O Direito, com suas garantias fundamentais e regras comuns
à sociedade, está perdendo espaço para a Economia. Na prática, isso quer dizer
que o pacto social deixou de ter validade se ele não permite a solução mais
lucrativa para os donos do poder. É sintoma de um "Estado
pós-democrático", na interpretação do juiz Rubens Casara, da 43ª Vara
Criminal do Rio de Janeiro.
Ele defende a tese no livro Estado Pós-Democrático:
neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis, publicado em 2017 pela Civilização
Brasileira. Segundo o livro, o Direito foi capturado pela lógica neoliberal de
mercado. Isso quer dizer, diz o magistrado, que tudo passou a ser negociável
como se fosse mercadoria, inclusive direitos e garantias.
Casara defende, no livro, que o Judiciário deixou de ser o
garantidor dos direitos fundamentais para ser o regulador das expectativas dos
cidadãos, reduzidos a meros consumidores. No campo criminal, os juízes viraram
órgãos de "controle dos indesejáveis", como diz o juiz em entrevista
exclusiva à ConJur.
A consequência acaba sendo uma sociedade sem lei, em que
“a busca desmedida da satisfação do interesse individual apaga a possibilidade
de qualquer projeto coletivo”, aponta Casara na obra Sociedade sem lei:
pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie (Civilização
Brasileira), publicada em 2018.
Rubens Casara se afastou da magistratura para fazer
pós-doutorado em Nanterre, na França, e concedeu esta entrevista por e-mail.
Leia a entrevista:
ConJur — O que é um
"Estado pós-democrático"?
Rubens Casara — É a forma estatal caracterizada tanto pela
ausência de limites rígidos ao exercício do poder quanto pela identidade, uma
reaproximação obscena, entre o poder político e o poder econômico.
ConJur — Quando o
Brasil entrou nessa categoria?
Rubens Casara — Não é possível indicar um momento preciso.
A mutação do Estado é sempre o resultado de um processo complexo que leva a
mudanças de práticas, interpretações, pensamentos, de normatividades etc. No caso
da superação do Estado Democrático de Direito, em que os direitos e garantias
fundamentais funcionavam como limites à opressão e ao arbítrio, pela forma
estatal “pós-democrática”, o processo se inicia com o surgimento da
racionalidade neoliberal.
ConJur — E o que
significa isso?
Rubens Casara — A racionalidade neoliberal é esse modo de
ver e atuar no mundo que faz com que tudo e todos sejam tratados como objetos
negociáveis. Essa racionalidade colonizou o Estado, as instituições, as pessoas
e inclusive o Direito, fazendo, por exemplo, com que as garantias fundamentais
passassem a ser percebidas como obstáculos à eficiência do Estado ou do
mercado. Em linhas gerais, pode-se dizer que a racionalidade neoliberal se
caracteriza tanto por transformar o mercado em modelo de todos os
relacionamentos como por seguir a lógica da concorrência e o ideal de
ilimitação, instaurando-se uma espécie de "vale tudo" por dinheiro e
sucesso.
ConJur — O
Judiciário tem algum papel nisso?
Rubens Casara — Na "pós-democracia", o
Judiciário deixa de exercer a função contramajoritária de assegurar o respeito
aos direitos e garantias fundamentais — portanto, deixa de garantir as
"regras do jogo democrático" —, para se tornar uma espécie de
homologador das expectativas do mercado e, no campo criminal, um órgão de
controle dos indesejáveis aos olhos dos detentores do poder econômico. Por
evidente, o Judiciário não é um todo monolítico. Há resistência democrática no
próprio Poder Judiciário. Mas me parece importante analisar o que, na verdade,
os detentores do poder econômico esperam dos juízes e como, ou melhor, em que
circunstâncias e a partir de que fatores, inclusive ideológicos ,esses atores
jurídicos atendem a essa expectativa.
ConJur — Como assim?
Rubens Casara — Os discursos dominantes, o sistema de
recompensas institucionais, a indústria cultural, os conteúdos produzidos pelos
meios de comunicação de massa, as práticas irrefletidas, a jurisprudência
predominante, os indicadores sociais de sucesso, tudo isso forma um conjunto que
Foucault apontou como constitutivos de um "novo regime de verdade".
