Em razão da importância social e repercussão jurídica, a
votação de qualquer projeto de lei que altere o processo penal deve ser precedida
de um amplo debate. O que não está ocorrendo no pacote "anticrime"
apresentado pelo Ministério da Justiça, e defendido pelo chefe da pasta, Sergio
Moro.
A cobrança por um debate amplo foi feita pelo Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em parecer entregue nesta
segunda-feira (20/5) ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia. No documento, a OAB
reforçou que a proposta de Moro possui diversas inconstitucionalidades.
"Há convergência total por parte da comunidade
científica de que a proposta do Ministério da Justiça não foi precedida do
indispensável debate público que se esperava em um projeto com esse impacto
sobre o sistema penal, processual penal e penitenciário", diz trecho do
documento, relatado pelos conselheiros Juliano Breda e Ticiano Figueiredo.
O parecer foi aprovado por unanimidade no Conselho e
contou com a contribuição de dezenas de estudiosos de direito penal, processo
penal, criminalistas e entidades diversas, e apoia-se em dois grandes eixos.
A entidade afirma que praticamente todas as abordagens
doutrinárias a respeito das propostas do governo federal, recebidas pelo
Conselho Federal e até então divulgadas publicamente, partem de uma crítica
comum.
Para a OAB, não existe uma exposição de motivos detalhada
e aprofundada das causas que motivaram as propostas, dos estudos técnicos que
as amparam e, em especial, de uma análise cuidadosa a respeito das
consequências jurídicas, sociais e econômicas de eventual aprovação integral do
projeto.
"Por exemplo, em relação as medidas para assegurar a
execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda
instância, ou seja, a prisão antes do trânsito em julgado, a entidade rejeita a
proposta em razão de manifesta inconstitucionalidade", diz trecho do
documento.
Alterações
Segundo a OAB, o projeto pretende ainda criar duas
alterações de impacto sobre os processos de competência do Tribunal do Júri,
permitindo-se a execução antecipada das penas logo após a decisão de condenação
e retirando-se o efeito suspensivo do recurso contra a decisão de pronúncia.
"O Grupo de Trabalho do Conselho conclui pela
inconstitucionalidade da proposta de execução da pena após a decisão do
Tribunal de Júri e pela rejeição da proposta de retirada do efeito suspensivo
da pronúncia, aderindo à proposta de Alberto Toron, para, alternativamente,
sugerir que se estabeleça um prazo razoável para a decisão do Recurso em
Sentido Estrito pelo Tribunal", afirma a entidade.
A proposta de supressão dos embargos infringentes
produzirá, essencialmente, decisões injustas, segundo a entidade, que também
rejeita a proposta.
"Aliás, é paradoxal pretender-se retirar o efeito
suspensivo dos recursos aos Tribunais Superiores ao lado da extinção de
hipóteses de recurso também no julgamento em segunda instância, evidenciando o
descompromisso com o aperfeiçoamento da prestação jurisdicional".
Fixação da Pena
O projeto prevê a imposição automática de regime inicial
fechado em algumas hipóteses, como "no caso de condenado reincidente ou
havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada
ou profissional".
"A proposta colide não apenas com o texto do artigo
33 do Código Penal, que dispõe critérios que viabilizam a materialização da
garantia constitucional da individualização da pena, que, pois, acaba violada,
como, ao mesmo tempo, confronta a jurisprudência pacífica do tema. Isso porque
a obrigatoriedade do regime fechado como regra para os delitos previstos viola
a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito dos crimes
hediondos", aponta o parecer.
Citado, o jurista Lenio Streck afirma que o STF já se
manifestou sobre a inconstitucionalidade da fixação a priori do regime de
cumprimento da pena para qualquer delito, uma vez que estaria configurada
afronta à garantia constitucional de individualização da pena.
"Mesmo que hajam exceções previstas no PL, que é o
que diz o ministro quando questionado acerca da (in)constitucionalidade, ainda
assim seriam exceções fixadas a priori, e, sendo fixadas de forma antecipada,
configurariam, do mesmo modo, afronta à individualização, que exige, por óbvio,
para a fixação do regime do cumprimento da pena, a análise circunstancial do
caso concreto e da conduta delitiva de cada réu", explica.
Acordo de
Não-Persecução
O Ministério da Justiça propõe a inclusão do Código de
Processo Penal do chamado "acordo de não-persecução". Para o
criminalista Alberto Toron, citado no parecer, é bem-vindo o acordo.
Entretanto, segundo Toron, é descabida a exigência de "confissão
circunstanciada" do agente em razão de o acordo não ter natureza
condenatória.
"O instituto deveria ser alçado à condição de direito
processual público de natureza subjetiva. Não externada a proposta pelo MP, o
interessado poderia requerer o benefício ao juiz que decidirá a respeito, com
direito a recurso das partes", avalia.
A entidade constatou que esse tópico do projeto de lei,
embora contenha imperfeições, não destoa da correta política criminal de
conceder maior efetividade às soluções consensuais no processo penal, em
especial às infrações de menor potencial ofensivo, cometidas sem violência ou
grave ameaça.
"Diante de todas as contribuições recebidas, a OAB
não se opõe ao aprofundamento da discussão sobre a incorporação ao sistema
processual do instituto da “não persecução”, ou seja, da ampliação do instituto
da transação penal a crimes com penas não superiores a quatro anos, sem as
restrições objetivas apontadas, e que o benefício se constitua em “condição de
direito processual público de natureza subjetiva”, na linha da defesa de
Alberto Toron.
Acordo Penal (plea
bargaing)
Lenio Streck, após apontar a evidente assimetria no eixo
de poder negocial entre acusação e defesa, sugere importantes alterações para a
constitucionalização do plea bargain.
"Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a
verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes
para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o Código
de Processo penal e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de
igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa",
diz.
O advogado Fabio Tofic Simantob, por sua vez, sugere que
"qualquer modelo adotado no Brasil deve conter limite máximo de pena a
partir do qual não será permitido o acordo, e a proibição de cumprimento de
pena em regime fechado e em semiaberto, este último permitido apenas nos crimes
com pena superior a oito anos".
Gravação de conversa
A gravação de conversa entre advogado e cliente preso,
segundo a entidade, é uma proposta que atenta gravemente contra o direito de
defesa. O Estatuto da Advocacia e da OAB estabelece os pressupostos legais para
o afastamento da confidencialidade das comunicações entre advogado e cliente.
Gabriela Coelho é
correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-mai-20/parecer-oab-critica-pacote-anticrime-cobra-amplo-debate
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