Passadas
48 horas da divulgação dos diálogos entre procuradores da “lava jato” e o
ex-juiz Sergio Moro, algumas questões parecem estar consensuadas:
–
Primeiro, que as conversas configuram relações promíscuas e ilegais entre juiz
e membros do Ministério Público;
–
Segundo, houve a violação de comezinhos princípios éticos e jurídicos acerca do
devido processo legal;
–
Terceiro, ficou claro que a defesa foi feita de trouxa pelo juiz e pelo MP,
porque combinaram esquema tático sem que essa imaginasse o que estava ocorrendo
(a defesa pediu várias vezes a suspeição do juiz);
–
Quarto, o juiz visivelmente atuou na acusação, violando o princípio acusatório;
o juiz chegou a sugerir a oitiva de uma testemunha e cobrou mais operações
policiais; como diz o jornalista Ranier Bragon, as conversas não dão margem a
dúvida: o juiz tomou lado (aqui).
–
Quinto, o conteúdo dos diálogos não foi negado (falarei abaixo sobre sua
[i]licitude).
Bom,
se isso não é parcialidade, tanto do juiz como do MP, então teremos que trocar
o nome das coisas. Simples assim. Podem Dallagnol e Moro tentarem se explicar.
Mas a rosa não perde seu perfume se a chamarmos de cravo, como em Romeu e
Julieta (Shakespeare).
Fosse
na Alemanha, os protagonistas estariam sujeitos ao artigo 339 do Código Penal,
aqui traduzido livremente (lá eles chamam a isso de Rechtsbeugung –
prevaricação):
Direcionar,
juiz, promotor ou qualquer outro funcionário público ou juiz arbitral, o
Direito para decidir com parcialidade contra qualquer uma das partes.
Pena:
detenção de 1 a 5 anos, e multa.
Leiam
com vagar o dispositivo acima. Tomem um café e voltem ao texto.
Vamos
a algumas explicações. Como garantista, vamos admitir que os diálogos sejam
frutos de prova ilícita (hackeamento). Então Dallagnol e os demais escapam de
processo judicial. Mas é consenso no Direito brasileiro que ninguém pode ser
condenado com base em prova ilícita. Porém, o réu pode ser beneficiado por ela.
Já
cedo da manhã de segunda, no calor dos acontecimentos, expliquei para vários
sites e rádios essa questão, lembrando de um exemplo de meu professor de
processo penal, em 1830: se uma carta for aberta criminosamente (violação de
correspondência) e nela se descobrir que um inocente está pagando por um
culpado, o inocente poderá se beneficiar dessa prova ilícita. Tenho isso muito claro.
Mas, por garantia, encaminho os leitores para o comentário de Araken de Assis e
Carlos A. Molinaro ao art. 5, LVI, da CF, no livro Comentários a Constituição
do Brasil (In: MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; CANOTILHO, J.J.;
STRECK, L.L.; LEONCY, Léo Ferreira (coord.), São Paulo: Saraiva Educação, 2018,
p. 470). Eles esgotam a matéria.
Registro,
ainda, que, na opinião do perito Fabio Malini, professor do laboratório de
estudos sobre imagem e Cybercultura da Ufes, dificilmente os diálogos
divulgados são produto de hackeamento. Para ele, a causa pode ter sido algo
simples: descuido dos usuários. E eu acrescento: pode ser produto de um X9. O
professor lembra, ainda, que os fatos indicam que não foi ativado o modo de
destruição das mensagens do Telegram. Enfim, quando todos dizem que foi
hackeamento, pode tudo isso, todavia, ser produto de vazamento interno. Nestas
alturas, em termos de garantias, Dallagnol deve estar torcendo que seja
hackeamento, porque essa prova não pode ser usada, juridicamente, contra ele e
os demais. A ver, nesse ponto.
Aproveito
para lembrar, também, que fui o primeiro e único (ao que sei) que avisou que o
item 9 do acórdão que condenou o ex-presidente Lula continha algo muito
estranho:
“Não
é razoável exigir-se isenção dos Procuradores da República, que promovem a ação
penal. A construção de uma tese acusatória – procedente ou não -, ainda que
possa gerar desconforto ao acusado, não contamina a atuação ministerial.”
(TRF-4 – ACR: 50465129420164047000 PR 5046512-94.2016.4.04.7000)
O
sistema de justiça brasileiro está em uma encruzilhada. Os fins justificam os
meios? Dallagnol, em vídeo, diz que não. Mas, lendo os diálogos, a prática do
MPF no caso mostra claramente que, sim, os fins justifica(ra)m os meios. De uma
vez por todas: um juiz não se associa com o órgão acusador.
Imaginemos
o contrário: o vazamento de conversas do juiz com o advogado de defesa e depois
o réu é absolvido. O que seria isso? Cairia a casa. Mas como é conversa de juiz
com o MP, isso é visto como “normal”, como sustentam Dallagnol e Moro. Como o
sistema de justiça reagirá a isso?