Na pós-democracia, a convicção de que a conduta adotada é a correta não guarda
relação com os valores constitucionais. Por exemplo,um juiz que alcance sucesso
midiático e prestígio político ao adotar uma série de procedimentos que afastam
direitos fundamentais, violam a legalidade estrita. Ou mesmo alguém que
considera o Estado de Direito um inimigo a ser afastado. No "regime de
verdade pós-democrático", diante dos valores da "racionalidade
neoliberal", ele está "correto" e tende a ser copiado por seus
pares.
ConJur — O
"Estado pós-democrático" é uma tendência mundial?
Rubens Casara — É uma consequência necessária daquilo que
vários teóricos chamam de racionalidade neoliberal. Isso se dá em todo o mundo.
Por evidente, em países lançados em uma tradição autoritária, em democracias de
baixa intensidade, a pós-democracia se instala de maneira quase imperceptível.
Um país como o Brasil, no qual parcela considerável da população prefere apostar
no uso da força em detrimento do conhecimento, marcado tanto pela naturalização
da desigualdade e da hierarquização entre as pessoas quanto pelo medo da
liberdade, a pós-democracia se instalou sem enfrentar resistência.
ConJur — No livro
Estado Pós-Democrático, o senhor afirma que, hoje, o poder penal serve para
neutralizar inimigos e atender a razões econômicas.
Rubens Casara — O Estado é a forma jurídica de um dado
sistema de produção e acumulação. Sempre foi assim. O que muda é a necessidade
dos detentores do poder. Em dado contexto, o sistema penal pode ser utilizado
para eliminar dissidentes políticos. Em outro, para proteger consumidores. No
Brasil, o poder penal sempre foi exercido, em maior ou menor intensidade, no
controle de indesejáveis, que já foram os malês, os escravos, os inconfidentes,
os subversivos, os desempregados. Ao longo da história, diversas lideranças
populares contrárias ao projeto de poder do momento também foram vítimas do
poder penal. Isso não significa que o sistema penal não tenha ou possa ter
outras funções, mas sempre serão funções secundárias diante da necessidade de
assegurar o mercado e os interesses dos detentores do poder.
Isso fica evidente a partir do século XVIII, momento em
que a economia passou a funcionar como princípio de limitação interna da razão
governamental. O que muda no final do século XX e no início do século XXI é o
surgimento de uma nova manifestação do neoliberalismo, na qual os valores
democráticos tornam-se totalmente dispensáveis, verdadeiras negatividades que
precisam ser afastadas. Nesse “neoliberalismo ultra-autoritário”, que alguns
teóricos chamam de “momento populista” ou “neofascista” do neoliberalismo,
desaparecem explicitamente os limites democráticos, éticos, teóricos e
epistemológicos ao exercício do poder penal.
ConJur — Alguns
analistas dizem que setores da magistratura e do Ministério Público
desenvolveram um projeto próprio de poder. Há até quem chame o fenômeno de
"novo tenentismo". Concorda?
Rubens Casara — Projetos de poder são inerentes a qualquer
atividade estatal. O problema nasce no momento em que esse projeto se mostra
incompatível com a democracia e com a República. Isso se deu com os militares
em 1964 e hoje não é possível descartar a hipótese de que essa distorção está
se repetindo não só com os militares, mas também com considerável número de
atores jurídicos. Se juízes e outros atores jurídicos se afastam da
normatividade constitucional com o objetivo de alcançar uma vantagem política,
de fazer prevalecer o que eles entendem como correto ou de impor a sua visão de
mundo, há um evidente risco à democracia.
ConJur — O senhor
afirma que os juízes deixaram de agir como garantidores de direitos e garantias
fundamentais e passaram a ser os diretores do espetáculo e gestores de interesses
políticos e econômicos. Quais são as motivações deles?
Rubens Casara — De modo geral, em sociedades como a nossa,
as pessoas são movidas pela busca de algum tipo de lucro ou capital. É possível
identificar uma mutação das instituições e dos indivíduos a partir da lógica da
concorrência e do ideal de ilimitação. Se o Direito foi colonizado pela
Economia (ou, ao menos, pelo que alguns economistas dizem ser a verdade da
Economia), se tudo passa a ser tratado como mercadoria e, portanto, pode ser
negociado, decisões judiciais também podem. E também podem ser geridas pela
lógica do espetáculo, no qual o enredo que dá lucro é mais importante que
descobrir a verdade.
ConJur — O livro diz
que o Judiciário é patriarcal e paternalista por causa da herança aristocrática
moldada pelo escravismo. É conservador, portanto. O concurso público não mitiga
esse ciclo? Ele não é uma forma de escolher os candidatos sem olhar para os
origens dele?
