Euclides
da Cunha aos dezenove anos, em 1885, deixou os estudos na Escola Politécnica
por falta de dinheiro. Entrou para a Escola Militar da Praia Vermelha,
justamente nos momentos da efervescência da questão militar. Suboficial
republicano de alma foi expulso por rebeldia em 1888, pois atirara ao chão sua
baioneta, em sinal de protesto contra a repressão aos cadetes insubordinados.
Graças
à fama alcançada, recebeu um convite para escrever para o jornal “Província de
S. Paulo”, atual “Estado de S. Paulo”, o qual pugnava pelo republicanismo da
elite paulista, representada por Júlio de Mesquita, seu fundador. Com o pouco
que ganha, o jovem Euclides retoma os estudos e gradua-se em Engenharia Civil.
Com
a proclamação da República um ano após, ele é saudado como “o estudante da
baioneta” e reincorporado ao Exército. Em 1890, chega ao oficialato, no mesmo
ano em que desposará Ana Ribeiro. Desencantado com o governo Floriano Peixoto,
no qual depositara esperanças, pede sua reforma e deixa o Exército de Caxias no
posto de capitão.
Estamos
em 1896, e um líder místico de nome Antônio Conselheiro tornava-se uma lenda de
resistência dos miseráveis dos sertões baianos. Em 1897, “O Estado de S. Paulo”
contrata Euclides da Cunha como correspondente de uma “guerra do fim do mundo”,
na expressão de Vargas Llosa.
Euclides
chegará a Canudos às vésperas dos últimos dias de combate e de destruição do
Arraial. Produzirá uma série de reportagens. Deixará Canudos quatro dias antes
do fim da guerra, não chegando a presenciar o desenlace. Mas o pesquisado, o
presenciado, o vivido e o pressentido lhe permitiriam escrever e publicar, em
1902, uma das obras primas da literatura brasileira: “Os Sertões: campanha de
Canudos”.
O
livro subdivide-se em três partes: a terra, o homem e a luta. Nelas Euclides
analisa as características geológicas, botânicas, zoológicas e hidrográficas da
região, a vida, os costumes e a religiosidade sertaneja e, por fim, narra os
fatos ocorridos nas quatro expedições do Exército de Caxias e o massacre do
povo liderado por Antônio Conselheiro.
O
autor de “Os Sertões” interpretou as formas de consciência e de representação
em uma comunidade que lhe era estranha, entrevista em meio aos combates e
bombardeios, estando ele como correspondente de guerra do outro lado da
trincheira, do lado do agressor. Procurou esclarecer o mistério em torno de
Canudos, analisando a existência de crenças sebastianistas (referentes ao rei Sebastião de Portugal,
desaparecido num combate aos mouros), messianismo que tornava inteligíveis
alguns dos aspectos subterrâneos da guerra, como os apelos das mensagens de seu
líder e a resistência heroica dos combatentes.
Euclides
adotou também uma maneira historiográfica inovadora: um arranjo poético emprestado
ao conflito. O fruto obtido é uma obra híbrida, narrativa e ensaio, literatura
e história. Lançou também um olhar irônico sobre suas próprias crenças para
compreender o horror da guerra e inserir os fatos em um enredo capaz de
ultrapassar até mesmo sua significação particular.
Aquele
sentido epopeico do desenvolvimento de uma república no Brasil pela qual se
insurgira e combatera na juventude, adquiriu o caráter de uma tragédia no
massacre militar que testemunhou em Canudos. "Aquela campanha lembra um
refluxo para o passado. E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo".
O
sertão nordestino, terra de latifúndios improdutivos, de secas cíclicas e
desemprego crônico. Milhares de sertanejos famintos partiram para Canudos, um
arraial- cidadela liderada pelo peregrino e esfarrapado Antônio Conselheiro,
unidos na crença de uma salvação de corpos e de almas. Chegando ao arraial,
organizavam-se como podiam e conseguiam sobreviver na solidariedade e em suas
crenças de salvação espiritual. Com tudo isto, os milhares de revoltados
constituíam um péssimo exemplo para os coronéis latifundiários nordestinos e
para a Igreja Católica.
Os
donos das terras da região unindo-se à Igreja pressionaram a República,
exigindo o aniquilamento do movimento. Criaram factoides, que na época ainda
não possuíam o nome de “fake News”, que a imprensa reproduzia: Canudos se
armava para atacar cidades vizinhas e suas milícias fortemente armadas iriam
partir em direção à capital para depor o governo republicano e reinstalar a
Monarquia.
Antes
da denúncia de “Os Sertões”, Machado de Assis já havia escrito sobre Canudos na
Gazeta de Notícias. Em crônica de julho de 1894, comparava os seguidores do
Conselheiro aos piratas das canções românticas de Victor Hugo. Machado
deixava-se encantar pelo toque de poesia e mistério que envolvia o líder
religioso, além de criticar a imprecisão e as más intenções das notícias sobre
o movimento. Quando a guerra contra os famintos foi desencadeada, Machado
protestou. Comentava que pouco se sabia sobre a seita e doutrina de
Conselheiro, capazes de mobilizar milhares de seguidores: "De Antônio
Conselheiro ignoramos se teve alguma entrevista com o anjo Gabriel, se escreveu
algum livro, nem sequer se sabe escrever. Não se lhe conhecem discursos."
Como as mortes nos combates não afastaram os fiéis de seu líder, Machado
questionava: "Que vínculo é esse [...] que prende tão fortemente os
fanáticos ao Conselheiro?"
Euclides
da Cunha em Canudos
O
repórter observou que o combate apresentava uma "feição primitiva,
incompreensível, misteriosa." Surpreendia-se que os jagunços, já em número
reduzido, aguardassem que o Exército fechasse o cerco da cidade em vez de
fugirem, enquanto ainda lhes restava uma estrada aberta para a salvação.
Três
expedições militares contra Canudos haviam sido derrotadas; na quarta, em 1897,
os militares destruíram todo o arraial. Após receber promessas de que a
República lhes garantiria a vida, uma parte da população sobrevivente se rendeu
com bandeira branca, enquanto um último reduto resistia na praça central do
povoado. Apesar das promessas, todos os homens presos, assim como mulheres e
crianças foram degolados, numa execução sumária que se apelidou de
"gravata vermelha". Mas o último núcleo do arraial resistiu.
"Canudos
não se rendeu (...) resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a
palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando
caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um
velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam
raivosamente 5 mil soldados".
O
cadáver de Antônio Conselheiro foi exumado e sua cabeça decepada a faca. No dia
6 de outubro de 1897, quando o arraial foi arrasado e incendiado, o Exército
registrou ter contado 5.200 casebres.
O
conflito de Canudos mobilizou aproximadamente doze mil soldados, de dezessete
Estados brasileiros. Calcula-se em mais de vinte e cinco mil camponeses mortos.
A guerra de Canudos acabou se constituindo num dos maiores genocídios já praticados
no Brasil.
Os
guerreiros de Pajeú
A
guerra de Canudos produziu líderes e, desde as primeiras escaramuças, provocou
sérias baixas às tropas sanguinárias do Exército de Caxias.
Euclides
da Cunha nomeou alguns dos comandantes da resistência: João Abade, o
"comandante de rua", conhecedor de todos que entravam e saíam do
arraial, mantinha contato com mensageiros e sabia de tudo que se passava em
Canudos e seus arredores, era conhecido e respeitado por todos, o próprio
serviço de inteligência do arraial. Antônio Fogueteiro, recrutador de
combatentes entre os camponeses; Chico Ema, chefe da segurança interna do
povoado; Pedrão, Estêvão e Joaquim Tranca-Pés, líderes de grupos de
guerrilheiros responsáveis pela guarda de serras e estradas circundantes de
Canudos.
Mas
a chefia das operações militares estava a cargo de Pajeú.