Ah,
e, segundo Deltan, não há parcialidade, uma vez que “54 pessoas acusadas pelo
Ministério Público foram absolvidas pelo ex-juiz federal Sergio Moro”. Uau.
Essa é a prova de imparcialidade? Primeiro, não significa nada. Segundo, e
concedendo para fins de argumentação que signifique, de imparcialidade em x
processos não se deriva imparcialidade em y processos. Simples.
Além
do mais, veja-se que nos diálogos entre os procuradores, Dallagnol admite a
fragilidade da prova do caso do tríplex. Admite também que a prova é indireta,
citando a mim e a Reinaldo Azevedo:
“Ainda,
como a prova é indireta, ‘juristas’ como Lenio Streck e Reinaldo Azevedo falam
de falta de provas. Creio que isso vai passar só quando eventualmente a página
for virada para a próxima fase, com o eventual recebimento da denúncia, em que
talvez caiba, se entender pertinente no contexto da decisão, abordar esses
pontos.”
Sim,
Deltan. Vou desconsiderar as aspas. Reinaldo já falou – e bem – sobre isso.
Vamos ao ponto. Tenho esse hábito de chamar as coisas pelos seus nomes.
Diferentemente do imaginário Lava Jato, que não sabe diferenciar juiz e parte,
eu sei que não existe linguagem privada. Não adianta tentar criar uma
novilíngua exclusiva da República de Curitiba: os critérios para atribuição de
significado e sentido são externos. Linguagem pública (Wittgenstein). Quando
falta prova… falta prova. E haverá juristas, com aspas ou sem aspas, para dizer
que falta prova.
O
que veio a público com as matérias do Intercept Brasil é nada mais que aquilo
que eu já venho denunciando de há muito, agora trazido às claras. Sob o
pretexto da luta contra a corrupção, trocaram o Direito pela política. Na
espécie, ignoraram as lições mais elementares que qualquer aluno de graduação
aprende em Introdução ao Direito e colocou acima da Constituição, na famosa
pirâmide de Kelsen (que nem era do Kelsen), os procuradores – e nesse plural,
por óbvio, está Sergio Moro; e a culpa não é minha. Quem decidiu incluir a si
próprio nessa posição foi ele ao optar por atuar como parte. Ah, e falando em
Kelsen, parece que ele tinha razão, na sua porção decisionista (8º Capítulo da
TPD): decisão judicial como ato de vontade (de poder).
Atropelaram
garantias, atropelaram a Constituição, atropelaram a lei. E vejam, a crítica
que aqui faço é muito provavelmente a mais fácil que já tive de escrever. Está
tudo ali. Escrito. E o que está escrito importa, por mais que se negue as
evidências. Lembro de um acusado de ter furtado um porco, na minha primeira
comarca. Disse a autoridade policial que ele vinha carregando o porco nas
costas. Indagado sobre o que fazia o porco na sua “cacunda”, o réu respondeu:
“Qual porco? Quem colocou esse bicho nas minhas costas?” Na especificidade, o
réu não se ajudou muito.
Por
último, lembro que Dallagnol e Moro não podem se queixar, uma vez que o
primeiro defende com ardor o pacote das dez medidas, onde consta que notícias
anônimas podem ser usadas para iniciar investigação, porque o que importa é
“levar atos corruptos ao conhecimento do cidadão” (veja-se: eu não concordo com
isso; quem diz isso é Dallagnol). Esse ponto é bem lembrado pelo advogado Gamil
Hireche (aqui). Perfeito. Aqui, no caso, nem há anonimato, pois não?
Já
Moro sempre disse que ninguém está acima da lei e, no programa do Bial,
justificou o vazamento das conversas de Lula com Dilma deste modo: “O problema
ali não era a captação do diálogo e a divulgação do diálogo, era o diálogo em
si, o conteúdo do diálogo, que era uma ação visando burlar a justiça. Este era
o ponto.”. Pois é.
Tudo
muito simples, pois não? E por que, ainda com todos esses elementos, parte da
comunidade jurídica aplaude as ilicitudes? A resposta pode ser esta: Por causa
do tipo de ensino jurídico e do desprezo dessa parcela de pessoas por aquilo
que lhe dá sustento: o Direito. Fossem médicos, fariam passeata contra os
antibióticos e o uso do raio laser nas cirurgias. Motivo: salva muita gente.
O
sintoma: Precisava mesmo de tudo isso, de todo esse tempo para que o estouro
acontecesse? Precisava que viesse o Glenn Greenwald jogar isso na nossa cara
para que acordássemos enquanto comunidade jurídica? Já estava tudo ali. Talvez
não estivesse dito… mas o não dito já existia. A paralipse já tinha ficado
muito clara naquele Power Point do Dallagnol.
Mas
que seja. Que tenhamos coragem de, finalmente, encarar as coisas como elas são
e chama-las pelos nomes que elas têm.
Odeio
dizer que eu avisei, mas… eu avisei. Não sei qual será o resultado de tudo
isso, mas uma coisa é certa: o Direito nunca mais será o mesmo em Pindorama.
No Conjur
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