Rubens Casara — A escravidão é a grande questão que não
foi elaborada pela sociedade brasileira. Essa omissão faz com que, ainda hoje,
a hierarquização entre as pessoas e a desigualdade sejam naturalizadas. Isso
também influencia no funcionamento das instituições, em especial do Judiciário.
ConJur — Como isso
se dá, na prática?
Rubens Casara — O Judiciário, e isso não só no Brasil, se
encontra em uma encruzilhada entre sua origem oligárquica, certa herança
aristocrática e uma tentação populista cada vez mais forte. O concurso público,
por si só, não permite romper com esse quadro. A mera aprovação, e isso para
não falar das distorções produzidas pela indústria do concurso, não assegura
que o aprovado vai ser um bom juiz. Basta lembrar que muitos juízes concursados
esquecem da dimensão contramajoritária da função jurisdicional, inerente às
democracias, para se afastar da legalidade estrita e atender aos desejos de
determinada classe ou de maiorias ocasionais.
ConJur — Sugere
alguma saída?
Rubens Casara — Para romper com a tradição já mencionada
há apenas uma saída democrática: o respeito incondicional à Constituição. O
problema é que, na pós-democracia, o simbólico tende a ser ignorado. A lei
simbólica, pensada como limite externo ao julgador, perde importância e acaba
substituída pela vontade de cada juiz. Os juízes na era pós-democrática, em uma
típica performance paranoica, substituem a lei externa, inclusive a
normatividade constitucional, pela lei imaginária que cada um deles cria a
partir da imagem que fazem do que seja justiça.
ConJur — O senhor
afirma no livro que a função do MP "passou a ser a de potencializar a
repressão, independentemente das regras do jogo democrático". Quais são os
impactos disso para a sociedade?
Rubens Casara — Na democracia, e esse era o projeto
encartado na Constituição de 1988, o MP atua como garantidor da legalidade
democrática. Na pós-democracia, a partir da adesão à racionalidade neoliberal,
muitos membros do MP passam a recusar o compromisso com a legalidade
democrática, cedendo à lógica da concorrência, que no campo penal se transforma
na lógica do inimigo, buscando a potencialização da eficiência repressiva do
Estado e no interesse dos detentores do poder econômico, como alguns escândalos
recentes têm demonstrado.
ConJur — O senhor
afirma, no livro Sociedade sem lei, que o empobrecimento da linguagem leva ao
aumento da força e da dureza. Como isso se aplica a magistrados e integrantes
do MP?
Rubens Casara — Procurei demonstrar nesse livro que o
empobrecimento da linguagem gera o empobrecimento subjetivo, facilitando o
surgimento da personalidade autoritária. Algumas das características da
personalidade autoritária, como revelaram os estudos de Theodor Adorno, são
diretamente relacionadas ao empobrecimento da linguagem, tais como a ignorância
sobre o mundo concreto (para além dos gabinetes com ar refrigerado), a criação
de inimigos imaginários, o pensamento etiquetador e, principalmente, a
incapacidade do pensamento complexo. A partir de uma compreensão fraca do
mundo, a atuação dos atores jurídicos acaba reduzida à aplicação de fórmulas
prontas, à produção de decisões padronizadas, a chavões argumentativos e ao
populismo barato, traduzido em frases como "no mundo real, a teoria não
tem vez" ou "é preciso ouvir a voz das ruas".
ConJur — A delação
premiada também entra nesse conjunto de medidas que ajudam o mercado a ser mais
eficiente que o Direito?
Rubens Casara — A delação premiada, em especial diante da
importação acrítica desse instituto e da utilização pervertida no Brasil, é uma
espécie de fórmula mágica para gerar condenações sem provas. Valores
historicamente ligados a uma visão minimante democrática de jurisdição, como a
“liberdade” e a “verdade”, tornaram-se negociáveis. E isso é muito grave,
porque a delação não passa de um negócio entre um imputado, muitas vezes um
criminoso, e órgãos estatais que envolve vantagens para o primeiro em troca da
informação considerada útil pelos segundos. E, no Brasil, tem-se considerado
informação “útil” apenas aquela que confirma a hipótese acusatória e as
certezas prévias dos inquisidores.
ConJur — O grande
argumento a favor da delação é que ela é um mal necessário, já que ajudou a
descobrir muita coisa e a condenar muitos culpados que não teriam o mesmo
destino sem as delações.
