A
juíza aposentada Kenarik Boujikian, cofundadora da Associação de Juízes para a
Democracia (AJD), escreveu nesta quinta-feira (21) uma carta ao ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na mensagem, ela se solidariza com Lula pelas
injustiças sofridas no âmbito da operação Lava Jato e lamenta não poder
ouvi-lo: “Sua palavra foi interditada, até nos momentos de maior dor. (…) Não
há algo mais simbólico: calar o presidente”.
Ao
citar ações recentes do governo Jair Bolsonaro (PSL), a desembargadora
aposentada desde 8 de março de 2019 afirma que “as razões [da prisão de Lula]
estão cada vez mais claras para população”.
Nascida
em uma comunidade de armênios na Síria, Kenarik Boujikian Felippe chegou ao
Brasil com 3 anos de idade e notabilizou-se como juíza do Tribunal de Justiça
de São Paulo (TJSP), pautada pela defesa dos direitos humanos. A carta escrita
para Lula chegará à Superintendência da Polícia Federal (PF) em Curitiba (PR)
nesta sexta-feira (22), um dia após visita de 12 juízes e desembargadores à
Vigília Lula Livre. Confira o texto na íntegra:
“Caro
Presidente Lula,
Bom
dia!
Minha carta não chegará a tempo de ser entregue
pelos amigos que estão em Curitiba, nesta data. Fiz uma confusão em razão do
fuso-horário (estou muito longe, em Fiji). Mas, mesmo assim, resolvi escrever.
Ocorre
que as palavras estão fugindo. Não consigo sintonizar a caneta na mão, com a
cabeça e o coração, que está partido e muito pressionado com tantas injustiças
pelas quais está passando e, por consequência, também o povo brasileiro.
O
pior, para mim, que fui juíza por 30 anos (dia 08 de março foi meu primeiro dia
de aposentada como desembargadora do TJSP), é saber que muitas das injustiças
foram realizadas pelas mãos do Poder Judiciário.
O
objetivo de parte deste sistema perverso foi alijá-lo da disputa eleitoral,
fazendo uso deturpado dos mecanismos legais.
As
razões estão cada vez mais claras para população. Basta ver alguns exemplos do
que estão fazendo com o país: o destino do pré sal; o congelamento do
orçamento; as propostas na área da educação; agora, a base de Alcântara; a
vexatória coluna abaixada de um presidente brasileiro, para o presidente dos
EUA; a proximidade geográfica com o maior produtor de petróleo da América, a
Venezuela; o ataque ao projeto da Previdência Social para dar lugar à
previdência privada; o projeto ‘anticrime’ de Moro, da maior mediocridade
vista, pintada ridiculamente como a salvação, o que constrange, pois é certo
que o resultado seria o oposto, como exemplos de nossa história recente
demonstram; a assunção de cargo no Executivo de seu julgador).
Mas,
presidente Lula, na verdade não queria escrever. Queria era ouvi-lo.
É
vergonhoso que tenhamos um Judiciário que não lhe permite falar.
Ao
invés de lhe dar as garantias , passa a subtrair seus direitos.
Ao
preso não existe a possibilidade da sanção de ter a palavra cassada. Esta pena
não se encontra no ordenamento jurídico, mas isto não lhe foi assegurado, até o
momento. Pelo contrário, sua palavra foi interditada, até nos momentos de maior
dor.
E
a imprensa, no que diz respeito à liberdade de expressão e comunicação, está
muda, de braços cruzados.
Não
há algo mais simbólico: calar o presidente. Não deixar que seja visto como ser
humano que é e que emociona pela alegria que tem em construir um país mais justo
e digno.
Caro
Presidente, estive em São Bernardo do Campo no dia anterior à sua apresentação
em Curitiba. Só o tinha visto uma única vez, na casa do amigo João.
Alguns
não compreendem meu gesto. Naquele dia, eu fui para a reunião da ABJD
[Associação Brasileira de Juristas pela Democracia] e queria, de algum modo,
hipotecar minha solidariedade e registrar minha indignação com a decisão do
STF, que não poderia ter aquele resultado, numa análise das declarações e
decisões anteriores dos próprios ministros.
Existem
pessoas que não entendem um simples gesto solidário.
Mas,
voltando, o povo já diz que a mudança da decisão foi proposital, e
concomitantemente temos um decréscimo significativo da confiança que a
população tem no sistema de justiça. O índice de confiança (ICJ), medido pela
Fundação Getúlio Vargas, mostra que está em decréscimo para o Judiciário e em
grau maior para o MPF. Acho que é forçoso reconhecer o descontentamento do povo
com nossas instituições.
Sou
uma pessoa que se move pelos sonhos e luto por eles. Espero, com todas as
minhas forças, que o STF retorne o seu papel de garante dos direitos
fundamentais e que o sentido de trânsito em julgado seja retomado, na decisão
definitiva, nos clássicos conceitos que sempre nortearam meus bancos escolares
e nos deles.
Presidente,
quero muito ouvi-lo e vê-lo, assim como milhões de brasileiros e brasileiras
que aqui o aguardam.
Registrei
a Vossa Excelência naquele dia de São Bernardo do Campo que a injustiça é um
dos piores sentimentos que uma pessoa pode passar, e isso tudo está causando
muita dor, mas devo dizer que gerou muita solidariedade e reflexão.
Há
um sentimento que ultrapassará a injustiça. Creio que seja o amor pelo outro
Quando
Papa Francisco me perguntou como avaliava os últimos períodos do Brasil,
mencionei minha frustração com as questões indígenas e problemas ambientais.
Disse que o fantástico foi tirar milhões e milhões de pessoas da linha da
miséria, em um período curtíssimo de tempo, levando em conta que temos mais de
500 anos de história.
Portanto,
podemos concretizar o projeto do Brasil,
que está na Constituição. Podemos apagar da história da humanidade a morte
real, diária, pela fome, que está acontecendo neste exato instante que eu
escrevo. Já pensou? Ninguém mais vai morrer de fome no Brasil e no mundo!
Presidente
Lula, você mostrou que isto é possível e nem precisa de tanto assim. As pessoas
não se sentiriam melhor em saber que não haverá crianças se acabando até a
morte por não ter o que comer?
Presidente,
faço parte de uma associação (Juízes para a Democracia) que foi criada pós-88 e
objetiva contribuir para tirar o projeto de país insculpido na Constituição
Federal para a realidade, para a vida.
Vamos
continuar, sonhando juntos .
Uma
pessoa que assumiu o projeto de acabar com a miséria tem o maior sentimento do
mundo: o amor pela humanidade.
Deixei
no dia da vossa apresentação, lá em São Bernardo, a pequena pomba da paz, que
eu usava desde que estive com Papa Francisco, por ele abençoada. Sei que está
em melhores e mais adequadas mãos. Acho que, de algum modo, é símbolo de
proteção.
Presidente,
ainda que esteja há quase um ano na prisão, o senhor construirá a paz. Estamos
te aguardando. Até breve, e um forte abraço de conforto, carinho e admiração.
Kenarik
Boujikian, cofundadora da Associação Juízes para a Democracia, desembargadora
TJSP (aposentada).
Mensagem
foi escrita no dia em que 12 juízes e desembargadores se reuniram em Curitiba
em solidariedade a Lula
Por
Jornalistas Livres 21 março, 2019
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