Há
décadas, Dworkin disse, em Uma Questão de Princípio: Nenhum algoritmo pode
decidir se determinada interpretação ajusta-se satisfatoriamente a uma
situação.
Retorno
ao tema das startups jurídicas, algoritmos, inteligência artificial, medições
jurídicas, etc. Não sou jurássico e não quero voltar à máquina de escrever. Uso
a melhor tecnologia. Adoro tecnologia no carro. No Iphone. Porém, o fato de me
colocar contra a bomba atômica não quer dizer que defendo uma guerra de espadas
e de botoques...! Não quero voltar ao telefone de discagem, mas também não
aceito minha vida devassada por robôs e e-commerce. Não sou contra o processo
eletrônico, mas não acho que um robô possa examinar meu recurso (dizem que
agora os alunos já nem leem resumos e resuminhos; preferem vídeo aulas; e, como
não querem perder tempo, aceleram a rotação do vídeo e pulam a introdução! — é
a pós-modernidade tecnológica também substituindo o saber). Devo ser um
retrógrado por preferir essa velha coisa chamada “livro”.
Por
tudo isso, atento, venho denunciando o perigo da substituição do Direito pelos
algoritmos. Venho apontando dois níveis de problemas: primeiro, o nível da mera
substituição do exame de recursos e petições por robôs, o que significa, nos
tribunais, a perda de efetividades qualitativas, trocadas por efetividades
quantitativas, prejudicando milhões de pessoas em seus direitos fundamentais.
Robô não fundamenta. Logo, ocorre a violação do artigo 93, IX, da Constituição.
Ainda
nesse primeiro nível, há o desemprego. A precarização. Não basta que
escritórios promovam demissões de 50% de advogados, trocados por produção
forditistico-algoritmica? Isso é bom para quem? Claro que é bom para quem vende
a tecnologia. É como comprar pela internet. Bom para quem? Ruim para os
lojistas, que fecham e despedem pessoas. Ah, pessoas... Isso existe?
O
segundo nível é o da teoria do Direito, do Direito visto como fenômeno complexo
e não como mero instrumento feito machado ou picareta a disposição de quem o
usa. Denunciei aqui que a IA, no modo como está sendo aplicada, não passa de um
realismo retrô. Explico, de novo:
Com
ares tecnológicos, os adeptos da startupização (e o que está ao redor) repetem
nada mais que o velho realismo jurídico norte-americano, que dizia que Direito
era tão somente uma questão de previsão das decisões judiciais. Lá já se dizia
que o Direito é aquilo que o tribunal disser que é. Bem, na medida em que é o
tribunal que diz o que é o Direito (e não o Direito que diz o que o tribunal
deve dizer), o tribunal pode dizer qualquer coisa, sob a influência de qualquer
fator, jurídico ou extrajurídico. Saibamos, então, prever as sentenças e
acórdãos, a partir de análises empíricas, e eis tudo. Lembrando que o realismo
jurídico é a justificação moral do deciosionismo!
O
problema é o óbvio paradoxo: se a decisão é algo que se dá sem qualquer
constrangimento, sem qualquer critério estabelecido com segurança a priori,
como prever qualquer coisa?
Minha
crítica causou irritação em determinados setores jurimétricos (não havia nem me
referido a eles — aliás, jamais usei a palavra “jurimetria” até hoje), chegando
às raias da ofensa pessoal. Grosseiras ofensas pequeno gnosiológicas. Raivosas.
Gratuitas. Caeli fortis indicia cubito dolor. Ocorre que não adianta me ofender,
atacar-me pessoalmente (prática barata, feia e serôdia) e brigar com os fatos.
Não briguem com o mensageiro. Graças à IA e à startupização é que surgiram os
grupos de extermínio de processos, que crescem dia a dia. O que é isto – a
jurisprudência defensiva robotizada? Também os robôs substituem causídicos, que
cada dia ganham próximo a um salário mínimo e trabalham dez horas por dia. E
trabalham no Uber Jurídico. Ganham mixórdia por tarefa. Aviltamento da
profissão. Isso se espalha feito epidemia. Consequência: desaparecimento da
teoria do Direito. Não adianta me xingarem e dizerem que escrevo de forma
complexa e que sou difícil de entender. A solução é: Há que estudar mais.
Quanto mais se estuda, mais se aprende. Textos difíceis só o são difíceis no
inicinho. Depois passa...!
O
juiz Flávio Antonio da Cruz veio em meu socorro e postou no Facebook um texto
curto e grosso, na veia. Vejam o que disse o magistrado paulista sobre
jurimetria (que, insisto, não estava no horizonte dos meus metafóricos dois
textos):
Você
pode tentar descrever como os juízes decidem.
Você
pode criar um algoritmo para prever o percentual de cláusulas contratuais que
serão descumpridas.
Você
pode calcular, aplicando métodos estocásticos, quanto tempo as pessoas
permanecerão casadas.
Enfim...
você pode criar modelos para descrever o real e tentar prever como as pessoas
atuarão. Perfeito! Mas Direito não cuida
da forma com as pessoas se comportam. Cuida da forma como as pessoas devem se
comportar. É um discurso contra fático.
Nada
mais equivocado do que tentar resumir o fenômeno jurídico aos fatos ou do que
tentar criar teorias para justificar o que ocorre.
