A controvérsia sobre detração
Vou
tentar dirimir uma controvérsia hermenêutica que parece estar instalada. Como
se sabe, o ex-presidente Lula teve sua pena reduzida para 8 anos e 10 meses de
reclusão. Inicialmente, a pena, imposta pelo então juiz Sergio Moro, era de 9
anos e 6 meses — pena que foi posteriormente ampliada para 12 anos e um mês
pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Já cumpriu mais de ano, porque
preso desde abril de 2018, em decorrência da nova interpretação do Supremo
Tribunal Federal acerca da presunção da inocência.
O
STJ não aplicou a detração. Também não sei se foi pedida. Não importa. Quero
falar sobre o que vem sendo discutido: cabe ou não cabe a detração nas
circunstâncias concretas do caso?
A
detração está prevista no artigo 42 do Código Penal, que dispõe que
“Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de segurança, o tempo
de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e
o de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior.”
Em
2012, a matéria passou a constar no CPP, no artigo 387, § 2º:
O
juiz, ao proferir sentença condenatória:
[…]
§
2º O tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no
Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime
inicial de pena privativa de liberdade.
Trata-se
muito mais de uma questão hermenêutica do que processual. Há duas teses: a
restritiva e a constitucional. Explico: O legislador estabeleceu que a prisão a
ser computada é a provisória. Quer dizer: o sujeito fica preso provisoriamente
antes de ser condenado e tem o tempo “detratado”. Quem cumpre já parte da
própria pena — como no caso de condenados em segunda instância sem o benefício
da liberdade antes do trânsito em julgado — não, por essa tese, esse direito.
Essa é a tese restritiva.
Aqui,
como contraponto, trago a tese
constitucional. Assim, há duas questões: provisório é preso de que tipo?
Por exemplo, se ele já começa a cumprir a pena a partir do segundo grau e vem a
ser absolvido no STJ, ele não era provisório? Bom, se era definitivo, como pôde
ser absolvido? Vejam a impossibilidade de se epitetar tipos de prisão.
Mas,
deixando de barato o léxico de “provisório”, há que se perguntar se o
legislador tinha liberdade de conformação para fazer essa discriminação, dando
benefícios para a pena provisória e prejudicando a pena definitiva – sic (ou
seja, com a virada do STF pelo HC 126.292, já se considera pena definitiva a
que vem cumprida depois do segundo grau). Se a pena não era provisória, por que
foi alterada?
Há
uma pista para entender o imbróglio. O ministro Barroso, no ARExt 1.129.642,
diz: "Todas as vênias ao eminente ministro Marco Aurélio. Entendo que a
pena privativa de liberdade pode ser executada preventivamente, e não,
necessariamente, provisoriamente...", com a qual a liberdade aqui seria
preventiva e, portanto, deve-se aplicar a regra do 387, parágrafo 2º, do CPP,
como muito bem lembram Aury Lopes Jr. e Alexandre Rosa.
Assim,
valendo o que disse Barroso, parece óbvio que o cumprimento da pena após o
segundo grau é preventiva ou provisória. Eu não tenho dúvida disso. Afinal,
insisto, se o STJ ou o STF anulam todas as provas e com isso o réu vem a ser
absolvido, e ele já cumpriu parte da pena, essa “pena” era o quê? Definitiva ou
provisória? Isso vale para diminuição de pena.
Trata-se,
pois, de fazer uma interpretação conforme a Constituição do artigo 387,
parágrafo segundo, do CPP, porque, aplicado em sua literalidade (tese
restritiva|), viola a igualdade e a isonomia, discriminando onde não se pode
discriminar.
Cumprimento
de pena é cumprimento de pena. Um dia na prisão é um dia na prisão, independentemente
do nomen juris que tenha. Na verdade, pode-se até nominar a pena de provisória
e definitiva. Concedo esse ponto. O que não se pode é dar efeitos diferentes no
caso de beneficiar o condenado. Isso seria contrariar toda a principiologia
penal e processual penal que dá sustentação ao sistema.
Portanto,
uma interpretação adequadora deixa claro que a expressão sentença condenatória
deve ser lida como decisão condenatória, alcançando o segundo grau e as
instancias recursais (STJ e STF). E qualquer prazo que o condenado tenha estado
na prisão deve ser computado para fins de cálculo de regime de cumprimento. De
novo, é uma questão da principiologia que sustenta a norma que exsurge do texto
(texto e norma são coisas diferentes, lembra Fr. Müller).
Além
do mais, o dispositivo do CPP fala em tempos computados. Computado quer dizer
somar, juntar. Consequentemente, computados os cumprimentos, tem-se “pena
cumprida”. Para simples isso.
