Enquanto
o “Evangelho” escrito pelos quatro apóstolos, que conviveram com Cristo, nos
traz mensagens de amor humano, espiritual e fraterno, suave, romântico e
bastante culto, “O Apocalipse”, escrito por certo João que havia sido banido de
Roma para a ilha de Patmos, tem o sentido da turba, sendo popularesco e
inculto, repleto do rancor selvagem e violento.
Acontece
que são “O Apocalipse” e o Antigo Testamento (a história e a mitologia dos
povos de Israel) e não os relatos dos Quatro Apóstolos que foram as bases tanto
da Igreja Católica inquisitorial e tradicional, quanto do evangelismo
Neopentecostal.
Pois
enquanto os evangelhos de Mateus, João, Marcos, Lucas, e Cristo inventavam uma
religião de amor, uma maneira de viver fraterna, “O Apocalipse” traz uma
religião do Poder, que se baseia numa maneira terrível de julgar e punir os
diferentes. “O Apocalipse” é o livro dos fracassados como seres humanos,
daqueles que se consideram zumbis na sociedade e por isso mesmo expressam o seu
ressentimento com o sentido da vingança, do ódio e do Poder!
Cristo
é doce, amoroso, uma espécie de Buda que buscava livrar seu povo do poder dos
sacerdotes dos Templos Judaicos, sacerdotes que dominavam a turba com a
proliferação do sentimento de culpa, da punição, da vergonha, dos preconceitos,
dos julgamentos e da morte.
Nietzsche,
assim como Spinoza, fazia questão de jamais confundir Cristo, o homem que
trouxe a boa nova, ou seja, o evangelismo, com o “cristianismo”. Para ele, o
“cristianismo” teve por fundador não Cristo, mas o Apóstolo Paulo, que o
filósofo alemão denomina apropriadamente de o “Anticristo”, um policial
convertido mais de trinta anos após a morte do Crucificado. E foi Paulo quem
“manteve o Cristo na cruz” fazendo-o ressuscitar, deslocando toda a crença para
a vida eterna, inventando um novo tipo de sacerdote ainda mais terrível que os
dos templos judaicos, com “a técnica de tirania sacerdotal, sua técnica de
aglomeração, com a crença da imortalidade, que traz embutida a do Julgamento e
da punição”.
O
empreendimento de Cristo é individual; se o indivíduo e a coletividade se
compõem em cada um de nós como partes distintas e intercambiáveis da mesma
alma, para Cristo interessava “desfazer o sistema coletivo do sacerdócio do
antigo testamento, do sacerdote que encarnava o Poder, libertando a alma
individual daquela verdadeira gangue que a aprisionava”, constata D.H.
Lawrence. Cristo pensava que bastaria uma cultura da alma individual para
expulsar os demônios contidos na alma coletiva da comunidade agrupada pelos
sacerdotes. Falhou. E os verdadeiros fundadores do cristianismo como religião
foram “Judas, Paulo e certo João de Patmos”, que nem de longe se assemelha ao
outro João, o evangelista.
Na
realidade, “O Apocalipse” faz valer a reivindicação dos pobres e dos fracos de
espírito, os humildes e os infelizes, esses que somente possuem uma alma
coletiva, já que se exilaram de si mesmos. Nele Cristo retorna da morte não
mais o nobre cordeiro sacrificado, mas como um cordeiro de chifres que ruge
como um leão, cruel e aterrorizante, o pior dos carrascos de toda a literatura.
João, o narrador, diz que ele é o cordeiro imolado, mas o que vemos é um
cordeiro que volta para matar e dizima a humanidade aos milhões. E, na junção
de “O Apocalipse” com Apóstolo Paulo o cristianismo se trona em anticristo,
pois violenta Cristo, transformando-o num cordeiro com pele de leão, com dentes
de sabre, que aglutina os homens em alma coletiva e esta alma almeja o Poder! E
um Poder absoluto que se insere por cada palmo de terra, permeia despoticamente
toda a alma humana que com ele se identifica.
Teremos,
então, o surgimento da vontade de destruir, vontade de ser sempre a última
palavra. E o Poder passa a existir tão somente como uma longa política de
vingança, o longo empreendimento de narcisismo de uma alma coletiva, nas
palavras de Deleuze. Desforra e autoglorificação dos fracos, clamava Nietzsche.
João
de Patmos enxerta um eu monstruoso em Cristo. Sempre títulos de Poder, nunca
títulos de amor! Cristo retorna ao mundo como um conquistador todo poderoso, um
messias da destruição, destruidor de homens que desafiem as vontades da
coletividade imbecilizada. O Cristo salvador, benevolente, jamais! O Filho do
Homem que retorna à Terra o faz como portador de um novo e terrível poder
aterrorizante e destruidor.
E
é um novo tipo de Poder: o da vingança e dos julgamentos!
Logo,
“O Apocalipse” é ao mesmo tempo tanto um grande espetáculo, quanto o sonho
grandioso de um monstro esquizofrênico: a grande e a pequena morte, as sete
trombetas, os sete selos, as sete taças, a primeira ressureição, o juízo final!
