Muitos
anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, os juristas haverão de lembrar
do tempo em que negaram a racionalidade do Direito Penal, e nos levaram a todos
nós para conhecermos o gelo.
Não
que o país houvesse sido, em algum momento da nossa história, um paraíso
tropical de plenas realizações de direitos, ou que os processos penais
efetivamente encontrassem sempre a verdade dos fatos. Nossa Macondo verde e
amarela é um lugar violento, com desigualdades acentuadas, de questionável
liberdade para escolhas pessoais e restrita efetividade das prestações
públicas.
O
Brasil ainda se notabiliza pela avançada corrupção e a sua forma de entronizar
o “jeitinho brasileiro”, de braços dados com a normalização da “lei do Gerson”,
permite a filosofia de boteco do “Mateus, primeiro os teus”. Na realização
dessa característica, a primeira vítima é sempre a verdade.
Vê-se
muito facilmente como a impunidade campeou e como a má formação da mentalidade
do administrador gerou tantos desvios e tantos crimes contra a administração
pública.
Entretanto,
a lógica utilizada pelos corruptos arrisca se repetir do outro lado do balcão,
quando juristas e autoridades institucionais tendem a justificar as suas teses
moralmente corretas a partir do jeitinho processual e da negação da própria
verdade.
Quando
o que há de concreto deixa de importar, ou deixa de ter valor no processo
penal, e tudo passa a ser discurso retórico, terminamos misturados por
correntes de WhatsApp e renegados a uma pré-modernidade. A legitimação do
processo como demonstrativo de realidade cede à avalanche de existir tão
somente como reprodução de discurso.
Agora
que estamos imersos nessa linguagem — a do combate à corrupção — que serviu de
mola propulsora para mergulhar a sociedade numa catarse de limpeza e numa
neurose por higienização do Estado e da sociedade, juristas são chamados a
separar realidade de fantasia.
É
preciso estabilizar a verdade, pois são muitos os que começaram a confundir a
urgente e necessária punição por prática de atos de corrupção com o uso da sua
justificativa para legitimar quaisquer atitudes e, também, perseguir os
inimigos políticos, afastar os divergentes ideológicos e isolar os adversários
sociais inventados. O comportamento evoluiu para o maniqueísmo, que gerou ódio,
que mergulhou a todos nós no pânico moral por medo de um inimigo etéreo, criado
a partir de uma narrativa construída por outros, e que nega o conhecimento,
ignora a verdade e ofende a racionalidade.
Uma
de tantas facetas que surgiram desse transe doméstico e coletivo foi a
elitização da magistratura, o discurso judicial da superioridade moral do juiz,
a negação do seu papel de servidor público e o consequente protecionismo da
própria autocompreensão do magistrado e, portanto, de sua posição na sociedade
dividida.
Nos
tempos que correm, o Brasil se tornou uma espécie de Macondo, onde o realismo
fantástico sai a todo momento de dentro da literatura e se muda, de armas e
bagagens, para as salas de audiência. Os pergaminhos de Melquíades se refletem
nas sentenças aborrecidas, que se postam muito distantes do sangue, do suor e
das lágrimas dos humanos. Não faltam Mamães Grandes nem Olhos de Cão Azul.
A
verdade morreu! A Crônica é de Morte Anunciada!
Ela
não importa mais!
Foi
superada pela retórica vazia!
As
coisas do mundo fantástico são tão recentes que carecem de nome, e para delas
falar é preciso apontá-las, lembra Gabo, batizado Gabriel. E repetindo o
realismo fantástico colombiano, a nossa realidade de novas ondas gera
movimentos que carecem de nomes, e têm suas essências usurpadas por uma
fantástica realidade retórica, digna do Amor e de Outros Demônios.
Sob
a justificativa de combater a corrupção, muitos flagelos invadem o cotidiano.
Vale lembrar que muitas indignidades históricas foram cometidas sob esta mesma
justificativa: o nazismo, o estalinismo, o fascismo, o chavismo e todos os
“ismos” arrogantes e autoritários, assassinos e populistas, tiveram origem
neste mesmo discurso. Revelaram-se, com o tempo, atrozes e dominados pela sua
própria antítese.
O
discurso do combate à corrupção nos manda ficar “insones para vigília contra o
mal”, e esse discurso retórico já se consolida como seita: com seus altares,
ídolos, rezas e inquisições!
A
consequência inevitável do mal da insônia, realisticamente inventado por
Gabriel García Márquez, é a perda da memória. Nessa vigília desmemoriada,
vão-se os comparativos históricos que não nos permitem errar duas vezes. Ao
desconhecer o passado, os juristas repetem os seus erros. Mesmo que muitos
penalistas repitam a sina de José Arcádio Buendía — de colar papelotes dando
nomes aos institutos para que deles não nos esqueçamos —, a comunidade, por sua
maioria, tende a esquecê-los, dominada pela narrativa que se ritualiza e se
sacraliza. Esquecem o crime de tortura; esquecem as mortes nas periferias;
esquecem as injustiças e as perseguições. Esquecem as fraudes e as corrupções
que existiram em todos os regimes e em todos os tempos.
Ignorar
fatos e institutos é prática corrente na vivência da vigília insone.
Olvidam
as hipóteses legais para prisões; olvidam a argumentação jurídica necessária
para sustentar fatos e provas. Já não se lembram da modernidade existente na
igualdade entre os sexos, entre as raças e entre as religiões. Já não se
lembram da modernidade de professar uma ideologia e de pensar e se expressar
livremente. Esquecem até mesmo a necessidade de educação, de livros e de
cultura — pois “a internet proverá”.
É
preciso refazer o movimento do alvorecer dos tempos dos Buendía: apontar com o
dedo para dizer em alto e bom som o que as coisas realmente são.
O
mal da insônia traz o esquecimento e assola a terra brasilis. Junto com o
esquecimento vem o culto sem pudores à ignorância e ao desconhecimento,
construindo uma nova e deprimente narrativa.
Tudo
parece esquecido e assim permanecerá até que os ciganos retornem com suas
essências e nos permitam sair do torpor!
A
todos nós — juristas de uma terra cada vez mais espelhada em Macondo — resta
negar equívocos narrativos e escrever para reentronizar a verdade, pois as
estirpes condenadas a cem anos de solidão não terão uma segunda chance sobre a
terra.
Ney Bello é desembargador
no Tribunal Regional Federal da 1ª Região, professor da Universidade de
Brasília (UnB), pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de
Letras.
Revista
Consultor Jurídico
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