O direito à saúde foi redemocratizado após a promulgação
da Constituição Federal de 1988, a qual impulsionou a criação e organização de
um sistema público de saúde que garantisse o acesso universal e igualitário de
toda população, independente de contribuição.
As bases normativas mínimas que fundamentaram o direito à
saúde no Brasil encontram-se nos artigos 6º, 196 e 198, da CF/88.
Com a criação do Sistema Único de Saúde em 1990, a
assistência farmacêutica passou a garantir o acesso gratuito a medicamentos previamente
estabelecidos pela administração pública, e até hoje isso acontece através da
publicação das listas de dispensação de medicamentos.
Ocorre que, com o desenvolvimento populacional, muitos
enfermos demandam do poder público o fornecimento de medicamentos não presentes
nas listas de dispensação gratuita do SUS.
Por isso, é necessário a atuação efetiva do Poder
Judiciário, com a utilização de critérios claros no deferimento de demandas
desse tipo, pois combaterá a judicialização do direito à saúde e garantirá a
uniformização do entendimento jurisdicional quando do julgamento de demandas
com esse tipo de pedido.
Como visto, apesar de adotar a obrigatoriedade do registro
na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, a administração pública federal,
visando diminuir os riscos de doenças, bem como o agravo delas, pode conferir a
possibilidade da análise técnica e científica do medicamento por meio de
entidade congênere, a qual terá o condão de analisar a segurança, os efeitos e
a eficácia do fármaco pleiteado.
O Ministério da Saúde, por meio da Anvisa, não pode
argumentar ausência de comprovação da segurança do medicamento, quando é
possível analisar a segurança por meio de entidade e pessoas com expertise na
área, em especial quando o fármaco pleiteado já foi técnico e cientificamente
aprovado em entidades do exterior, como a FDA (Food and Drug Administration),
dos EUA, e a Emea (European Medicines Agency), da União Europeia, bem como por
entidades nacionais como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o apoio dos núcleos
técnicos ligados ao Poder Judiciário (NAT-Jus).
Ademais, com a abertura ao deferimento desses tipos de
medicamentos, a administração pública federal estará recepcionando novas
tecnologias ao SUS, evoluindo juntamente com os avanços da sociedade e garantindo
a prevenção e cura de novas doenças.
Ficar adstrito às políticas públicas preestabelecidas não
é respeitar o direito fundamental à saúde, tendo em vista que se apresenta como
se o poder público ficasse à míngua da garantia da redução do risco de novas
doenças e agravos, fato bastante explícito quando um enfermo/requerente postula
fármaco não registrado no órgão competente para tanto, e este fica inerte
frente a análise técnica e científica do medicamento pleiteado ou opina por não
incorporar o medicamento nas listas de dispensação gratuita do SUS.
Neste ponto, o Poder Judiciário deve intervir para
garantir a efetividade do direito fundamental à saúde. Seja para garantir o
direito às políticas públicas já previstas, seja para alertar o poder público
sobre a incorporação de novos medicamentos frente às novas doenças e/ou
agravos.
É recomendado que o órgão competente para figurar no polo
passivo da demanda seja primariamente a União. Deve-se fixar esse entendimento,
pois o órgão da administração pública responsável pela incorporação de novas
tecnologias no SUS é a Conitec, e o responsável pelo registro do medicamento é
a Anvisa, ambos vinculados ao Ministério da Saúde, pertencente à União. A
demanda deve ser ajuizada necessariamente perante a Justiça Federal, órgão
responsável pelas causas que envolve interesses ou bens da União. Assim,
deve-se prevalecer o entendimento de que, quando se pleiteia medicamento não
registrado na Anvisa, o ente legitimamente responsável para tanto é a União, e
não os três entes federativos — União, estado e município — solidariamente.
Ademais, além de garantir celeridade e efetividade nas
demandas que envolvam esse tipo de pedido, com a ação ajuizada contra a União,
esta terá a oportunidade de apresentar seus argumentos, não se limitando a
falar sobre o repasse de verbas para estados e municípios, mas, sim, apresentar
parecer mais detalhado sobre a incorporação ou não do medicamento, resguardando
uma maior segurança quanto aos efeitos do medicamento.
Como visto, o modelo tudo para todos, onde todos os
remédios, independentemente de seu custo e impacto financeiro, são
disponibilizados pelo Estado a todas as pessoas, é totalmente prejudicial ao
sistema de saúde brasileiro, acarreta graves prejuízos aos escassos recursos voltados
para área da assistência farmacêutica e conduz o SUS a não resistir se
continuar agindo dessa forma, além de afrontar os princípios básicos da
integralidade e da universalidade, que existem para organizar o Sistema Único
de Saúde.
Outrossim, é notório o aumento de gastos na aquisição,
gerenciamento e distribuição de medicamentos por parte do poder público na
dispensação de medicamentos, sem contudo passar pelo crivo de critérios claros
e necessários, sejam eles estabelecidos nas políticas públicas do SUS, sejam
eles ainda não presentes.
Portanto, quando se pensa em dispensação gratuita de
medicamentos, deve existir critérios claros e legais que orientem o seu
fornecimento. No caso de medicamentos já presentes nas listas, o Poder
Judiciário deve atuar somente para obrigar o poder público a fornecer, ao passo
que, quando não estiverem presentes nas listas de dispensação, o órgão
jurisdicional deve analisar se o requerente apresenta os requisitos essenciais,
necessários, portanto, para balancear o direito à saúde e a reserva do
possível.
