No
fim da manhã desta quarta-feira (30/1), o presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Dias Toffoli, permitiu que o ex-presidente Lula deixasse a
prisão e fosse ao enterro de seu irmão Vavá – marcado para ocorrer às 13h, em
São Bernardo do Campo (SP). Antes disso, no entanto, a Justiça Federal da 4ª
Região proibiu o ex-presidente de ir velar o irmão, atendendo a pedidos do
Ministério Público Federal e da Polícia Federal.
Com
a negativa, essas instituições negaram a Lula um direito fundamental de
qualquer preso, previsto na Lei de Execução Penal, afirmam especialistas
ouvidos pela ConJur. Com isso, colocaram em xeque o Estado Democrático de
Direito no Brasil, acusam.
A
PF e o MPF manifestaram-se contra o pedido de Lula ir ao enterro de Vavá, que
morreu na terça (29/1). Segundo o superintendente regional da PF no Paraná,
Luciano Flores de Lima, que assinou o parecer, os helicópteros que poderiam ser
usados para transportar o ex-presidente estão atendendo às vítimas do
rompimento da barragem da Vale em Brumadinho (MG). Ele também disse que Lula
poderia fugir ou ser resgatado por correligionários — embora não tenha
demonstrado indícios concretos de que isso possa acontecer.
Na
madrugada desta quarta, a juíza federal Carolina Lebbos, da 12ª Vara Criminal
em Curitiba, negou o requerimento de Lula. No despacho, ela afirma que a
decisão final cabe à Polícia Federal, que alegou dificuldades logísticas para
fazer a viagem. A defesa recorreu, mas, com o mesmo argumento, o desembargador
de plantão do TRF-4, Leandro Paulsen, manteve a proibição. Paulsen também
considerou o risco à segurança de Lula e à ordem pública, alegando haver
possibilidade de confronto entre apoiadores e detratores do ex-presidente — de
novo, sem demonstrar indícios concretos que demonstrem essa possibilidade.
Lula
está preso desde 7 de abril do ano passado por ter sua condenação no caso
confirmada pelo TRF-4, que impôs pena de 12 anos e 1 mês de prisão pelos crimes
de corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá (SP).
Direito fundamental
O
artigo 120 da Lei de Execução Penal estabelece que “os condenados que cumprem
pena em regime fechado ou semiaberto e os presos provisórios poderão obter
permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer
falecimento ou doença grave do cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou
irmão”. O parágrafo único do dispositivo determina que “a permissão de saída
será concedida pelo diretor do estabelecimento onde se encontra o preso”.
Dessa
maneira, a Justiça não poderia negar que Lula velasse o irmão, afirmam
especialistas. O criminalista José Roberto Batochio, um dos responsáveis pela
defesa do ex-presidente, diz que esse é um direito assegurado aos detentos.
“Não é que o juiz poderá conceder o direito de o preso ir ao enterro de um
parente. É o preso que poderá ir se quiser”, afirma.
Negar
essa medida a um encarcerado fere o princípio da dignidade da pessoa humana,
opina o advogado Luís Guilherme Vieira. Já o professor de Processo Penal da USP
Gustavo Badaró ressalta que o direito de o detento ir ao enterro de um parente
não é uma discricionariedade do diretor do presídio ou do juiz. Ou seja: se
morreu cônjuge, companheira, ascendente, descendente ou irmão do preso, ele
pode automaticamente ir ao sepultamento, salvo em situações muito excepcionais.
Trata-se
de um direito, não um benefício ou regalia que o juiz ou a burocracia da
administração penitenciária concedem a presos conforme a conveniência de cada
um, afirma o professor de Direito Penal da UFRJ Salo de Carvalho. É possível negar
essa saída temporária, ressalva, mas desde que ela seja fundada em argumentos
plausíveis.
“É
possível negar o pedido, mas da forma como fizeram com Lula é cruel, desumano e
inadmissível. Fere de morte a Lei de Execução Penal”, declara o criminalista
Alberto Zacharias Toron.
O
problema, segundo Luís Carlos Valois, juiz da Vara de Execução Penal do
Amazonas, é que os detentos não são vistos como sujeitos de direito, e sim como
objetos. Isso faz com que os direitos deles sejam sistematicamente negados pelo
Estado.
“O
desrespeito aos direitos do preso é endêmico, um costume judicial brasileiro,
que promove a ausência total de cidadania dentro de uma instituição pública,
obviamente favorecendo o aumento da criminalidade e a violência dentro do
sistema prisional”, analisa Valois.
Para
Aury Lopes Jr, advogado criminalista e colunista da ConJur, o direito de
sepultar o irmão não tem relação com a identidade do preso. "Trata-se de
um direito assegurado a todo e qualquer preso submetido ao regime fechado ou de
prisão cautelar, para o Lula ou para qualquer outra pessoa".
Sem fundamento
Para
além da questão de mérito, os fundamentos usados pela PF, pelo MPF e pelo
Judiciário para negar o direito a Lula também são insuficientes. Dificuldades
logísticas, ou um suposto risco de revolta popular não podem impedir a
concessão de um direito previsto em lei, avaliam os especialistas. Esse, aliás,
foi um dos argumentos do ministro Toffoli para autorizar Lula a velar o irmão.
“Para
quem quer pretexto, qualquer pretexto é pretexto”, ataca José Roberto Batochio,
apontando que o PT colocou um helicóptero à disposição de Lula.
Luís
Guilherme Vieira afirma que “se o Estado não tiver condição de levar um preso
de um lugar A a um lugar B, está falido”. Aury Lopes Jr concorda, e classifica
o argumento como inadmissível. "É impensável que o Estado brasileiro não
tenha condições materiais de garantir que um ex-presidente da República vá ao
enterro do irmão".
