAB
por familiares e o próprio mau desempenho do governo, e por fim uma tentativa
de manter o bolsonarismo raiz mobilizado. É uma avaliação que temos trazido com
certa frequência aqui no Ponto. Para o professor da UERJ, Christian Edward
Cyril Lynch, o único plano de Bolsonaro “é manter o domínio sobre 30% do
eleitorado e se tornar uma espécie de Lula de direita nos próximos anos”, em
entrevista ao El País que deve ser lida, mesmo com discordâncias.
Mas é difícil imaginar um cenário de desestabilização do
governo Bolsonaro quando o mercado financeiro demonstra não se importar nenhum
um pouco com o autoritarismo presidencial, na medida em que ele ainda está
entregando o desmonte do Estado. Por outro lado, a verborragia presidencial
pode resultar em uma dispersão da base de apoio no Congresso, como teme o
próprio governo, e uma redução ainda mais drástica no apoio popular.
2. Glenn, Moro e
Deltan. Em meio a onda verborrágica desta semana, Bolsonaro não poderia
deixar de atacar o jornalista Gleen Greenwald, insinuando que o jornalista teria
cometido crime, sem especificar qual. Nas redes sociais, a novidade do submundo
bolsonarista é atacar a MÃE do jornalista, colocando em dúvida o fato de ela
estar doente. Mas o jornalista não ficou nas cordas e recebeu a solidariedade
de mais de três mil pessoas num ato organizado pela Associação Brasileira de
Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro. Com destaque para o vídeo de apoio de
Rodrigo Maia, mais um procurando demonstrar distanciamento de Bolsonaro. A
organização Repórteres sem Fronteiras também lançou um chamado internacional em
defesa do jornalista e do The Intercept que recebeu a adesão de 26 organizações
nacionais e internacionais.
Quando a gangorra vira para o lado de Glenn, cai para
Sérgio Moro. O Ministério Público decidiu investigar se há ilegalidades na
portaria que definiu as regras para deportação sumária de estrangeiros,
enquanto 800 juristas publicaram um manifesto exigindo a imediata demissão de
Moro. Moro também sofreu derrota no STF, onde Luiz Fux (“we trust”) determinou
que as mensagens apreendidas com os supostos hackers sejam mantidas e
preservadas sob controle do Supremo e não destruídas, como anunciou Moro.
Decisão que foi repetida por Alexandre Moraes. Por outro lado, o professor
Christian Cyril Lynch (UERJ) avalia que Moro aderiu definitivamente ao
bolsonarismo, deixando a figura de juiz e se sentindo muito confortável como um
prócer do bolsonarismo. Definitivamente investido da figura de político, Moro
deve disputar algum cargo nas próximas eleições, mesmo que não seja de presidente,
sugerem seus assessores, segundo O Globo.
Já o futuro do seu braço-direito Deltan Dallagnol parece
ser menos auspicioso. As últimas revelações da Vaza Jato mostram que o promotor
investigou o atual presidente do STF Dias Toffoli e sua esposa. Ministros do
STF não podem ser investigados por procuradores da primeira instância, como
Deltan. “Quem aposta que Toffoli cai até o fim da LJ?”, escreveu o todo
poderoso inquisidor da Lava jato. A denúncia repercutiu mal, claro, e nos
bastidores, Dias Toffoli e Gilmar Mendes avaliam que Dallagnol precisa ser
punido exemplarmente. "Não se trata apenas de um grupo de investigação,
mas de um projeto de poder", declarou Gilmar Mendes. As denúncias também
aumentam a pressão para que o Conselho do MP tome medidas punitivas contra
Deltan, inclusive o afastamento das funções. Haveria uma articulação para o
afastamento do procurador do comando da Lava Jato.
3. Mexendo com fogo.
Mesmo com este cenário delicado e considerando que a educação foi o único tema
capaz de levar as pessoas às ruas, o governo publicou um novo decreto de cortes
no orçamento, somando mais de R$1,44 bilhões e, de novo, atingindo em cheio a
educação, com R$ 348,5 milhões bloqueados. A pasta mais afetada foi a da
Cidadania, que perdeu R$ 619,2 milhões. Outras áreas afetadas pelos cortes são
investimentos em infraestrutura, ações de defesa agropecuária, emissão de
passaportes, Farmácia Popular, fiscalização ambiental (Ibama), bolsas para
atletas e aquisição e distribuição de alimentos para agricultura familiar. Se
por um lado, os cortes estimulam a manifestação prevista para 13 de agosto em
defesa da educação, por outro, podem obrigar indiretamente a adesão das
instituições de ensino superior ao Future-se.