Até
porque, a vingar isso, o Direito restaria engolfado pela sociologia e pela
economia. E seria melhor então não perder muito tempo com debates sobre
legalidade, validade, legitimidade e tantas outras questões etéreas e
metafísicas.
Obrigado,
Flávio. Disse tudo.
Que
venham, logo, então, os intelectuais e recuperem essa bagunça que sedizentes
práticos e proto-pragmatistas estão fazendo no direito brasileiro, em que se
vibra com um robô que decide, em um click, 700 apelações em Minas Gerais.
Se
isso — ou esse tipo de coisa — é para vibrar, então por que não fechamos, de
vez, os cursos de Direito que buscam, de forma aprofundada, estudar essa coisa
velha chamada “Direito”? Para que existem mestrados e doutorados em Direito, se
o Direito é produto de meras previsões e cálculos de probabilidades? E de
previsões sobre o número de sanduíches devorados? (Afinal, se o café da manhã é
fator a influenciar decisões dos magistrados, talvez devamos substituir os
professores por coachings — o que já está acontecendo, lamentavelmente).
Não
dá para tratar o Direito como se fosse um filme de faroeste, do tipo “o mais
esperto e o que atira primeiro, leva”. Direito é reflexão e não mera estratégia
e cálculo estatístico. Nesse sentido, em vez de Tarantino, há que se cuidar
para não virar Mazzaropi, com sua paródia “Uma pistola para Djeca”. Ou “Django
(ou Janjão) não dispara, foge”.
Junto
com a ofensa barata, veio o grito: Que venham os especialistas, para terminar
com a bagunça (faltou a palavra “balbúrdia”) no Direito. Acusou-se também, aos
intelectuais de serem responsáveis por essa bagunça, igualzinho à distopia
denunciada por A. MacIntyre, prelúdio do Know Nothing (Oakes explica isso aqui,
e eu falei aqui e aqui — aviso que é um pouco complexo, mas lendo várias vezes,
dá para entender), o Saber Nenhum que triunfa. O Know Nothing é o triunfo do
anti intelectualismo.
Ora,
será que a “bagunça” [sic] não foi causada exatamente pela especialização?
Especialistas... temos aos montes. Sempre tivemos. No Direito existe até
especialista em delação premiada. E especialistas em ética jurídica. E
especialistas em...bom, deixa prá lá.
Todavia,
exatamente o que não temos é um histórico doutrinário que se preocupe com a
decisão judicial. Vejam o paradoxo: estamos em uma bagunça, diz-se; sempre tivemos
especialistas, nunca tivemos uma tradição filosófica autêntica no Direito. E
berra-se por mais especialistas e menos filosofia. Para corrigir a bagunça.
Construída sob a égide do império dos especialistas. Pois é.
Que
venham os especialistas? Que venham os algoritmos? Assim como os alquimistas,
estariam chegando os algoritmos? Pois bem. Em 1930, Ortega y Gasset já alertava
para os riscos da sociedade dos especialistas: aqueles que sabem tudo sobre seu
canto de universo, mas ignoram a raiz de todo o resto. A civilização
especializou o homem, dizia Ortega, tornando-o hermético e satisfeito dentro da
própria limitação.
Mas
vamos lá, melhor eu não citar filosofia. Não é prático. E o que “se quer”
(diz-se) são soluções efetivas (para quê? Para quem?). Mas retorno ao meu
ponto: e quando a solução efetiva é exatamente o problema?
Há
que se cuidar para, desprezando a teoria do Direito, não se cair exatamente em
uma anti-teoria e em um anti-intelectualismo, um ódio aos intelectuais, como na
distopia de MacIntyre. Senti, na acusação de bagunça (sic), um certo ódio aos
intelectuais jurídicos.
Por
isso mesmo não se escapa do paradoxo fundamental de que falei antes: como o
algoritmo vai ser capaz de prever qualquer coisa sem que haja antes uma teoria
da decisão? Num vácuo teórico, as decisões judiciais não têm qualquer critério
ou limite; como se pode prever aquilo que não tem critério nem limite? O
magistrado Flávio Antonio da Cruz tem razão.
Sem
teoria, os algoritmos serão números sobre o nada. Farão muitas e muitas
vítimas. Todos os dias. Charlatanismo pode ser escondido sob o peso de
equações, já disse um certo autor.
Mas
enfim, fico por aqui. A tecnologia tem de estar a serviço do jurista. E não o
substituir. E nem tirar seu emprego. E não dar folga para quem deveria examinar
distinguishings e overrulings que os pobres causídicos alegam em seus recursos.
Repito: Juízes e tribunais são pagos para examinar recursos e julgar, e não
para delegar esse trabalho para algoritmos e robôs. Bom, se a petição inicial
já é feita por robô...
Como
diria o Dr. Schultz, o do filme Django (não do Mazzaropi, ou de Derly Martines
ou Leopoldis Filmes), auf Wiedersehen.
Post
scriptum: E Warat se negava a jogar xadrez... com pombos!
Fui
aluno de Warat. Um homem da teoria. Um intelectual. Certa vez ele foi criticado
e ofendido, porque o confundiram com um adepto do direito alternativo.
Perguntamos a ele se não responderia. Ele disse: Mira, pibe, no se juega
ajedrez con palomas. Ellos estropean el tablero... y luego salen con el pecho
inflado.
Katchanga
real, gringo!
Lenio Luiz
Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.
Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados
Revista
Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário