Por
Leneide Duarte-Plon, na Carta Maior - «Como se imbecilizou o povo a esse ponto
para levá-lo a pensar que o problema do país é a corrupção política? Como se
retira o poder de reflexão do povo inteiro a esse ponto? O alfa e o ômega da
história brasileira é criminalizar a soberania popular e os pobres e ter o
Estado para os ricos, roubar com isenções fiscais, não pagar imposto».
Um
dos intelectuais brasileiros mais conhecidos e lidos, o sociólogo Jessé Souza
vai, a partir de setembro dar aulas na Universidade Sorbonne Nouvelle-Paris1. O
anúncio foi feito no final de sua concorridíssima conferência no Institut des
Hautes Études de l’Amérique Latine (Université Sorbonne Nouvelle-Paris 3), dia
2 de julho. A conferência tinha por título «Le Brésil de Bolsonaro-Diviser pour
régner» e o brasileiro foi apresentado pelo professor Gérard Wormser, diretor
da revista Sens Public, que publicou recentemente o artigo de Jessé Souza
«Bolsonaro, raciste en chef du Ku Klux Klan et des petits blancs du Brésil».
Souza
apresentou uma conjuntura bastante difícil para o Brasil, que vê dominado por
um sistema racista de uma elite cínica, que manipula a classe média com uma
falsa narrativa anticorrupção e, na verdade, usa o Estado para enriquecer.
Diante desse governo, se debate uma esquerda sem bússola.
«A
esquerda não tem nenhuma narrativa política para o Brasil, jamais teve mas é
arrogante pois pensa que tem. O Brasil tem uma esquerda sem as armas simbólicas
para efetivamente criar uma narrativa que tenha uma direção para o futuro».
Em
sua verdadeira aula de história do Brasil para um público formado de franceses
e de brasileiros, o sociólogo não poupou as elites econômicas e sociais
brasileiras que «sempre utilizaram o Estado como seu cofrinho». Ele citou o
sociólogo francês Pierre Bourdieu para explicar a violência simbólica da elite
brasileira com o objetivo de dominar o imaginário da classe média.
Depois
de resumir a história do Brasil, sua origem escravagista que marca até hoje as relações
sociais, a Justiça e o Estado, Jessé desconstruiu o que ele chama de «mitos»
caros a intelectuais que formaram várias gerações de brasileiros, como Sérgio
Buarque de Hollanda.
«A
transmissão cultural não se dá pelo sangue. A fraude de dizer que o Brasil vem
de Portugal foi inculcada desde sempre, o Brasil vem da escravidão, que não
existia em Portugal. É a escravidão que estrutura a sociedade brasileira. A
cultura passa pelas instituições, família, escola, justiça, trabalho. E a
escravidão é a mãe do Brasil. O resto é fraude, mentira, bobagem. Todos os
grandes pensadores repetiram e naturalizaram a mentira».
Para
ele, o Brasil é até hoje marcado pela escravidão e suas consequências.
Bolsonaro, o mais corrupto
entre os corruptos
«Jair
Bolsonaro é fruto da Lava-Jato, cujo projeto era ganhar do PT por meios
não-eleitorais. Antes era o projeto da UDN, do atalho que não passava pelo
voto. Bolsonaro é o pior político que o Brasil já fabricou em 500 anos. E olhem
que o Brasil já produziu gente muito ruim mas nenhum canalha maior que
Bolsonaro», diz Souza, ovacionado pelo público.
Ele
continua :«Bolsonaro é o representante do que podemos chamar de lixo branco. É
uma expressão dos Estados Unidos para designar o branco que tinha menos
dinheiro, menos educação, socialmente é inferior ao branco americano do Norte e
que só tem a cor da pele como vantagem. Por conta disso, ele é o maior racista
dos EUA. Ele odeia o negro. Nas famílias brancas do interior de São Paulo, o
maior crime que você pode cometer aos olhos da família é casar com um negro.
Bolsonaro vem desse meio. A política de Bolsonaro é dar arma para a milícia
matar pobre e negro. Ele não tem política pública a não ser o holocausto de
pobres e negros. Ele fala ao pequeno branco que ganha entre dois e seis
salários mínimos. É o remediado pobre. Bolsonaro é a vingança deste lixo pobre
branco sobre o negro e o pobre que melhorou de vida. Essa baixa classe média
fascista existe no Brasil há cem anos. O movimento fascista brasileiro, o
integralismo, tinha 500 mil inscritos, é a mesma canalha que apoia o
Bolsonaro.»
Segundo
Jessé Souza, a imprensa é a aliada de sempre dos que querem manter os
privilégios dos cem mil brasileiros que mandam no Brasil. Ela bombardeia a
todos com a suas mentiras.
«A
escravidão não é somente um processo de exploração econômica do escravo mas a
humilhação cotidiana e desumanização do escravo. Numa sociedade escravocrata
que precisa humilhar o outro para mantê-lo na servidão, é preciso desenvolver
sentimentos sádicos, dando origem ao gozo na humilhação. Nada define mais o
Brasil e o brasileiro de classes dominantes do que o prazer em humilhar. O
brasileiro tem o gozo da humilhação do inferior socialmente.»
Para
o sociólogo, o brasileiro interiorizou a idéia de que somos emocionais, logo,
irracionais, animalizados, incapacitados à reflexão, à abstração, a pensar. O
espírito é a inteligência, honestidade, a racionalidade. Tentar destruir a
auto-estima de um povo é a melhor maneira de mantê-lo subalterno.