4. Estranhas
transações no Paraguai. Enquanto isso, no Paraguai, o governo Bolsonaro
quase causou o impeachment do presidente conservador de Abdo Benítez. Em menos
de 24 horas o ministro das Relações Exteriores e três outros altos
funcionários, incluindo o diretor de Itaipu renunciaram alegando o país estava
sendo obrigado a assinar um acordo que prejudicaria os paraguaios e
beneficiaria uma empresa ligada a família Bolsonaro. Segundo o jornal ABC
Color, um braço direito do vice-presidente teria convencido autoridades a
retirar um item do acordo impedindo o Paraguai de comercializar energia ao
Brasil, porque era preciso “reservar o negócio” para a empresa Leros,
supostamente “ligada à família presidencial” brasileira. O BuzzFeed revelou que
a empresa foi representada na negociação pelo empresário Alexandre Giordano,
suplente do senador Major Olímpio (PSL-SP). Procurado pela Piauí, o empresário
negou as acusações. Na madrugada de quarta (31) para quinta (1.º), uma fração
do próprio partido governista decidiu apoiar o pedido de impeachment, o que
daria os votos necessários para o afastamento, mas no mesmo dia, o governo
anunciou o cancelamento do acordo. A decisão deve frear o processo.
5. Vamos vender
nossos índios num leilão. No dia seguinte após a declaração de Donald Trump
de que Estados Unidos e Brasil trabalham para um acordo de livre-comércio, o
secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Marcos Troyjo,
tratou de definir o futuro acordo como o mais “ambicioso e abrangente” possível
com o país. Já Paulo Guedes afirmou que mais que um acordo, será uma “aliança
estratégica”, mais profunda que um tratado comercial. Não à toa, no mesmo dia,
Bolsonaro repetiu as mesmas críticas do governo americano ao acordo da União
Europeia e Mercosul, aquele mesmo que há trinta dias, o governo celebrava ter assinado.
Mas para que esperar um acordo, não é mesmo? O Poder 360
revela que o Ministério de MInas e Energia já está em tratativas com
petroleiras como a Shell, Exxon Mobil e Total pelos excedentes da cessão
onerosa do Pré-sal, com leilão previsto para novembro. Já a insuspeita Eliane
Cantanhêde criticou que o governo é hostil com a União Europeia no tema do meio
ambiente e da Amazônia, mas dócil para abrir a mineração em terras indígenas
para os americanos.
As falas do presidente têm consequências: em Aquidauana,
cem indígenas da etnia Kinikinaus, que reivindicavam a posse de uma área no
município, foram retirados com truculência pela prefeitura (!) e por 130
policiais sem ordem judicial. Na prática, o discurso de Bolsonaro estimula a
violência e dá carta branca aos desmatadores e grileiros, denuncia a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, como a declaração de que não há
“nenhum indício forte” de que o cacique Emyra Wãiapi, de 68 anos, da terra
Indígena Waiãpi (AP), tenha sido assassinado. Indígenas e a FUNAI apontam que o
cacique foi assassinado por garimpeiros ilegais que atuam na reserva. A BBC
Brasil reconstrói a situação da área e lembra que a defesa de Bolsonaro em
liberar a exploração mineral em terras indígenas brasileiras coincide com a expansão
do garimpo ilegal por vários desses territórios.
A propósito, um levantamento feito pela Folha no sistema
público de registros de multas do Ibama mostra que o número de multas por
crimes contra a flora (desmatamento, comércio de madeira, incêndios, entre
outros) caiu 23% nos seis primeiros meses do governo Bolsonaro, na comparação
com a média registrada no mesmo período nos últimos cinco anos. Entre janeiro e
junho de 2019, foram 5.826 autuações. No período, o ano com menor número de
multas foi 2017 (Temer), com 7.051. No domingo (28), a destruição da Amazônia
foi capa do New York Times, que deu o nome aos bois como não se faz na imprensa
brasileira: o colapso ambiental e social na Amazônia se agravou com a chegada
do presidente de extrema-direita. A mesma preocupação está na capa da revista
The Economist. O que faz o governo? Acha melhor escamotear os dados sobre
desmatamento na Amazônia, como faria a mais bem acabada ditadura de uma
república bananeira.
