Quando estávamos no auge do ataque ao governo, por conta
da lenda mal contada do desarvorado Roberto Jefferson, por volta de 2011, já
vinha, este que vos escreve, denunciando o chamado “método mensalão” de se
construir um caso penal sem qualquer apego à realidade. No MPF – eu era
corregedor-geral – minhas críticas à corporação eram vistas com um misto de
bronca e desprezo.
Tinha perdido as eleições para a recondução ao Conselho
Superior e havia quem vislumbrasse na minha acidez meramente ressentimento pela
derrota. Só que esses críticos não se davam ao trabalho de questionar porque
eu, que tinha sempre vencido por larga margem de votos, agora não alcançara
sucesso.
Se pensassem além das limitações concurseiras de respostas
prontas, poderiam recordar que, no exercício de meu mandato de conselheiro,
adotara recorrentemente postura contramajoritária, apontando para as sinecuras
funcionais e os desvios corporativos. Perder eleição era, pois, uma
consequência natural para quem se recusava adotar discurso eleitoreiro de
agrado de uma plateia crescentemente fascista.
Faço esta digressão
pelo regozijo de ver, com as revelações de hoje, das mensagens lavajateiras no
Intercept, que agora se confirmam, em todas as cores e em três dimensões, as
denúncias que fiz.
Disse que as teses acusatórias em casos complexos, que
envolvem grande número de ato e enorme variedade de ações, o MP lança mão de
hipóteses construídas de “concerto de desígnios” e dinâmica de práticas que,
depois, deveriam ser submetidas ao teste probatório.
Só que, ao invés de proceder a esse teste de forma neutra,
desinteressada, como se espera de um sisudo fiscal da lei, a vaidade e a
indolência fazem com que a hipótese se torna estática e inflexível, passando o
MP tão e só a procurar elementos que a posteriori a confirmem, despejando ao
lixo todos os elementos de prova que a negam. A hipótese construída passa assim
a verdade definitiva, não falseável no curso acusatório.
A investigação e a
instrução processual passam a se assemelhar a um jogo de quebra-cabeça, com a
imagem por montar já previamente estabelecida. O esforço probatório, se é que
existe, se resume a achar as peças que se encaixam no desenho. Às que não se
encaixam, não se dá qualquer atenção.
Um exemplo típico
disso foi a tese do desvio de recursos da Visanet supostamente orquestrada pelo
PT, para irrigar pagamento de parlamentares da base do governo com vistas à
aprovacão de matérias prioritárias.
Afinal, Marcos Valério era pago com esses recursos e,
também, acusado de ser o operador de sua distribuição a políticos. Tinha-se aí
a pecinha fundamental desse “puzzle”, que fechava o quadro imaginário com
perfeição. Ocorre, porém, que as inadequações dessa tese foram empurradas para
debaixo do tapete.
Marcos Valério e
sua empresa de publicidade tinham sido contratados muito antes de o PT ser
governo, para fazer serviço de propaganda e marketing da Visanet. Auditorias
confirmaram que os recursos dessa área comunicativa tinham sido todos
corretamente e integralmente aplicados nela, sem qualquer indício de desvio. Os
serviços contratados foram todos prestados, sem espaço para desvios.
O relatório da
auditoria, de conhecimento de todos os atores processuais, foi solenemente
ignorado e sequer encartado na denúncia. Ao invés disso, houve ingente denodo
de demonstrar que os recursos da Visanet eram públicos e, por conseguinte, seu
desvio – um fait accompli mesmo contrariando a auditoria – configurava
peculato.
O fato de a Visanet não ter qualquer relação patrimonial
com o Banco do Brasil – era constituída pelo Bradesco, pelo Itaú e pelo BBI, um
fundo privado de investimento – foi tido como inexistente.
Em verdade, o PT,
para pagar dívidas de campanha de seus candidatos e, eventualmente, de
candidatos de outros partidos da base de apoio de seu governo, contraiu
empréstimos pelo Banco Rural. Os recursos dessas operações é que foram distribuídos
por Marcos Valério. Mas, como essa circunstância contrariava a tese de acusação
centrada na Visanet, foi qualificada como ardil, como simulacro para distorcer
a “realidade” inventada pelos jovens promotores que desenharam a hipótese da
denúncia.
