Voz dissonante na narrativa dominante da necessidade
inapelável da reforma da Previdência, Maria Lucia Fattorelli, coordenadora da
Auditoria Cidadã da Dívida, afirma que a reforma não apenas não é a salvação da
economia como, na verdade, se implantada ela quebrará o país.
Fundamentada em dados estatísticos e cálculos objetivos, a
auditora fiscal tem argumentos suficientemente sólidos para desmentir a
campanha publicitária tão maciça quanto ludibriadora de que os mais pobres
pagarão menos ou que militares ficarão de fora (no trajeto feito para o
encontro com a entrevistada, num intervalo de 9 estações de metrô, a propaganda
– paga com recursos públicos – foi veiculada três vezes nos monitores do
vagão).
O DCM conversou com Maria Lucia Fattorelli numa entrevista
em que ela rebate e expõe a real intenção do plano de Paulo Guedes.
Qual é o objetivo da
reforma?
“O principal objetivo dessa reforma é introduzir um
sistema de capitalização numa modalidade muito específica em que só o
trabalhador contribui para uma conta individual e que não exige que as empresas
participem. A participação patronal é colocada na PEC como uma ‘possibilidade’.
É claro que essa possibilidade não vai acontecer porque se uma empresa contratar
só pela capitalização o custo dela vai ser mais baixo. Até por uma questão
concorrencial nenhuma empresa vai ser boazinha, pois o produto fica mais caro.
O projeto ainda proíbe a participação governamental. Ou seja, é uma conta
individual. Considerando a vantagem que trará para as empresas, todas as vagas
que forem abertas colocarão essa condição de contratação. Diante dessa crise
fabricada pelo Banco Central, o trabalhador vai aceitar a proposta da vaga com
opção pela capitalização. A partir daí não tem volta, terá que se aposentar na
modalidade capitalização.
A senhora tem dito
que a reforma poderá quebrar o país caso seja aprovada. Por quê?
“Vamos pegar um exemplo de um trabalhador desempregado que
já teve carteira assinada e tenha contribuído durante 15 anos para o INSS. Ela
não pode entrar zerada numa continha, pois ela já pagou, o INSS recebeu 15 anos
de contribuição. É evidente que o Estado terá que fazer um aporte a essa conta
individual.
E é um universo
grande…
Enorme, estamos falando de cerca de 60 milhões de
brasileiros que estão na informalidade ou desemprego. No Chile, que implantou
esse modelo e que tem um contingente de trabalhadores muito menor que o Brasil,
o custo dessa transição foi de 136% do PIB. Esse parâmetro aqui – e arrisco que
será mais – estamos falando de mais de R$ 9 trilhões. Quem vai pagar isso? É
impagável. Por isso falo que ao contrário do que o governo diz, se aprovar a
PEC 6/2019 o Brasil quebra.”
Além do Chile,
outros 29 países já testaram a capitalização e quase todos se arrependeram.
Quanto tempo demora para sentir o impacto da mudança?
“Há um estudo da Organização Internacional do Trabalho que
analisou os 30 países que enveredaram por essa modalidade de capitalização e
ali compreende-se que 18 já voltaram atrás e os 12 restantes estão entrando em
colapso, estudando formas de sair. O Chile, que na época recebeu muitos elogios
do FMI e do Banco Mundial por ter adotado o sistema, reimplantou a previdência
única para dar algum amparo a seu povo já que 80% dos idosos recebem menos de
meio salário mínimo. Ouvimos um representante chileno aqui na Frente
Parlamentar da Previdência no Congresso Nacional e seu depoimento foi
dramático. Aposentados chilenos estão precisando optar entre morar, ou comer,
ou comprar remédios. O Chile tornou-se campeão de idosos indigentes pelas ruas,
gente que era de classe média e que contribuiu a vida inteira. O número de
suicídios entre eles é alto.”
Ela
O economista Eduardo
Moreira fez uma conta e, segundo ele, nos próximos 20 anos a carga ficará
somente para os mais pobres, aprofundando ainda mais a desigualdade.