«Como
eu posso fazer com que a classe média jamais entre na arena para decidir com
sua própria cabeça mas para servir aos meus interesses? É preciso imbecilizá-la
e fazê-la agir contra seus próprios interesses de classe. Como tornar a classe
média letrada imbecil? É preciso conquistá-la pelas idéias e então cria a
Universidade de São Paulo pois a classe média controla a sociedade,
supervisiona em nome de uma pequena elite. Pela violência simbólica e por
idéias que são fraudes científicas».
O
que Souza mais enfatizou foi a marca da escravidão que deixou raízes profundas
na sociedade brasileira e até hoje está presente nas relações sociais e no
racismo que impediu os negros de terem acesso à educação e a uma vida digna
depois da Lei Áurea.
Difícil
ser mais explícito sobre o jogo de interesses que se escontem por trás da
Operação Lava Jato e que pode ser explicado pela tensão permanente entre os
donos do poder e os interesses do povo.
Criminalização
do PT, Lacerda foi o Moro de Getúlio
Segundo
Jessé Souza, a ditadura maculou as Forças Armadas e a Lava Jato jogou
descrédito sobre a Justiça brasileira.
«Qual
o grande crime de Lula? Por que o canalha do Moro teve que construir crimes
fictícios de Lula e esconder os crimes reais do sociólogo quase francês
Fernando Henrique Cardoso? Esconde os crimes do sociólogo quase francês e
inventa crimes do metalúrgico», lançou, veemente, Jessé Souza.
Segundo
ele, a criminalização do PT vem do fato de Lula ter posto pobres e negros nas
universidades.
«Passei
20 anos na minha vida sem ter um só estudante negro na minha sala. Hoje, o
número de estudantes negros e pobres nas universidades é imenso. A universidade
é o centro do conhecimento que querem manter como monopólio da classe média e
dos ricos».
Mudam
os tempos, mudam os personagens mas os métodos e os fins são os mesmos,
explica.
«A
criminalização do povo e de seu representante começou em 1954, quando Getúlio
foi vítima de uma trama das elites. Lacerda foi o Moro da época».
O
crime de Getúlio, explica, foi incorporar o trabalhador nas benesses do mundo
moderno. Ninguém provou que ele tinha roubado. Mas foi acuado e se matou.
Depois fizeram a mesma campanha contra Jango, Lula e Dilma. O eterno pretexto
da corrupção é um tema recorrente cada vez que a direita quer cooptar a classe
média para defender os interesses das elites econômicas.
Quem
fez dinheiro no Brasil fez à custa do Estado.
A
República Velha não mudou
A seguir, outros trechos
da conferência :
«Quais
os dois princípios da República Velha que continuam até hoje? A elite
econômica, cem mil pessoas quer o Estado para roubar, se apropriar dele. O
povo, feito de imbecil, joga a culpa na política».
«Examinando
os resultados, constata-se que depois de 5 anos, a Lava Jato recuperou 1 bilhão
de dólares para os cofrer públicos. Ora, somente uma corrupção, a sonegação de
impostos, representa 520 bilhões de dólares, segundo um organismo inglês de
universidades inglesas. Não há sequer comparação possível».
«Os
juros brasileiros são onze vezes maiores que na França. É a transferência dos
mais pobres para quem tem os títulos da dívida pública. Esse é o roubo do
Brasil. Quem rouba no Brasil é a elite do dinheiro».
«O
que é o Brasil de verdade? É o que abandonou os escravos nas cidades, sem
acesso à terra, à educação. O ódio do Brasil ao negro levou a essa política
atual feita para matar negros e pobres. Foi montado um bastião racista branco
para manipular a classe média. Eles dizem, não vamos eleger um ladrão do PT.
Então elegem um homem que apoia torturador, assassinato, miliciano. E que é
ladrão. Que moralismo da classe média é esse? O pecado do Brasil é que pobre e
negro não podem ter nenhum avanço. Como isso é canalhice e num país
superficialmente cristão isso não pode ser admitido, é preciso negar o racismo.
Então se inventa o combate à corrupção na política pois é ele que pode retirar
o pobre e o negro de seu lugar subalterno. Essa é a canalhice brasileira. O
branco brasileiro é um canalha que se acha um ser moral».
«Para
a elite, um povo humilhado, sem auto-estima, é fácil de ser manipulado. É bom
para a elite brasileira e bom para a elite internacional, especialmente para os
Estados Unidos que usam a ideologia da superioridade para legitimar o saque das
riquezas do Sul global.»
«Por
que o Brasil nunca pode se industrializar pois os Estados Unidos vêm e montam
um golpe de Estado? E isso é visto como normal, a maioria é indiferente ou
apoia.»
«O
Estado tem que ser criminalizado porque é a unica entidade forte o bastante
para se contrapor ao mercado, controlar o mercado. Então é preciso criminalizar
o Estado, criminalizar a política que é no fundo criminalizar o povo, a
soberania popular. O pensamento brasileiro vive da criminalização do povo e de
todo representante popular, imediatamente acusado de populismo. O que vem do
povo é ruim, quem representa o povo é ladrão e demagogo.»
«Esse
pessoal branco que odeia negro e pobre é quem apoia esse regime do ódio. É
preciso criar uma superfície de moralidade porque o canalha não pode ser visto
como canalha. E então as pessoas que o apoiam se escandalizam com a corrupção
política seletiva só de representantes do povo».
O
encontro com Jessé Souza foi promovido pelo IHEAL, pela RED-Br (Réseau Européen
pour la Démocratie au Brésil) e pela revista Sens Public, entre outros.
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