A realidade passou a disputar com a fantasia e prevaleceu
a última. Fato incontestável é que o Banco Rural executou as dívidas do PT e
foi ressarcido. Os empréstimos, longe de serem mera simulação, tiveram dolorosa
repercussão patrimonial. A sentença da ação de execução transitou em julgado e
disputa a verdade com o julgamento do mensalão.
Mas não foi só
isso. Nos idos de 2015, quando era, eu, Vice-Procurador-Geral Eleitoral, o TSE
julgou as contas do PT de 2010, onde se fizera constar o pagamento ao Banco Rural.
Como o STF, em 2013, condenara líderes do partido pela suposta simulação dos
empréstimos, o TSE, valendo-se da coisa julgada do mensalão, enxergou fraude na
prestação de contas e multou o partido numa quantia milionária.
Confrontado com a prova da execução do título, que
mostrava que o contrato de crédito existira e fora honrado, um dos ministros se
saiu com essa: “entre a coisa julgada do STF e a do juiz de piso, fico com a do
STF”. De ver é, contudo, que a coisa julgada do STF não está acima coisa julgada
do juiz de piso. Coisa julgada é coisa julgada. Se houver contradição entre
elas, surge a dúvida e in dubio pro reo. A multa era uma barbaridade.
Coisas de uma
justiça que empurra a sujeira por debaixo do tapete. O Brasil entrou
definitivamente na era do engodo. A “fake news” processual destronou a verdade
real.
O que isso tem a
ver com a Lava Jato? Muito. Muitíssimo. O método da mentira se aperfeiçoou. Com
o ingresso das “delações premiadas” no ordenamento processual, os procuradores
não precisavam mais procurar as pecinhas que se encaixassem no seu lindo quadro
imaginário. Passaram a ter a impressora das pecinhas e poderiam doravante
fabricá-las a seu talante.
Claro, tudo “combinado com os russos”, isto é, com o
“russo”, apelido que os procuradores deram ao juiz que tinha não só o poder de
homologar acordos entre defesa e acusação para validar delações, como também o
de encarcerar o candidato a delator refratário às teses dos lavajateiros.
Dito e feito. Se no
processo do mensalão não acharam a peça do quebra-cabeça para meter o
Presidente Lula em ferros, agora era mais fácil, pois a peça seria
milimetricamente torneada para completar o “puzzle”, isto é, o PowerPoint do
Dallagnol. Lula na cadeia é a cerejinha do bolo cozido com tanto esmero desde
os primórdios do mensalão, em 2005.
A pecinha, lemos hoje nas revelações trazidas na Folha de
São Paulo, é Leo Pinheiro, executivo da construtora OAS. Fizeram de tudo para
arrancar-lhe uma delação que se encaixasse na tese de corrupção de Lula por
meio do triplex do Guarujá, que, segundo wishful thinking dos promotores, teria
sido dado em troca de polpudos (ou “felpudos”?) contratos com a Petrobrás.
Leo, que se chama José Adelmário (isso, parece, a juíza
novata Gabriela Hardt, concurseira de respostas prontas, ignorava), foi preso e
condenado até que disse o que não queria dizer. A peça do quebra-cabeça foi
assim forjada. E o juiz “russo”, assim como seus três companheiros no TRF4,
passaram solenemente por cima de todas as provas da defesa que contrariavam o
delírio acusatório. No STJ, esfregou-se na cara dos advogados a famigerada
Súmula 7, que veda a reapreciação da prova. Fim de linha.
O resto da estória é conhecido. Aposentei-me do MPF e hoje
defendo os que foram levados ao cadafalso para deleite de um clube de meninos e
meninas em Curitiba e em Brasília que se achavam muito espertos. Mas, esperteza
demais mata. Hoje só lhes resta fazer que nem marido traidor flagrado pela
esposa com a amante no leito: negar sempre. Os iludidos somos nós!
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/os-iludidos-somos-nos-por-eugenio-aragao/
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