Rubens Casara — Ajudou? É preciso cuidado ao tratar do
tema da corrupção no Brasil. Ao longo da história, o termo tem sido usado para
corromper a própria democracia. Por definição, corrupção é a ruptura com
padrões normativos. O problema é que tanto a racionalidade neoliberal quanto o
funcionamento normal do capitalismo demonstram que a corrupção é sistêmica,
tendendo a estar presente em todos os níveis. Há uma espécie de interpenetração
do mundo das relações privadas na burocracia estatal que leva à naturalização
das formas mais graves de corrupção. A corrupção da democracia representativa,
por exemplo, poucas vezes é mencionada.
ConJur — O que são
essas "formas mais graves de corrupção"?
Rubens Casara — Um conluio generalizado dos interesses dessas
oligarquias, que exercem diretamente o poder político e produzem seus
candidatos ou simplesmente “compram” seus representantes. Isso revela uma
confusão de lugares e a naturalização de evidentes conflitos de interesses. E
isso se dá, não raro, envolvendo atores sociais que dizem combater a corrupção.
ConJur — E as
delações não serviram para pelo menos se adentrar nesse mundo?
Rubens Casara — No Brasil, a pretexto de combater a
corrupção, o sistema de garantias constitucionais é frequentemente corrompido.
Mas não se toca nas questões estruturais que levam à corrupção. As delações têm ajudado, no máximo, ao
combate daquilo que Jessé Souza chamou de “corrupção dos tolos”, desvios
insignificantes em termos numéricos se comparados, por exemplo, com as sonegações
fiscais, e que muitas vezes têm servido a manipulações políticas. Não é difícil
perceber como o tratamento de casos de corrupção como escândalos e o discurso
meramente moralizador do combate à corrupção têm servido para esconder não só o
caráter sistêmico como também formas mais graves desse fenômeno e suas reais
causas.
ConJur — Há futuro
para o Direito? Ou cada vez mais a Constituição e as leis vão continuar sendo
ignoradas por agentes públicos?
Rubens Casara — Para resgatar a importância do Direito é
necessário romper com esse modo de ver e atuar no mundo. É preciso
ressimbolizar o mundo para resgatar os valores democráticos e o respeito às
regras e aos princípios impostos como limite à atuação tanto de particulares
quanto dos agentes estatais. Tenho trabalhado a importância de substituir a
racionalidade neoliberal por aquilo que Laval e Dardot têm chamado de
racionalidade do comum. E o comum [e tudo aquilo que nos une e não pode ser
negociado, como os direitos fundamentais, que são conquistas civilizatória e
funcionam como limites ao arbítrio, à opressão, à financeirização da vida e aos
desejos egoístas dos detentores do poder econômico.
ConJur — O que resta
ao jurista no "Estado pós-democrático"?
Rubens Casara — Resistir ao arbítrio, a partir de todo um
instrumental democrático, teórico, ético e prático, que ainda está à disposição
dos atores jurídicos. Denunciar a colonização do Direito pela Economia. Em
outras palavras, cabe ao jurista colocar o seu saber-poder à disposição da
redemocratização do mundo na luta pela construção de uma nova hegemonia, na
qual o projeto constitucional volte a condicionar a atuação dos indivíduos e as
práticas estatais.
ConJur — Qual é o
papel do ensino jurídico na atual do Judiciário no Brasil?
Rubens Casara — No ambiente da racionalidade neoliberal, o
Judiciário e as demais agências do sistema de justiça foram levadas a adotar o
modelo de empresa e buscar produzir lucro. A pergunta, então, é: quem lucra com
o Judiciário transformado em empresa? Quem lucra com juízes transformados em
gestores? Se mudarmos o objeto de análise, poderíamos indagar quem lucra com um
ensino jurídico reduzido a “cursinho preparatório” para concursos públicos.
Quem lucra com a proposta de acabar com o exame da OAB? Quem lucra com atores
jurídicos formatados a partir de cálculos de interesse? Quem lucra com a
simplificação tipicamente neoliberal e, muitas vezes, imbecilizante das
disciplinas jurídicas promovida em cursinhos preparatórios? Entender o
funcionamento concreto do ensino jurídico na sociedade brasileira passa por
responder a essas questões.
Um ensino jurídico adequado à democracia deveria ter um
objetivo principal: evitar o retorno da barbárie, como procurei explicar no
livro Sociedade sem Lei. Esse objetivo, porém, passa longe de vários cursos de
Direito.
Sérgio Rodas é
correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-jun-02/entrevista-rubens-casara-juiz-criminal-rio-professor
Nenhum comentário:
Postar um comentário