"Essa
história de pobre e rico é uma narrativa que o governo criou para buscar uma
legitimidade social. Na verdade, a reforma da Previdência está pegando muito o
pobre e o tal do rico que não é rico. Dois salários mínimos não é rico, é o
brasileiro em massa."
Esta
é a análise que o auditor fiscal Kleber Cabral, presidente do Sindicato
Nacional dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco), faz sobre a
proposta de reforma da Previdência do governo Jair Bolsonaro (PSL).
Em
entrevista à ConJur, Cabral afirma que é necessário reformar o sistema
previdenciário. Mas discorda da proposta do governo. Para ele, o modelo
previsto na PEC em discussão na Câmara é desnecessariamente
"radical".
O
governo vem defendendo que sua proposta de criar um sistema progressivo de
alíquotas previdenciárias é uma forma de fazer justiça tributária, o que não
existiria no sistema atual. Foi o que disse o secretário especial da
Previdência, Bruno Bianco, à ConJur, em entrevista recente.
Para
Kleber Cabral, no entanto, o discurso é "uma grande incoerência".
"Hoje a PEC 6 coloca uma progressividade nas alíquotas para usar essa
narrativa de que está sendo justa como desculpa. Enquanto isso, o conjunto
tributário brasileiro é extremamente regressivo. Quem paga mais imposto são os
pobres, em cima do consumo. Vai continuar. Então, não há preocupação genuína, é
só discurso mesmo", diz.
Leia a entrevista:
ConJur
— A reforma da Previdência é mesmo necessária?
Kleber
Cabral — Existe a necessidade de uma Reforma. Temos questões como a longevidade
e a redução do número de filhos das famílias. Não tenho dúvida de que
precisamos fazer alguma reforma, olhando pro futuro.
ConJur
— Mas não a reforma que o governo propõe?
Kleber
Cabral — Hoje a gente tem o sistema de repartição, que deve prosseguir. Não é o
momento oportuno para o sistema de capitalização apresentado pelo ministro. O
país está atravessando déficit. Então, para o sistema de repartição buscar o
equilíbrio de longo prazo e ser longevo, precisamos fazer ajustes. Hoje você
não tem idade mínima, por exemplo, no regime geral. O servidor público tem
idade mínima desde 1998, já existe pro servidor público, pra iniciativa privada
não tem, né. Então realmente precisa ter algumas mudanças.
ConJur
— Existe mesmo um rombo na Previdência?
Kleber
Cabral — Existe um problema de mistura do que é Previdência e o que é
Assistência. E esse governo assumiu que o BPC é assistência, mas continua
chamando aposentadoria rural de aposentadoria, como se fosse tudo Previdência,
tudo no meio do Regime Geral. Muita gente aposenta por idade sem ter
contribuído, então está embutido uma parte de assistência junto. Então, quando
falamos de déficit, a primeira coisa que tem que segregar é o que é
Previdência, de quem contribuiu e vai ter um retorno na aposentadoria, e o que
é Assistência e quem vai pagar por ela.
ConJur
— E o governo mistura tudo?
Kleber
Cabral — O grande problema do projeto do governo é que ele busca equilibrar
essas contas com os próprios segurados. O topo da pirâmide, os ricos e
privilegiados de verdade, não estão. Eles não dependem de previdência pública e
não sendo chamados a colaborar com nada. Só os próprios segurados é que estão
tendo que apertar os cintos pra fechar as contas entre si. Antes, mais do que
ficar derrapando se tem déficit ou qual é o tamanho do rombo, a gente prefere
dizer "não, tem que corrigir, tem que ter uma reforma".
ConJur
— É correto analisar contas da Previdência ano a ano se os impactos são por
geração?
Kleber
Cabral — Todos estamos acostumados a bater foto, ano a ano. Isso só dá
diagnóstico errado, porque pode ter num ano um superávit, no outro, déficit, e
isso não é indicativo de nada. É como se medíssemos o batimento cardíaco usando
termômetro: é o instrumento errado. Na verdade, deveria ter o estudo de longo
prazo. Houve momentos em que o sistema foi superavitário e ninguém guardou esse
dinheiro. Então não adianta só olhar a fotografia e fazer a conta "receita
menos despesa".