Essa
questão acima nos remete a outro ponto, que ilustro a partir de um antigo caso
brasileiro. Tão antigo quanto pouco conhecido, lamentavelmente. Leiam abaixo.
A
finalidade da lei: uma questão de antanho – já em 1866...
No
caso, trata-se de aplicar uma coisa muito antiga, chamada “finalidade da lei”.
É uma coisa já conhecida no século XIX desde Ihering e que, no Brasil, fora
aplicada no ano de 1866 — de forma avançada! — pelo juiz Antonio Vicente
Pereira Leitão, na comarca de Rio Pardo, ao interpretar o artigo 1º da Lei de 7
de novembro de 1831.
Foi
com base nesse dispositivo legal que os escravos Lino e Lourenço postularam sua
liberdade, já que, incorporados a uma comitiva que levou víveres para soldados
brasileiros no Paraguai, atravessaram território livre (Argentina). Estabelecia
a lei que todos os escravos que entrarem no território ou portos do Brasil,
vindos de fora, ficam livres, excetuados os escravos matriculados no serviço de
embarcações pertencentes ao País, onde a escravidão é permitida, enquanto
empregados ao serviço das mesmas embarcações.
A
argumentação do juiz da Comarca foi no sentido de que era o caso de aplicar-se
a citada lei, porque seu objetivo era o de impor condições mais difíceis para
os escravagistas, “para que se vá perdendo a vontade de sustentar o vício com
que foi criada [a escravidão], e paulatinamente se resignando a cumpri-la”.
Escrevi um artigo sobre esse caso na Revista Brasileira de Direito Civil
Contemporâneo, sob o título “Dois casos na escravatura dos Estados Unidos e do
Brasil: perspectivas do direito civil e do direito constitucional”, v. 16, p.
41-60, 2018.
Ou
seja: lido o dispositivo de forma literal, Lino e Lourenço não tinham direito.
Só que, aplicada à luz de sua finalidade (acabar aos poucos com a escravidão),
a lei dizia terem eles direito à liberdade.
No
caso Lino e Lourenço, de forma hipócrita ou não — deixo para o leitor —, a
finalidade da lei era combater a escravidão. Pelo menos oficialmente era a
finalidade.
No
caso da detração, a finalidade da lei, de forma hipócrita ou não — deixo para o
leitor —, é a reintegração mais rápida do preso à sociedade, facilitando a
progressão de regime. Pelo menos, oficialmente é essa a finalidade.
Logo,
uma interpretação da legislação processual penal à luz de sua finalidade, à luz
dos princípios que lhe sustentam, é uma obrigação do intérprete.
Porque
o ponto é: respeitar os limites semânticos de um texto não é, não deve ser, um
exegetismo do século dezenove. Já digo isso há três décadas. Respeitar a lei
não exige um textualismo barato, raso, ingênuo. Por vezes, uma leitura literal
pode ser desejável, nos casos de garantias de liberdade. Às vezes, respeitar a
lei quer significar que é, a partir do que o texto diz, é obrigação do
intérprete identificar o que o texto tem a dizer na sua finalidade. Ou seja, há
que se perguntar: por que a lei foi feita? Como alcançar a igualdade prevista
pela Constituição?
É
por isso que essa não é uma questão casuística. É exatamente uma questão de
respeitar o Direito. Recorro a Lon Fuller:
um
sistema jurídico que não observa os princípios por meio dos quais é capaz de
realizar sua função não é um sistema jurídico digno do nome.
A
verfassungskonforme Auslegung, mais do que um método/modo de interpretar, é um
princípio constitucional. A parametricidade material das normas constitucionais
conduz, logicamente, à exigência da conformidade substancial de todos os atos
do Estado com as normas e princípios hierarquicamente superiores da
Constituição.
E
a nossa Constituição, que tem força normativa, é uma Constituição que prevê
garantias. É uma Constituição democrática, que impõe limites, parâmetros, que
impõe critérios.
Interpretar
a legislação penal e processual penal conforme a Constituição, nesse caso e em
qualquer outro, é uma questão de respeitar os princípios que fazem nosso
Direito ser o que é.
E
respeitar a principiologia que dá sustentação a nosso ordenamento significa
respeitar suas próprias condições de possibilidade. E respeitar a finalidade de
uma lei que só poderia, mesmo, ter uma: beneficiar o réu, rumo a mais rápida
reintegração social.
Trata-se,
portanto, de respeitar o Direito.
Dos
anos 60 do século XIX à 2019 – cuidado para não regredirmos
Para
reflexão: Se o juiz do caso Lino e Lourenço tivesse feito faculdade de direito
hoje, por certo deixaria os escravos na senzala do seu senhor. Correria o risco
de adotar a tese restritiva.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Revista Consultor
Jurídico
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