Duas
frases marcaram a semana: a blogueira Alessandra Strutzel (sim, temos de dar
nome aos bois e bois aos nomes!) disse, ao saber da trágica morte do neto de
Lula, de 7 anos: “Pelo menos, uma notícia boa”. E a do deputado Eduardo
Bolsonaro (Deus acima de todos – eis o slogan da moda): A ida de Lula ao
enterro “só deixa o larápio em voga posando de coitado”! Houve ainda muitos
outros “pronunciamentos” de ódio e regozijo pela morte do menino de 7 anos.
Até
onde chegamos? É o fundo do poço? O que Deus diria disso, ele que, conforme o
slogan, “está acima de todos?”
Confesso
a vocês – e Rosane, minha esposa e Gilberto, um de meus assistentes, são
testemunhas – que esse episódio me abalou profundamente. Embarguei a voz.
Triste pela morte da criança e estupefacto e magoado com a raça humana e com a
reação das pessoas nas neocarvernas que são as redes sociais. Ah, blogueiros e
influenciadores, coachings e quejandos, ah, quantos justos haverá em Sodoma?
Abraão será um advogado que lhes conseguirá um HC?
Peço
paciência para me seguirem no que vou dizer. No auge do macartismo, em
audiência no Senado, o advogado Joseph Welch teve a coragem de perguntar ao
senador McCarthy, o homem que deu nome à prática de ver comunismo em tudo:
“Senhor,
você perdeu, afinal, todo senso de decência?” Pergunto aos odiadores que
comemoraram ou trataram com raiva de Lula o episódio fatídico:“Senhores e
senhoras, parlamentares, blogueiros, twuiteiros, whatsapianos e faceboqueanos:
vocês perderam, afinal, todo senso de decência?”
Em
tempos de hinos nas escolas, na era das acusações de marxismo cultural (sic),
eu poderia muito bem falar aqui sobre o macartismo à brasileira. Não vou. Falo,
hoje, sobre nosso senso de decência. Ou melhor, tento falar sobre o senso de
decência que perdemos.
Também
não vou falar — não diretamente — sobre aquilo que, agora, todos já sabem ter
acontecido. Lamentavelmente, morreu o neto, de sete anos, do ex-Presidente
Lula. Sobre isso, não há o que falar. É o zero total. É Timon de Atenas, de
Shakespeare, propondo o fim da linguagem. Shakespeare, logo ele, que bem sabia
que a linguagem é a casa do Ser (Heidegger).
Sou
um hermeneuta. Bem sei que a linguagem é, como dizia Ortega y Gasset, um
sacramento que exige administração muito delicada. Da palavra não se abusa; não
se pode colocá-la em risco de desprestígio. É precisamente por isso que sei que
sobre a morte de uma criança não se fala; lamenta-se. Chora-se.
Vou
(tentar) falar, portanto, repito, sobre o senso de decência que perdemos.
Confesso, é difícil: às vezes, a degradação e a desumanidade são tão grandes
que também parecem impor o silêncio. Mas como Auberon Waugh dizia sabiamente,
se
é verdade que o mundo é um lugar horrível com pessoas horríveis, temos o dever
sagrado de incomodá-los sempre que possível.
Eis
a minha tarefa: incomodar as pessoas horríveis. O que dizer em tempos nos quais
uma legião de imbecis, para usar as palavras de Eco, aproveita-se da morte de
uma criança e utiliza as redes sociais para destilar ódio e externar a própria
baixeza? É hora do grito de Schönberg: Palavra, oh Palavra, que falta me
faz!!!!
O
que dizer quando se torna normal que um deputado — o mais votado da história do
país — vai às redes sociais, sempre as redes sociais, para dizer que “cogitar”
a saída de Lula para o enterro do neto (saída que está prevista na lei,
diga-se) “só deixa o larápio [sic] em voga posando de coitado“?
Perdemos,
afinal, todo senso de decência? Não, não tenho raiva. Sinto é…pena.
O
que Deus, que está “acima de todos”, diria? Ou dirá? Deus, que disse que nunca
mais inundaria a terra:
“nunca
mais será ceifada nenhuma forma de vida pelas águas de um dilúvio; nunca mais
haverá dilúvio para destruir a terra”.
Deus
disse também que sempre que houvesse nuvens sobre a terra, e o arco aparecesse
nas nuvens, lembrar-se-ia “da eterna aliança entre Deus e todos os seres vivos
de todas as espécies sobre a terra”.
E
se o Altíssimo mudasse de ideia? E se Deus dissesse que, afinal, a humanidade deu
tão errado que é hora de um novo dilúvio?
E
se o critério de seleção para o dilúvio fosse aquilo que se diz, espalha,
compartilha, no WhatsApp? Já pensaram? Como falei na coluna passada (ler aqui),
que tal se Deus fizer uma PEC e alterar o estatuto do purgatório? Então, a
partir de agora, o juízo final será feito por Ele a partir do exame do WhatsApp
de cada um (e também do twitter e face). Uma olhadinha e Deus manda para o
inferno. Platão foi o primeiro a denunciar as fake news. Platão mostrou que dizer
aos néscios que as sombras são sombras é uma coisa perigosa. Pode ser
apedrejado. Como o sujeito que saiu da caverna o foi.
Dizer
hoje, a quem está mergulhado nas redes e pensa que o mundo são as redes, que
esse mundo é imundo, em que o joio fez fagocitose ruim no trigo, pode também
ser perigoso. Denunciar isso pode dar apedrejamento. Por isso, Deus acertou em
fazer essa PEC alterando o regulamento do purgatório. O critério é simples: uma
olhadinha no whatts e face. E, bingo. Vai para o fogo do inferno!
George
Steiner bem dizia: tornamo-nos a civilização pós-verbo. A banalização da
linguagem, por meio das redes sociais, corrompe a ideia da verdade. O limite do
que é socialmente aceito é colocado cada vez mais longe. O que é verdadeiro?
Não há mais critérios. O que se pode dizer? Tudo, porque limites já não há.
A
era da técnica e das redes sociais, que prometiam a democratização da
informação, desenvolveram um vocabulário próprio; estabeleceu-se um novo jogo
de linguagem. No lugar do paraíso da horizontalidade, o inferno da barbárie
interior que se exterioriza. (“Hipocrisia, que falta você faz”, dizHélio
Schwartsman.) Será que a blogueira que comemorou a morte do neto de Lula
externaria o pensamento na fila do banco?
No
princípio era o Verbo. E no fim, o que será? No final era o whattsapp? O
facebook?
Nenhum
homem é uma ilha. A morte de todo ser humano diminui a nós, que somos parte da
humanidade. Talvez as palavras, sempre as palavras, de John Donne nunca tenham
sido tão urgentes.
Mas
um alerta: não pergunte, afinal, por quem os sinos dobram. A resposta pode vir
pelo WhatsApp.
(Pergunto
mais uma vez aos macartistas que recusam as regras do jogo de linguagem da
decência e aderem ao jogo das redes, e já têm – sempre – comentários prontos:
senhoras e senhores, perdemos todo senso de decência?)
Post
scriptum: gesto humano foi, dentre outros, o demonstrado por Gilmar Mendes,
conforme noticiou Mônica Bergamo (aqui). Também me emocionei quando li a
matéria de Mônica. E entendi melhor ainda a minha emoção anterior.
*Lenio Luiz Streck é jurista,
professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito.

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