A
cruzada anticorrupção que tomou conta do senso comum no Brasil foi anunciada
como se quisesse acabar com a apropriação do setor público por interesses
privados. Mas o principal efeito foi causar certo atavismo da burocracia.
"Corrupção" é um carimbo que cabe em tudo, e por isso os técnicos do
governo foram acometidos por um medo de tomar decisões fora do script, com medo
de terem de responder a processos.
"É
a aplicação do Direito Administrativo do medo", comenta o advogado
Benjamin Caldas Gallotti Beserra, especialista no setor portuário. Em
entrevista à ConJur, ele conta ter ouvido a expressão numa palestra do ministro
Benjamin Zymler, do Tribunal de Contas da União, para falar sobre os efeitos
das decisões da corte: os técnicos não tomam decisões, não destravam
investimentos, com medo de terem de responder pessoalmente pelo prejuízo
eventualmente causado por aquele contrato.
A
defesa contra esse fenômeno é o indeferimento de algum pleito legítimo, ou o
engavetamento de uma proposta importante para o desenvolvimento do país.
"Quando existe um excesso punitivo, tudo é visto como corrupção, e não como
erro. Isso tem prejudicado o desenvolvimento do país. O técnico tem medo de dar
opinião, de tomar uma decisão", afirma Gallotti.
Outra
causa desse fenômeno é o que ele chama de excesso de regulamentação. Assuntos
que não precisam de tratamento especial, mas acabam sendo alvo de resoluções de
agências reguladoras por causa de determinações do TCU, ou até do Judiciário,
sem conhecimento prático do problema. Preocupante, diz ele, num setor que
transporta 95% das riquezas produzidas pelo país.
Leia
a entrevista:
ConJur
— Há excesso de controle estatal na regulação da infraestrutura?
Benjamin
Gallotti — Há 20 anos havia uma ausência normativa, não tinha modelos como o
das normas da Antaq, tinha que tirar da cabeça, dos conceitos jurídicos, da sua
formação. Mas hoje há excesso, que vem justamente da padronização de situações
que nem sempre são idênticas. Houve evolução: a Antaq, que é a mais atuante,
com mais de 5 mil resoluções e uma série de instruções normativas e resoluções
normativas, portarias, juntamente com a Secretaria de Portos, chegaram a se
exceder. O que tem acontecido é que elas têm vontade de regulamentar, mas, como
os assuntos ainda não estão totalmente cristalizados, elas têm que rever muito
as normas e isso é ruim.
ConJur
— O chamado "sistema U", com TCU, AGU, CGU etc., atrapalha o
desenvolvimento do país com suas ferramentas de controle?
Benjamin
Gallotti — Há algumas determinações do Tribunal de Contas para que a Antaq
regulamente assuntos que não precisam ser regulamentados. Quando se conceitua,
limita. E às vezes a limitação é desnecessária. A taxatividade às vezes impede
a adequação de uma condição boa, que é importante para o país, que é de vontade
de todos, mas que o técnico fica impedido de fazer porque a norma não previu.
ConJur
— O Judiciário deve ser mais contido em casos ligados a infraestrutura?
Benjamin
Gallotti — Não há como evitar que questões sejam levadas ao Judiciário. Mas os
juízes realmente não conhecem a realidade de um porto. Às vezes não sabem que a
interdição de um porto em um dia gera prejuízos milionários. Reconheço que,
para o Judiciário, é muito difícil conhecer tudo de tudo é impossível. A probabilidade
de o Judiciário errar por não conhecer o setor é muito grande. A demora para
analisar projetos é um dos assuntos que mais demandam intervenção judicial, ou
o excesso de regulação, que às vezes o particular não entende. Mas é um assunto
polêmico. Toda vez que o Judiciário intervém nessa atividade, que é muito
específica, fica sujeito a esse tipo e problema.
ConJur
— O que o excesso de regulação pode causar ao país?
Benjamin
Gallotti — É a aplicação prática do "Direito Administrativo do medo".
É uma expressão do ministro Bejamin Zymler, do TCU, que ele falou numa palestra
para reconhecer as consequências da atuação do tribunal e nunca esqueci. Ele
usou a expressão para dizer que o técnico se defende indeferindo um pleito que
seria importante para o país por ter uma dúvida, por não ter regulamentação
específica para o assunto. Às vezes é exigência do próprio técnico, que diz
que, na ausência de norma, ele não pode agir. Esse direito administrativo do
medo é o técnico defendendo seu CPF para que não tenha nenhum tipo de problema
no futuro. Quando existe um excesso punitivo, tudo é visto como corrupção, e
não como erro. Isso tem prejudicado o desenvolvimento do país. O técnico tem
medo de dar opinião, de tomar uma decisão, e depois ser responsabilizado ou
acusado de alguma coisa.
ConJur
— Qual o modelo ideal de gestão para os portos?
Benjamin
Gallotti — O melhor regime seria o do porto público eficiente como o privado,
desregulamentando o máximo possível esse regime de exploração que mostra
eficiência ano a ano. Os portos ganham e o volume movimentado bate recorde em
cima de recorde.
O
modelo de gestão parte de uma política pública do que seria o ideal. A
atividade econômica, quando desenvolvida pela iniciativa privada, na maioria
das vezes, é mais eficiente do que se fosse pela administração pública. Agora,
a gestão do porto busca sempre ter uma mão do governo lá dentro. É diferente um
terminal específico, que tem um só dono que movimenta determinado tipo de
carga, do porto de Santos, por exemplo, com quilômetros de cais, tem que
organizar a entrada de navios, organizar o zoneamento para não haver conflito
de cargas e coisas do tipo.
ConJur
— O que acha da fusão da Antaq com a ANTT?
Benjamin
Gallotti — O setor portuário tinha a Portobras que surgiu na década de 1970 e
foi até a década de 1990. Desde então o setor não tinha visibilidade. A Antaq
nasceu pequenininha, mas vem se desenvolvendo e nesse período foi dada mais
visibilidade ao setor. A fusão não traz benefício para o setor. Muito pelo
contrário, tira a pouca visibilidade que o setor tinha, reduz o conhecimento
técnico que veio sendo construído ao longo dos últimos 17 anos pela agência.
Pode haver benefício de economia para o governo, porque pode haver a fusão de
algumas redundâncias e isso vai resultar numa estrutura menor. Mas é uma
economia que não vale a pena. O setor portuário transporta 95% das nossas
riquezas, portanto, merece mais atenção, não essa fusão.
ConJur
— O último relatório da Antaq espera que em 2019 os portos movimentem um bilhão
de toneladas de cargas. Que risco o Judiciário apresenta nesse cenário?
Benjamin
Gallotti — A questão regulatória judicial não está intimamente ligada ao volume
de carga. Se transportasse a metade, seria a mesma coisa. Apesar da crise, o
setor vem sempre crescendo. Na questão do aumento de volume, o que a gente vê é
que cada vez mais o Judiciário vai ser demandado, com maiores quantidades de
players no mercado, mais empresas e mais questões vão sendo trazidas para o
judiciário. E o Judiciário em algum momento vai ter que se dedicar.
Gabriela Coelho é
correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor
Jurídico
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