Todos os detalhes dos flagelos e das infelicidades reservadas aos inimigos, ao
mesmo tempo da necessidade dos eleitos se medirem com o desespero dos
desgraçados numa cidade celestial, a “Nova Jerusalém”, que cairá dos céus,
substituindo a naufragada e destruída Babilônia.
“Ódio
flamejante e ignóbil desejo de fim do mundo”, proclama o Apocalipse. A nós, os
mortais resta apenas preencher um tempo monstruoso, que se estende entre A
Morte e o Fim, a Morte e a Eternidade.
Uma longa ironia, pois para Cristo a eternidade era experimentada
primeiramente em vida, “sentindo-se no céu”, por amor a si próprio, ao Pai e ao
próximo!
Um
teatro de fantasmas substitui o dos Profetas dos velhos testamentos. Fantasmas
e mais fantasmas, expressão do instinto de vingança, arma da vingança dos
fracos de espírito, dos fracassados na vida!
“João
conhecia muito mal e muito pouco Jesus e os Evangelhos, mas parece que sabia
muita coisa a respeito do valor pagão dos símbolos, em contraposição ao seu
valor judaico ou cristão.” (D.H. Lawrence).
Acontece
que esses homens do ressentimento e que esperam sua vingança, gozam de uma
dureza que lhes vem de sua incultura profunda, e a partir dela extraem tudo o
que sabem de um único livro, DO LIVRO, da BÍBLIA e, notadamente, do Apocalipse.
São manadas guiadas por homens sempre rudes, dotados de um “sentido especial do
Poder bruto e selvagem”.
O
inimigo de João de Patmos é Roma e sua civilização, com toda a influência da
cultura grega. Diz Lawrence que para “assegurar a queda e a destruição do
Império Romano, João decidiu ressuscitar o Cosmo inteiro, e para isto deseja a
destruição de tudo o que seja humano para assentar seu poder último, numa
cidade celestial, a Nova Jerusalém”.
Para
isso, denominam os frutos civilizatórios de Babilônia, por ser rebelde e
revoltada, como pecados mortais, não importa que aquela abrigue gente humilde
ou importante, pobres ou ricos. E o justo passa a ser sua destruição e a
vontade de destruir e aniquilar chama-se Justiça e Santidade.
E
considerar como INIMIGO a ser destruído todo aquele que não esteja em
conformidade com a ordem de seu Deus, um Ser superior vingativo, o mesmo que
Moisés descobrira no deserto! Com o retorno do Crucificado Apocalítico
salvar-se-ão apenas aqueles marcados com o símbolo divino, um total fixo de
144.000 eleitos. Para os outros milhões, para todos os demais o fogo, o
enxofre, a morte primeira, a segunda, a definitiva e com muita dor e sofrer!
São
enormes as semelhanças entre a “Nova Jerusalém” e o futuro que os ressentidos
da Terra nos propõem, na forma de uma planificação militar-industrial de um
Estado autocrático e absoluto. “O Apocalipse, salienta Deleuze, não se encontra
nas catástrofes anunciadas, mas na autoglorificação programada, e na
instituição da glória da “Nova Jerusalém”, e, com esta, a emergência de um
Poder demencial último, judicial e moral.”
O
terror arquitetônico desta Jerusalém impedirá que nela penetre qualquer
contágio sobrevivente da negação, da revolta, do livre pensar, mas tão somente
as almas abestadas e inscritas no livro do Cordeiro vingador! De tal maneira
que “O Apocalipse” revela, psicologicamente, o seu objetivo próprio:
desconectarmo-nos do mundo e de nós mesmos. Por isso, ele é primo-irmão do
Eterno Fascismo, descrito por Umberto Eco.
Paul
Virilio também destaca duas outras características deste Estado futuro: “a
destruição de um meio ambiente habitável em proveito de um ambiente estéril e
mortífero, em nele, uma permanente caça ao inimigo”.
Desta
forma, “O Apocalipse” transforma todas as potencias angelicais em terríveis
policiais. A mulher, então, sofre um destino ainda pior: é transformada ou em
mulher-polícia ou em prostituta a ser destruída.
Pobre
Cristo! Havia inventado genialmente uma religião do amor! Paulo de Tarso e “O
Apocalipse” inventaram uma religião do Poder. Embutiram em Cristo uma alma
coletiva e o degeneraram. E daí advém a transmutação do sentimento de amor para
o ódio, da vingança, e ao Crucificado não é permitido permanecer ao lado do Pai
como desejava, mas retorna vingador e sua língua, antes tão doce e pura,
transmuta-se em uma espada de gume duplo. Morte, morte, esta é a única sentença!
Eis
aí o conflito entre o “cristianismo militante”, hoje claramente expresso pelas
seitas ditas Neopentecostais, aquele da intolerância, da incultura, das mortes,
da vingança e dos preconceitos e, por um lado, o outro: o do Cristo pacifista,
tão bem encarnado na figura luminosa do Papa Francisco!
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