Para racionalizar e uniformizar as decisões judiciais que
deferem o fornecimento de medicamento de alto custo (acima de R$ 200
mil/mensais) e sem registro na Anvisa, é necessário a construção de critérios
que deverão nortear o julgamento dessas demandas.
Foi neste contexto que o ministro Barroso encabeçou a
tese, defendida por este artigo, de que para o fornecimento de medicamentos de
alto custo e sem registro na Anvisa é necessário que o postulante preencha os
seguintes critérios obrigatórios e cumulativos: (i) a incapacidade financeira
do requerente para arcar com o custo correspondente, (ii) a demonstração de que
a não incorporação do medicamento não resultou de decisão expressa dos órgãos
competentes, (iii) a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo
SUS, (iv) a comprovação de eficácia do medicamento pleiteado à luz da medicina
baseada em evidências, e (v) a propositura da demanda necessariamente em face
da União.
Outrossim, no intuito de dar efetividade às políticas
públicas futuras, para esse tipo de requerimento, é necessário que seja
observado um parâmetro procedimental relativo à realização de diálogo
interinstitucional entre o Poder Judiciário e entes ou pessoas com expertise
técnica na área da saúde (por exemplo, câmaras e núcleos de apoio técnico em
saúde no âmbito dos tribunais, profissionais do SUS e Conitec), para fins de
aferir a presença dos requisitos de dispensação e determinar aos órgãos
competentes, no caso de deferimento judicial do medicamento, que avaliem a
possibilidade de sua incorporação pelo SUS.
Dessa forma, para vincular os órgãos do Poder Judiciário e
da administração pública a adotarem o posicionamento aqui defendido, é
necessário que o STF edite súmula com efeito vinculante a partir do julgamento
conjunto dos recursos extraordinários 566.471 e 657.718.
O RE 566.471, do Rio Grande do Norte, discute a
possibilidade de o Estado ser compelido a fornecer medicamento de alto custo a
portador de doença grave que não possui condições financeiras para custeá-lo. O
direito fundamental foi questionado tendo como fundamento os artigos 2º, 5º,
6º, 196 e 198, parágrafos 1º e 2º da Constituição Federal.
No caso do referido recurso extraordinário, a recorrida,
portadora de miocardia isquêmica e hipertensão pulmonar arterial, por não
possuir condições financeiras para arcar com os custos dos medicamentos, pediu
a condenação do estado do Rio Grande do Norte ao fornecimento ininterrupto de
Sildenafil 50 mg (princípio ativo do Viagra), medicamento de custo expressivo,
superior a R$ 20 mil por caixa, o qual, na época da propositura da ação, não
constava da relação de tratamentos fornecidos gratuitamente pelo Sistema Único
de Saúde (SUS).
Na ocasião, o juízo de 1º grau julgou procedente a ação,
entretanto, o estado do Rio Grande do Norte recorreu da decisão, alegando, em
síntese, que a decisão seria nula, por não estarem integrados à lide os
litisconsortes passivos necessários (União e município de Natal), que não
haveria obrigação de fornecimento pelo Estado de medicamento que não conste na
lista de alto custo do SUS e que a imposição de fornecer o medicamento
afrontaria o princípio da dotação orçamentária prévia.
O Tribunal de Justiça do estado negou provimento ao
recurso de apelação, argumentando, no mérito, a presença do direito ao
fornecimento do medicamento, em razão de haver comprovação nos autos da
imprescindibilidade do fármaco para a manutenção da saúde da recorrida e da
ausência de condições financeiras. O TJ-RN afastou também a alegação da
formação do litisconsórcio passivo.
O estado do Rio Grande do Norte interpôs o referido
recurso extraordinário, alegando violação aos artigos 2º, 5º, 6º, 196 e 198, parágrafos
1º e 2º, da Constituição Federal, bem como ser possível a aplicação do
princípio da reserva do possível, já que, diante da escassez de recursos, o
estado deveria privilegiar a destinação de recursos a políticas de saúde
capazes de atender a centenas de cidadãos em vez de empregar a mesma quantia
para atender a um único cidadão. Alegou também que o deferimento do pedido fere
o princípio constitucional da legalidade orçamentária.
Por outro lado, o Recurso Extraordinário 657.718, de Minas
Gerais, visa a análise do seguinte caso: o estado de Minas Gerais recusou-se a
fornecer à recorrente Mimpara 30mg, destinado ao tratamento da enfermidade
hiperparatireoidismo secundário em paciente com insuficiência renal em diálise.
Segundo entendeu, a ausência de registro do medicamento de origem estrangeira
na Agência Nacional de Vigilância Sanitária impede seja determinado ao ente
federativo o fornecimento do produto. O Tribunal de Justiça, reformando a
sentença em que declarada a procedência do pedido, consignou não se mostrar
recomendável deferir pleito voltado a obrigar o estado a garantir o
procedimento terapêutico sob essas circunstâncias. Dessa forma foi interposto o
recurso extraordinário.
Com a edição e validade da súmula vinculante, a
obrigatoriedade do fornecimento de medicamento de alto custo e sem registro na
Anvisa por meio de decisão judicial passará pelo crivo de critérios legais,
claros e eficazes, respeitando os princípios basilares do SUS, suas normas e a
reserva do possível, os artigos 6º, 196 e 198, da CF/88, bem como as leis que
regulam a vigilância sanitária no Brasil, como a Lei 6.360/76, além de reduzir
os efeitos da judicialização do direito à assistência farmacêutica.
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Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-jun-01/antonio-alves-filho-criterios-fornecimento-judicial-remedios
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