A
situação de desagregação da República de Weimar e a crise socioeconômica
profunda da Alemanha do final dos anos 1920 sinalizavam a possibilidade do
surgimento de um regime voltado para a destruição das conquistas civilizatórias
e humanísticas, ao estilo do que ocorrera na Itália no princípio da década, com
a assunção ao poder do falastrão fundador do fascismo italiano, o antigo
ex-socialista Benito Mussolini.
Em
1930 ele escreveu um pequeno conto intitulado “Mário e o Mágico”.
Thomas
Mann, literariamente, buscou compreender os aspectos essenciais de um povo
trabalhador que concordasse em se submeter a líderes ridículos, imorais e
oportunistas, assim como os mecanismos com que esses líderes espúrios logravam
o domínio das massas. Sobre o conto nos confessa o próprio autor: “A história
se inclina sobre a psicologia do fascismo e também sobre a psicologia da
liberdade que com sua doutrina de boa vontade, coloca-se em estado de
inferioridade diante da inabalável resolução animalesca e dominadora do
adversário, do líder”.
Ao
chegar a um balneário italiano em férias com sua família, o narrador alemão
descreve a atmosfera à qual, diferentemente daquela por ele conhecida no
passado do povo italiano, faltava inocência, “pois havia opressão demais”. Os
italianos da elite haviam se transformado em um público que vigiava demais,
muito altaneiro, que fingia diante de si mesmos e dos estrangeiros um porte que
não possuía e vivia em constante estado de alerta, como para identificar
possíveis inimigos.
“Não
tardamos a entender que se tratava de política, que a ideia de nação estava em
jogo. Efetivamente a praia formigava de crianças e jovens vestidos com símbolos
patrióticos, o que não deixa de ser um fenômeno anormal e aflitivo. ”
“Dizíamos
que essas pessoas atravessavam um período análogo a uma doença.” De todo modo o
narrador e sua família, por falta de opções de Torre de Venere, decidiram
estarem presentes num teatro onde se apresentaria um mágico. Aliás, ao que tudo
indicava, a maioria das pessoas iria à apresentação. Os estrangeiros e a elite
do local muito bem acomodados em cadeiras e os populares dos locais,
normalmente servidores do turismo, acotovelavam-se em pé.
O
Mágico tão aguardado será a figura central; ele é um italiano autoritário
ilusionista e hipnotizador de audiências. Na plateia, de pé, teremos o outro
protagonista, Mário, um digno trabalhador de um restaurante, que, como veremos,
contra sua própria vontade, terminará se submetendo no palco, sendo dominado e
rapidamente reduzido a uma marionete do Mágico prestidigitador.
“Il
Cavaliere Cipola”, era o Mágico, ostentava o mesmo título pelo qual o próprio
Mussolini, o Mito, gostava de ser chamado. Cipola é o “moderno domador das
multidões, homem de vontade e ação, cuja astúcia e energia estavam inteiramente
a serviço do mal”.
Para
quem se designa como um Ilusionista a verdade será simplesmente um parâmetro
que nada significa, apenas sua versão de uma ficção mal-intencionada importa,
versão que ele deseja impor a todos os que o assistam.
É
claro que Cipola evita submeter os turistas e a aristocracia presentes à Torre
de Venere ao seu controle e caprichos; serão apenas a audiência que ele deseja
que apreciem e aplaudam o seu domínio sobre as massas. Os esforços de
amestrador são dirigidos aos espectadores locais, aos estudantes e aos
trabalhadores braçais do balneário.
O
narrador não se confunde com a aristocracia e a elite italiana presente. Sente-
se profundamente incomodado com o acanalhamento de Cipola e se questiona: “Sob
o regime de hipnotizadores da vontade das pessoas, de manipuladores que tornam
homens livres em marionetes, qual a margem de liberdade que nos é concedida? ”
O
mal-estar, que ele e as poucas pessoas pensantes da plateia, vai se agravando
até o limite do intolerável, ao mesmo tempo em que a grande plateia se deixa
encantar com as manipulações que Cipola realiza com eles próprios. Aplaude,
vibra, se entregam ao manipulador.
Cipola
falava bem sem interrupção, mas tudo o que diz são expressões vagas,
presunçosas, frases de propaganda, sem a mínima consistência. Interrogava
pessoas, mas seus cumprimentos tinham qualquer coisa de zombador e degradante.
Dizia: “A faculdade de desembaraçar-se de si próprio, de torna-se instrumento,
de obedecer, no sentido mais absoluto e mais perfeito da palavra, era o inverso
do outro poder, da faculdade de querer e comandar.”
Para
Cipola, assim como para os exterminadores da liberdade, “comandar e obedecer
constituem um só princípio, uma identidade absoluta.” Assim como a ideia de
povo e do chefe.
Il
Cavaliere Cipola tinha o hábito de escolher uma pessoa por noite e torna-la seu
alvo. “Mas suas indiretas deixavam transparecer um rancor para com os demais
humanos, que nada possuía de fingido. ” Fixava seus olhos no vazio, e exclamava
uma mentira suprema: “Todo mundo sabe escrever e ler na Itália, cuja grandeza
não oferece nenhum asilo à ignorância e às trevas. ”
Obriga
diversos jovens a papéis humilhantes, embora o auge seja deixado para o final,
quando uma catástrofe irá se tornar inevitável. “A alma não pode viver sem
querer, não querer fazer coisa alguma é insuficiente para preencher uma vida,
e, logo, não querer alguma coisa permite que outra vontade se imponha”, infere
o narrador.
Afinal,
ser Ninguém é pior que ser Bom ou Mau. Ser Ninguém é o adubo preferido do
fascismo.
Mário,
um dos escolhidos na plateia, sobe ao estrado. Sob o estalar do chicote do
prestidigitador, primeiro é obrigado a reproduzir a saudação faccio- romana, o
braço erguido e a mão estendida. Chamado por Cipola de Ganimedes (o camponês
grego escolhido por Zeus para ser seu pederasta na mitologia), Mário é levado a
beijá-lo próximo da boca na presença da própria noiva.
“Eu
o amo, beije-me, ordena o corcunda Mágico”. E Mário o faz, com uma expressão
estúpida de felicidades. Cipola sorri, brutal, cruel, antes de estalar
novamente o chicote despertando Mário do transe.
Quando
desce do estrado, ouvem-se dois tiros. Mário “não tinha outra saída para
escapar à humilhação e reencontrar sua própria dignidade a não ser matando
Cipola”.
Um
fim impressionante, funesto, contudo, uma libertação, nos diz o narrador. Mas
ao princípio da narrativa, Mann de certa forma, antecipara o final. “As
crianças, graças a Deus, não compreenderam onde terminava o espetáculo e onde
começava a catástrofe, e nós as deixamos sob a ilusão de que tudo havia
teatro”.
Pois
não fora teatro, mas, como o próprio conto “Mário e o Mágico”, uma imitação da
vida, um simbolismo da dominação e da submissão do ser humano sob o fascismo.
Ao mesmo tempo o momento do sacrifício, nos tiros que saem da arma de Mário sua
possível ressurreição, na morte do prestidigitador.
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