Gustavo
Badaró diz que as justificativas usadas para proibir Lula de deixar a prisão
não são razoáveis. Para o professor, as dificuldades são contornáveis.
Bastaria, por exemplo, determinar que, durante certo período, o velório ficaria
fechado à visitação do público. E proibir que houvesse presença da imprensa ou
manifestação pública do petista, como Toffoli ordenou.
Ainda
que não houvesse helicópteros da PF à disposição, essa não é a única
alternativa de transporte possível, destaca Salo de Carvalho. Nesse caso, o
juiz poderia proceder como na saída temporária — autorizando que Lula fosse ao
velório e fixando um prazo para seu retorno à prisão.
Cartas na manga
Segundo
Carvalho, a ordem pública tornou-se um "argumento coringa" para negar
pedidos de quaisquer tipos. No caso de Lula, ela foi usada com base em
elementos vagos e imprecisos, "de duvidosa validade constitucional",
afirma o professor da UFRJ.
E
o fundamento do risco à segurança é “falacioso”, continua Salo de Carvalho. “O
juízo sobre eventual risco cabe a quem fez o pedido. Trata-se de uma evidente
inversão lógica (e por que não também ideológica?): restringe-se um direito
(saída) com base na tutela de outro direito (à segurança) daquele que demanda.
Visão no mínimo paternalista e que não se harmoniza com a estrutura dos
direitos individuais da Constituição”.
Alberto
Toron critica o alegado risco de fuga. “As razões invocadas refletem um
comodismo incomparável com o direito estipulado em lei. Ademais, mal escondem a
irrazoabilidade diante do fato de que ele havia se apresentado para o
cumprimento da pena. Portanto, o alegado perigo de fuga é, no mínimo, risível.”
Nada novo
Luís
Carlos Valois, que lida com esse tipo de situação todos os dias, diz não estar
surpreso com os posicionamentos da PF e do MPF. Para o magistrado, isso “é
resultado do desvirtuamento do sistema, em que os órgãos repressores ou
acusadores se colocam como inimigo da pessoa que responde a um processo,
estigmatizando o cidadão, que nada mais é do que um cumpridor de uma pena legal,
e agravando a violência estatal”.
Ainda
assim, Valois lamenta que o Judiciário aceite com frequência esse tipo de
orientação, já que seu papel deveria ser proteger o cidadão dos excessos do
poder punitivo do Estado. “Com o Judiciário acatando as opções administrativas
da polícia, a pessoa que cumpre pena fica totalmente desamparada.”
Nem na ditadura
José
Roberto Batochio lembra que nem na ditadura militar negaram que Lula deixasse a
prisão para ir ao enterro de um parente — no caso, a mãe. Em 1980, Lula era
presidente do sindicato dos metalúrgicos do ABC Paulista e foi preso por
comandar uma greve geral. Quando sua mãe morreu, ele estava preso, mas o então
delegado Romeu Tuma autorizou que ele fosse ao enterro, desde que não falasse
com a imprensa e voltasse à noite.
Na
visão de Batochio, a proibição de Lula ir velar o corpo de Vavá é sintoma de
que o Estado Democrático de Direito "está naufragando no Brasil".
“Todos os brasileiros que prezam as liberdades, as conquistas civilizatórias de
nosso ordenamento jurídico devem se preocupar muito, eis que desponta uma nova
forma de arbítrio, que é o arbítrio da burocracia.”
Para
Toron, o episódio é "a antítese do Estado Democrático de Direito".
Luiz Guilherme Vieira concorda: “A decisão corrói o Estado Democrático de
Direito. Entristece qualquer povo, em qualquer lugar do mundo. A questão não é
Lula. Ele não pode ter mais direitos ou menos. É um cidadão como outro
qualquer”. Já Badaró deixa claro que, em um Estado Democrático de Direito, é
“muito grave” negar um direito fundamental.
Ficção
Formalmente,
o Brasil continua sendo um Estado de Direito. Na prática, contudo, não é assim,
afirma Valois. “Sobra um Estado que se diz de Direito, assim em letra
maiúscula, com autoridade, autoritarismo e força, mas não resta nada de um
estado de direito, assim com letra minúscula, em que o estado de direito fosse
um fato, um princípio a ser respeitado pelo Estado de Direito, governo no
caso.”
Salo
de Carvalho diz que a negativa não surpreende, pois esse tipo de decisão é
“espantosamente freqüente”. Assim como é frequente a violação da legalidade no
sistema penitenciário, geralmente decorrente da omissão do Executivo e com a
conivência do Judiciário, destaca.
“Nosso
sistema penitenciário agoniza há décadas. E é a análise do sistema, como um
todo, e da situação de todos os presos, que deve ser confrontada para
compreender o que revela do nosso Estado Democrático de Direito. Decisões
isoladas, como esta em questão, são representativas, logicamente, e dizem muito
do nosso sistema punitivo. Mas invariavelmente servem apenas para reforçar um
debate pontual. E a grande massa carcerária, que cumpre sua pena em condições
miseráveis, segue esquecida”, lamenta o professor da UFRJ.
Aury
Lopes Jr acrescenta que o pedido de habeas corpus deveria ter tramitado muito
mais rapidamente. "No fundo, situações assim reforçam a crítica de que
está existindo, sim, lawfare no caso Lula, incompatível com o que se espera dos
órgãos que integram o sistema penal em um Estado democrático de direito. É
realmente lamentável".
Sérgio Rodas é
correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2019-jan-30/justica-nao-proibir-lula-ir-enterro-irmao
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