6. A ditadura não
chega de uma hora para outra. Não bastassem as ameaças contra um
jornalista, o deboche contra vítimas da ditadura e o ataque aos dados
científicos, o autoritarismo do governo vem se manifestando em diferentes
setores, como noticiamos na edição passada. Nesta semana, por exemplo, ficamos
sabendo que o ministro das Relações Exteriores censurou a publicação de um
livro só porque o prefácio era assinado por Rubens Ricupero, um crítico de
Ernesto Araújo. Na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), Bolsonaro
acabou nomeando reitor o terceiro colocado na votação da comunidade acadêmica.
Bolsonaro já nomeou outros seis reitores, sendo que cinco foram primeiros
colocados na lista tríplice e um, o segundo (UFTM). Os guardas da esquina
também estão inspirados. Segundo o músico BNegão, conhecido por suas letras
críticas, o show de sua banda em Bonito (MS) foi interrompido pela Polícia
Militar.
7. E a esquerda,
hein? Sete meses de governo Bolsonaro e os movimentos sociais e a oposição
no Congresso ainda não conseguem escapar da postura reativa para onde são
empurrados com a enxurrada diária de retrocessos. A questão do impeachment de
Bolsonaro provocou debates, mas não ganhou força. No Congresso, a avaliação de
políticos do centrão é de que uma mobilização pelo impeachment ajudaria Bolsonaro,
que teria um inimigo real para manter o combate. PCdoB e PSB tendem a
concordar. Enquanto isso, o PT iniciará uma caravana no Nordeste a partir de
agosto. Integrantes do partido torcem para que as mobilizações funcionem como
“rastilho de pólvora”, unindo grupos e instituições atingidas pelas falas de
Bolsonaro, informa o Painel da Folha de quarta (31). A principal agenda dos
movimentos sociais e centrais sindicais está marcada para o dia 13 de agosto,
quando acontecerá mais dia nacional de luta contra a Reforma da Previdência. Já
a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) lançou a campanha
#MoroMente, para explicar à população as irregularidades cometidas pelo então
juiz no âmbito da Lava Jato. Um ato na USP está marcado para o dia 19. Se o
problema é a falta de proposição da esquerda para contrapor o bolsonarismo,
vale uma atenção especial ao recém criado Consórcio Nordeste, com a previsão de
compras conjuntas para a região e uma versão regional do programa Mais Médicos.
8. Ponto Final: nossas
recomendações de leitura
O Bolsonarismo
representa um projeto de punitivismo que ameaça a democracia vai além da figura
de Jair Bolsonaro, analisa a antrópologa Isabel Kallil no Sul 21: “a sociedade
brasileira, à medida que vai tolerando determinadas violações de direitos, vai
de certa forma ampliando o espaço para que essas violações aconteçam. Elas são
reiteradas e recebem apoio da sociedade. A ideia é que, para resolver os
problemas, é preciso ter um Estado que puna as pessoas. Inclusive, alguns
desses grupos acreditam que não é preciso sequer haver instituições”.
No El País,
Eliane Brum discute as causas e consequências de uma epidemia que parece
acometer grande parte da população. As pessoas estão “doentes de Brasil”,
escreve a jornalista. “Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de
conformação acontecendo neste exato momento no Brasil”, diz. É um texto que vem
sendo muito compartilhado talvez porque as pessoas se sintam isoladas e se
identifiquem com o texto. No final, a autora propõe: “Precisamos recuperar a
palavra como mediadora em todos os cantos onde houver gente. E fazer isso
coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para fazer comunidade. O
único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum”.
“Geralmente são
os investidores brancos que levam as máquinas passando pelas fazendas da região
e abrem a estrada no meio da mata mesmo. Alguns funcionários públicos já
trabalharam lá, tem envolvimento. A polícia já participou lá também. Quem tira
vantagem mesmo é o branco”. A Vice ouviu testemunhos de indígenas que trabalham
no garimpo legal na terra indígena de Cinta Larga em Rondônia.
Na semana em que
57 presos foram mortos em uma rebelião no Pará, o Podcast “Durma com essa” do
Nexo discute os massacres em presídios e ouve especialistas sobre por quê as
mortes violentas dentro de presídios geram pouca empatia em parte da opinião
pública.
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Ponto é uma newsletter semanal editada por Daniel Cassol e
Miguel Enrique Stédile para o Brasil de
Fato.
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