ConJur
— Dá pra confiar nas contas do governo?
Kleber
Cabral — Não dá para opinar se estão
certos ou errados, porque falta informação. O governo apresentou as contas em
cinco ou seis grupos. Do Regime Geral, que é o maior de todos, não dá para
saber o que é rural, o que é urbano, o impacto sobre as pensões etc. O governo
precisa abrir esses números.
ConJur
— O governo defende a tese de que transformar as alíquotas previdenciárias em
progressivas vai trazer justiça tributária. Faz sentido isso? Como é o sistema
hoje, se não é progressivo?
Kleber
Cabral — Essa é uma das maiores lorotas que o governo está contando. O governo
escolheu uma narrativa de comunicação. Quer dizer que essa reforma é justa
porque ela vai combater privilégios: os ricos e os pobres agora vão se aposentar
na mesma época. "Hoje, o rico aposenta cedo e o pobre já aposenta
tarde". Essa é a narrativa do governo. E aí, metade do tempo bate no
servidor público como o grande privilegiado. Só que, na verdade, já tivemos
duas reformas no serviço público que já eliminaram os grandes problemas.
ConJur
— E eles não são o problema?
Kleber
Cabral — Na verdade, boa parte do déficit que ainda tem vem das aposentadorias
sem as que as pessoas tenham contribuído num valor equivalente, celetistas que
foram transformados em estatutários. Um monte de problemas de legislações do
passado, que foram muito lenientes e estão pesando nos cofres públicos. Existe
um déficit, mas é um déficit que vem sendo reduzido ao longo dos anos, e não
aumentando, como o governo fala. Então, pelos números você não consegue de fato
apontar “não, o culpado aqui é o servidor público”. Mas o governo tem usado
metade do seu tempo pra falar isso. O governo pretende economizar, ao longo dos
20 anos, R$ 4,5 trilhões. Disso, R$ 3,5 trilhões são do Regime Geral.
ConJur
— Os servidores são insignificantes, então, na conta toda?
Kleber
Cabral — Nesses 20 anos, o impacto do servidor público será de 9%. Não é bem do
servidor público que o governo está tirando, até porque já houve essas
correções. O grosso mesmo é corrigir o Regime Geral. E aí, quem é esse rico de
que o governo fala? O pobre é quem ganha um salário mínimo. Se você ganha dois,
é rico, segundo o governo. Para o governo, a pessoa que se aposenta por tempo
de contribuição é rico. Por isso que o governo fala "o rico que se
aposentava cedo agora vai aposentar junto com o pobre". O pobre já se
aposenta aos 65, por idade. Agora a pessoa que contribuir também vai ter que
esperar até os 65. Mas quem é essa pessoa? O zelador do prédio, o chefe do
almoxarifado do supermercado, o trabalhador da construção civil, que ganha
dois, três, quatro salários mínimos. Esse, mesmo tendo recolhido desde mais
jovem, vai ter que esperar até os 65. O
governo tem considerado pobre quem ganha um salário mínimo. Quem ganha um
pouquinho mais já é considerado rico. Mas os verdadeiros ricos e privilegiados
não estão aí na proposta. Não estão dependendo da Previdência, estão em outra,
têm patrimônio.
ConJur
— O governo diz que pretende criar um sistema previdenciário de alíquotas
progressivas. Mas não deu sinais de que pretende mexer na regressividade do
sistema de tributação de renda. Como ficaria o sistema, então, para os cidadãos
normais?
Kleber
Cabral — É uma grande incoerência. Faz parte dessa narrativa "ricos contra
pobres" eles terem criado essa alíquota progressiva. Assim, deram, na
verdade, meio por cento de alívio pra quem ganha um salário mínimo. E criou
essa alíquota progressiva que só pega servidor público, que seria de 14%, 19% e
22%, de acordo com a remuneração. Se você for ver os números, isso representa
um porcento desses R$ 4,5 trilhões em 20 anos. É muito mais retórica do que
realmente economia. O governo quer reduzir meio por cento de quem ganha um
salário mínimo, cria essa escala como se fosse uma maneira de justiça, mas é só
pra ter uma narrativa. Para ter uma história para parecer que está sendo justo.