“Isso. Na própria PEC há um documento chamado ‘Exposição
de Motivos’. Isso é obrigatório, está lá, assinado pelo Paulo Guedes. Nesse
anexo tem uma tabela que mostra de onde vai sair o R$ 1,2 trilhão que ele quer
economizar. R$ 715 bi sairão do Regime Geral de Previdência que é onde estão as
pessoas que recebem até 2 salários mínimos. Imensa maioria. Outros R$ 182,2 bi
sairão do BPC que é pago a idosos miseráveis e deficientes físicos. Mesmo
abatendo a redução da alíquota, isso representa mais de R$ 800 bi dos mais
pobres. Mais de 70%. Então é mentira de que essa PEC será para combater
privilégios.”
Por que é preciso
essa economia?
“Esse pessoal que mente muito tem hora que deixa escapar
uma verdade. Na posse do presidente do Banco Central ele disse com todas as
letras que esse trilhão é para impulsionar a transição para o esquema de
capitalização. Afirmou: ‘É pra isso que a gente precisa de um trilhão’. Então
não vamos nos iludir, a proposta dessa PEC é implantar o sistema de
capitalização. Mas é uma transição cara e, portanto, eles precisam de um
trilhão logo de saída.”
Mas existe um
déficit ou não?
“Quem fala em déficit nunca leu o artigo 195 da
Constituição Federal. O modelo que temos não é de uma previdência isolada. É um
sistema integrado que junta previdência, assistência e saúde. É uma seguridade
social. Para se trabalhar é preciso ter acesso à saúde. Nossa previdência é
para garantir uma assistência àqueles que estão à margem e para garantir uma
aposentaria digna para aqueles que já cumpriram sua idade laboral. Além dos
benefícios para todas as situações de vulnerabilidade: doença, invalidez,
maternidade, desemprego, na orfandade. Nosso modelo é maravilhoso. A reforma
que precisamos seria para melhorar isso.”
Não tem déficit?
“Desde 1988, promulgação da Constituição, até 2015 o
conjunto de contribuições sociais que está previsto no artigo 195 foi mais do que
suficiente para pagar as despesas com previdência. E o governo nem precisou
participar com orçamento fiscal. A partir de 2016 o governo precisou pagar, mas
isso está previsto na Constituição Federal! Então a história do déficit tem
vários erros. O primeiro, abusivo, é quando se pega somente a contribuição da
classe trabalhadora e da folha paga pelo empregador e esse total contribui com
toda a despesa da previdência. Que conta é essa? Essa conta não tem amparo na
CF. O segundo erro é afirmar que existe déficit na seguridade, ignorando que a
CF prevê a participação do orçamento público.”
Se está previsto que deve completar, não pode ser
considerado déficit. Entendi. E sempre teve sobras?
“Até 2015, sim. Durante vários anos sobraram mais de R$ 80
bi.”
E onde foi parar
isso?
“É desviado por meio da DRU (Desvinculação da Receitas da
União) e vários outros mecanismos para cumprir a meta de superávit primário e
pagar juros da dívida pública que nunca passou por uma auditoria integral. Esse
é o rombo que amarra o Brasil. Durante 20 anos, de 1995 a 2015, produzimos mais
de R$ 1 trilhão de superávit primário. E nesse mesmo período a dívida interna
saltou de R$ 86 bi para R$ 4 tri.”
O que fez a dívida
explodir?
“Não foi gastança com servidor público, nem com a
previdência, como diz o governo apoiado pela grande mídia que se locupleta
desse sistema da dívida. O que faz explodir são os mecanismos que geram dívida
e crise, assim o estoque da dívida aumenta, mas o dinheiro não chega no
orçamento para que sejam feitos os investimentos necessários ao desenvolvimento
socioeconômico. É um esquema que paga os maiores juros do planeta e evita que o
dinheiro chegue ao crédito.”
Como se muda isso?
“Precisamos ter em mente que todo ano que alcançávamos
superávit primário produzíamos um déficit nominal graças aos juros da dívida,
ao custo financeiro, como a remuneração da sobra de caixas dos bancos, o que é
um absurdo. A principal causa da quebra de empresas dos últimos anos foi a
falta de acesso a crédito e isso levou milhões de brasileiros ao desemprego.
Daí, empresa quebrada e trabalhador desempregado não pagam impostos. Quem ganha
com isso? Só a cúpula dos mercados financeiros. Precisamos sair da caverna de
Platão.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário