“Não
sei, só sei que foi assim.” A cada causo narrado por Chicó, o anti-herói
mitômano criado por Ariano Suassuna no Auto da Compadecida, a lorota da vez é
invariavelmente arrematada com esse espirituoso bordão. Na falta de explicação
para os devaneios que gosta de contar, o personagem encerra a discussão com um
recurso tão fácil quanto ingênuo: o bom e velho “porque sim”. E ponto.
Chicó
parece ter passado uma temporada na 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável
pelos processos da Lava Jato. Na sentença condenatória expedida pela juíza
Gabriela Hardt na última quarta-feira, 6 de fevereiro, é notável a influência
de Chicó. Nas mais de 200 páginas que compõem a condenação, o personagem da
obra mais famosa de Ariano Suassuna paira como uma espécie de teórico de
referência, figura que a ministra Damares chamaria de mestre bíblico.
No
ofício ministrado por Chicó, Gabriela parece ser aluna aplicada. De outra maneira,
como justificar que o ex-presidente Lula seja condenado mais uma vez sem ato de
ofício? Ou seja: como condená-lo como responsável máximo pela organização
criminosa, chefe da quadrilha, sem localizar no tempo e no espaço um ato
criminoso: uma negociação, um vídeo em que ele aparecesse pedindo dinheiro, um
áudio em que Lula fosse flagrado exigindo a contratação de algum executivo que
mais tarde lhe serviria de laranja, uma prova de que um contrato feito em 2009
entre Petrobras e construtora só existiu para que a mesma construtora pudesse
devolver um pixuleco ao ex-presidente, dois anos depois, na forma de uma
reforma ou uma cozinha? “Não sei, só sei que foi assim”, repete a sentença.
Algumas
perguntas são inevitáveis ao término da leitura da sentença. João Grilo, o
amigo de Chicó, levantaria a sobrancelha, desconfiado. “Mas como foi isso?”,
ele perguntaria. “Não sei, só sei que foi assim”, responderia a juíza.
Questão 1 – Gabriela Hardt
estudou as 1.643 páginas apresentadas pela defesa do ex-presidente em 7 de
janeiro?
Nada
impede que a juíza tenha lido 55 páginas por dia nos 30 dias que utilizou para
dar conta do serviço. Pouco mais de 70 páginas diárias se formos descontar os
fins de semana. Ou cerca de 100, imaginando que os últimos cinco dias foram
dedicados à escrita. O que suscita dúvida é se ela levou em consideração o
conteúdo apresentado pela defesa e tomou alguma medida para rever ou reformar a
própria tese. Ou desprezou todo o conteúdo apresentado pela defesa como fez com
um dos laudos ali anexados? “Não sei, só sei que foi assim.”
Questão 2 – Léo Pinheiro
contradisse João Aldemário em alguma delação?
Pegadinha
do Mallandro! Léo Pinheiro e José Aldemário são a mesma pessoa. Rá! Isso não
impediu que, na página 89, a magistrada perpetrasse a seguinte sentença:
“Embora a defesa de Luiz Inácio Lula da Silva tente diminuir a credibilidade
dos depoimentos prestados por colaboradores e pelos co-réus Léo Pinheiro e José
Aldemário, é fato que tais depoimentos são corroborados por relatórios de auditoria
e diversos outros documentos e depoimentos.” Como foi possível desdobrar um
único delator em dois? “Não sei, só sei que foi assim.”
Questão 3 – Como é possível
condenar alguém por ser chefe da quadrilha sem encontrar um único “ato de
ofício” que confirme sua participação criminosa?
Elementar,
meu caro leitor. É só botar banca de detetive sabichão, de cachimbo no canto
dos lábios, e emular a arrogância de Sherlock Holmes. Neste sentido, nada mais
convincente do que dizer que o presidente “não tinha como não saber”, como
costumam repetir os promotores do Ministério Público Federal. “Não vislumbro
configurado o ato de ofício do Presidente da República neste agir”, escreve a
juíza na sentença, “pois os citados favorecimentos ao Grupo Odebrecht era (sic)
algo indiretamente realizado em razão do poder exercido pelo réu.” Ou ainda:
“Filio-me à posição que entende que a identificação de tal ato não é necessária
para a configuração do delito”. Então tá. Se você é presidente, não precisa
oferecer nada nem pedir nada. A corrupção acontece à sua revelia, como passe de
mágica. As vantagens indevidas são trazidas por renas de nariz vermelho e
depositadas ao pé da lareira sem a necessidade sequer de redigir uma cartinha
pro Papai Noel. Como? “Não sei, só sei que foi assim.”
Questão 4 – Se não tem
Petrobras, por que Curitiba?
Não
existe nada que indique relação entre o dinheiro utilizado pelas construtoras
Odebrecht e OAS nas reformas no sítio de Atibaia e sua origem ilícita em
contratos superfaturados da Petrobras. Nada. E, sem relação com a Petrobras,
não é a 13ª vara criminal a instância adequada para julgar o caso. Nessas
horas, o que faz um bom roteirista? Apresenta dois fatos isolados em sequência,
de preferência com a mesma trilha sonora, para mostrar causalidade entre eles.
Assim, contratos firmados entre Odebrecht e Petrobras em 2009 se transformam em
combustível para novas denúncias dez anos depois. Como se contratar a
Odebrecht, uma das maiores empresas do país, fosse improvável na ausência de
propina. Ou como se o superfaturamento desses contratos não pudesse ter
beneficiado executivos da própria empreiteira ou outros membros do governo que
não o réu. Como provar que as reformas no sítio foram pagas com dinheiro
público, desviado da Petrobras? “Não sei, só sei que foi assim.”
Questão 5 – Por que
magistrados de Curitiba e do TRF-4 fazem a egípcia sempre que organismos
internacionais como a OEA e a ONU manifestam sua preocupação em relação às
violações praticadas no julgamento do ex-presidente?
“Não
sei, só sei que foi assim. Podemos mudar de assunto?”
Você
pode não acreditar no Lula e em seus advogados. Você pode não gostar do Lula
nem de seus advogados. Quando a Justiça desconsidera provas pelo simples motivo
de terem sido produzidas pela defesa, quando um juiz acusa a defesa de impor
recursos demais para atrapalhar a condenação do réu, quando uma juíza
substituta se apressa para publicar uma sentença em tempo recorde e condenar o
réu antes que seja substituída no cargo ou antes que o STF se pronuncie sobre
prisão em segunda instância, quando nem o número e as identidades dos delatores
são conhecidos com exatidão pela instância julgadora, quando a ânsia por
condenar é maior que a razoabilidade da acusação e quando tudo isso acontece ao
mesmo tempo num processo contra um ex-presidente da República, então a vítima
não é o Lula, o PT ou a esquerda. Somos nós.
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