"A
figura de Pajeú se destaca desde os primeiros choques armados. É ele o homem
que empreende a perseguição audaciosa à derrotada 2.a expedição do Major
Febrônio de Brito. (...) Investem contra ela não só com o objetivo de eliminar
soldados, mas também arrebatar-lhe armas e munições."
Num
depoimento ao jornal "O País", de janeiro de 1897, o derrotado Major
declarou: "Nunca vimos, eu e meus camaradas, tanta ferocidade! Vinham
morrer como panteras, dilacerando entranhas, agarrados às bocas das peças...
Todos eles traziam armas de fogo, bons e afiados facões, cacetes pendentes dos
pulsos". Quanta mentira contada pelo “herói” de algibeira, o Major
Febrônio. Os insurreto possuíam apenas poucas e antiquadas as armas de fogo
dos, embora tivessem, isto sim, pulsos fortes e vontade indomável.
No
combate travado na Serra do Cambaio que dava acesso a Canudos, Euclides nos
fala da figura heroica de João Grande, o organizador e líder dos clavinoteiros
( clavina era uma arma de fogo utilizada por cavaleiros) fantasmas, que
comandava os precariamente armados resistentes.
Enquanto
as tropas tentavam subir os contrafortes da serra, os sertanejos surgiam e
desapareciam, agitavam-se, pareciam ser em muito maior número do que realmente
eram. Além disso, eles iludiam de modo engenhoso a carência de espingardas e o
lento processo de carregamento das poucas que possuíam. Todos usavam máscaras e
se dispunham em grupos de três ou quatro rodeando um único atirador, passando
sucessivamente as armas carregadas pelos companheiros invisíveis ao fundo da
trincheira. De sorte que, se alguma bala fazia baquear o clavinoteiro,
substituíam-no imediatamente e em meio ao fumo, o mesmo busto mascarado seguia
apontando sua arma para os soldados e atirando.
Se
a movimentação permanente dos “jagunços” dificultava sobremaneira a pontaria
dos soldados, quando eles surgiam na própria retaguarda da tropa a subir a
encosta do Cambaio, deixava-os desnorteados. Os sertanejos evitavam, por
inferioridade, a peleja franca. E dentre eles, erguia-se a figura daquele negro
gigante, de enorme força e agilidade empunhando um clavinote curto, o líder
João Grande. Ele, o único que não se mascarava, desencadeava as manobras, as
figurações e as correrias de seus combatentes, subindo, descendo, atacando,
fugindo. Quando alguns deles caiam varados pelas balas, os soldados os
exterminavam a coice de armas e comemoravam.
Mas
a desigualdade de forças era enorme e as tropas foram gradualmente subindo o
morro. Quando já perdera quase toda sua gente, João Grande avançou diretamente
contra a artilharia. Nesse avanço uma bala sua matou o oficial comandante
federal, general Wenceslau Leal. Foi quando um rojão o destroçou e aos
companheiros mais próximos. Estava conquistada, após mais de três horas de
combate a Serra do Cambaio, que abria o acesso a Canudos. Quando a tropa fez a
contagem dos sertanejos mortos não encontrou mais de vinte e dois, vinte e dois
homens que resistiram a uma tropa de cento e oitenta, entre oficiais e praças.
A
cabeça de João Grande foi decepada e erguida como um troféu na caminhada.
Euclides
da Cunha ao romper por completo com as versões do Exército de Caxias e dos
coronéis do sertão, segundo as quais o movimento de Canudos seria uma tentativa
de restauração da Monarquia, comandada à distância pelos monarquistas, em
primeiro lugar, perdeu o emprego. Mas, logo a seguir, tornou-se
internacionalmente famoso com a publicação da obra-prima que lhe valeu vaga
para a Academia Brasileira de Letras e para o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro.
Os
escritos “da experiência” de Euclides da Cunha constituem uma obra notável do
movimento pré-modernista que, além de narrar a guerra, relata a vida e
sociedade de um povo explorado e mantido na miséria pelo latifúndio. De certa
forma, Euclides descobriu o verdadeiro interior do Brasil, muito diferente da
representação usual que dele se tinha.
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