O grosso mesmo do dinheiro vai sair da aposentadoria rural, do aposentado por
invalidez, das pensões. As regras pra pensão são bem pesadas. Acho que a
população ainda não acordou.
ConJur
— Como serão?
Kleber
Cabral — A proposta reduz quase 40% nas pensões. Hoje no Regime Geral, a pensão
é integral. A pessoa recebe integralmente. No serviço público já tem um redutor
de 30%. A PEC 6 cria aquela região de cotas. ntão se você tiver mais filhos, é
10% por filho, mas se for só o casal, viúva ou viúvo, o cônjuge sobrevivente
vai ficar com 60% da remuneração. E no caso do servidor público, vai ficar
menos da metade.
ConJur—
È justo desvincular o sistema de pensões do salário mínimo
Kleber
Cabral — Não. O salário mínimo é a
política de assistência social que o país adotou e não deve ser abandonada. O
importante é separar o que é Previdência do que é Assistência. De fato, alguém
que contribuiu 15 anos e se aposenta por idade com salário mínimo, não
contribuiu pra ter um salário mínimo, ele contribuiu pra ter, digamos, R$ 400.
Os outros R$ 600 são assistência.
ConJur
— Por que deve ser feita essa separação? O cofre não é o mesmo?
Kleber
Cabral — Para discutir quem é que vai arcar com essa assistência. Hoje quem está
arcando são os próprios segurados. Não é para ser assim. Quem tem que arcar com
a assistência é a sociedade em geral, e tem que cobrar mais de quem ganha mais.
A PEC 6 coloca uma progressividade nas alíquotas para ter essa desculpa dessa
narrativa de que está sendo justa. Enquanto isso o conjunto tributário
brasileiro é extremamente regressivo, quem paga mais imposto são os pobres, em
cima do consumo. Vai continuar. Então, não há preocupação genuína, é só
discurso mesmo.
ConJur—
Acabar com o BPC vai ter algum efeito real na Previdência?
Kleber
Cabral — O BPC é o programa de assistência social de maior importância no país.
A proposta do governo não é acabar, é mudar. Em vez de pagar aos 65 anos, aos
67 anos, pagar aos 60 um valor menor, de R$ 400, e a partir dos 70 anos começar
a pagar um salário mínimo. Ela retarda o pagamento do salário mínimo para 70
anos enquanto antecipa uma parte. É uma conta que não está muito clara, mas o
governo diz que economizará, nesses primeiros dez anos, R$ 160 bilhões com as
mudanças no BPC. Se vai economizar, é porque o pobre, o povo que está
precisando, vai deixar de receber.
ConJur
— E o que o senhor pensa da reforma, de forma geral? O governo insiste no
discurso de que ela beneficiará o pobre, mas o senhor enxerga isso como mera
retórica.
Kleber
Cabral — A reforma é muito dura na subtração de direitos. Mas não precisaria
ser tão dura se o governo olhasse mais para o lado das receitas. Nós, na
Receita Federal, como auditores fiscais, temos nos esforçado para mostrar que é
preciso equilibrar as contas públicas. Nossa preocupação é a mesma. Mas isso
pode ser feito também pelo lado das receitas.
ConJur
— Como assim?
Kleber
Cabral — Investir no combate à sonegação, na cobrança dos grandes
contribuintes, reduzir os benefícios fiscais ineficientes... Aí se conseguiria,
pelo lado das receitas, cobrar de quem hoje não está pagando. Não é cobrar de
quem já paga, porque a carga tributária já é pesada. Tem que cobrar daquele que
está se aproveitando ou de sonegação ou de brechas da legislação. Aí a Receita
Federal mais eficiente poderia colaborar muito pro equilíbrio das contas, sem
necessidade de uma reforma tão pesada na subtração de direitos.
Gabriela Coelho é
correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor
Jurídico
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