Certamente,
são poucos os que hoje ostentam certezas sobre a conjuntura que atravessamos no
Brasil, e quem sabe no mundo. Mais do que nunca, o pensamento de Romain
Rolland, retomado por Gramsci, pessimismo da inteligência, otimismo da vontade,
torna-se útil, necessário. Une a necessária capacidade de analisar o que nos
cerca com todo rigor com a indispensável interferência da política, da ação
para enfrentar os obstáculos que se colocam à nossa frente. A democracia sofreu
uma grave derrota nas últimas eleições para uma candidatura que em nenhum
momento escondeu suas predileções autoritárias extremadas. Uma derrota que
atinge todos os democratas e, de modo especial, a esquerda, que precisa se
armar teoricamente para enfrentar os novos desafios.
Não
pretendo oferecer respostas. Nem analisar a conjuntura propriamente. Apenas
refletir um pouco sobre esse quadro, indagar sobre ele, quem sabe dividir
perplexidades, fugindo um pouco ao figurino da esquerda, que é o de sempre
apresentar o caminho a ser trilhado, o que não deixa de ser necessário. Essa
tarefa tem sido cumprida, mal ou bem, por tantos outros atores. Reencontrei-me,
para isso, com Marilena Chaui, cujas lições são sempre valiosas. Com dois
livros, Contra a Servidão Voluntária e Conformismo e Resistência. Na escuridão,
a gente vai tateando e de repente encontra alguma luz que nos orienta. Vinha me
debatendo, volto ao tema, me perguntando sobre como foi possível uma vitória
como a de 2018 de um candidato manifestamente a favor da ditadura e de seus
assassinos, os torturadores. Como tornou-se possível um político com tais
ideias chegar ao poder pelo voto, pela livre manifestação do povo brasileiro?
Claro,
o leitor pode objetar que houve um processo político influenciado de modo
decisivo por fakenews, uma facada suspeita pelo meio, tantas outras coisas que
podem indicar uma eleição fraudada, como alguns apontam. Mal ou bem, no
entanto, o voto se deu, e o adversário venceu. Houve manifestação popular pelo
voto. E pela poderosa luneta de Marilena Chaui, dou de cara com La Boétie e seu
texto “Discurso da servidão voluntária”, um panfleto escrito entre 1552 e 1553,
capaz de lançar outro olhar sobre a relação entre os dominados e dominantes.
Nossa mirada é sempre condescendente com os tiranizados, compreensiva, cheia de
atenuantes. Nunca dividimos responsabilidades com os que foram derrotados. Vou
seguir Marilena Chaui, sem os formalismos das citações literais.
O
“Discurso da servidão voluntária” é desconcertante.
Filosoficamente
desconcertante.
Colocados
diante de um enigma: nascemos livres e servos de ninguém e trocamos a liberdade
pela servidão.
E
o pior: sente-se que não perdemos a liberdade, mas ganhamos a servidão.
La
Boétie é cruel com os que exercitam a vontade de servir.
Como
Um, dotado de apenas dois olhos, duas mãos, dois ouvidos e dois pés,
“frequentemente um homúnculo covarde e não um Sansão ou um Hércules”,
encontra-se provido de milhares de olhos e ouvidos para espionar, de milhares
de mãos para pilhar, de milhares de pés para esmagar?
Onde
obteve esse corpo gigantesco?
E
vem a resposta, sem arrodeios:
“Sois
vós quem lhe dais todos os órgãos de que precisa para vos manter sob seu
poderio, para vos destruir e às vossas famílias, para pilhar vossos bens e
derramar vosso sangue em guerras que o fortalecem para vos enfraquecer. É o
povo o gerador do soberano que o aniquila”.
Duro
ouvir isso, não?
Ainda
no esforço para responder ao enigma, La Boétie afirma que os homens não
acreditam estar alienando suas vidas a um outro.
Acreditam
que estão conferindo poder a si próprios.
Cada
um, do mais alto ao mais baixo, deseja ser obedecido pelos demais e, portanto,
ser tirano também.
A
vontade de servir é o nome da vontade de dominar.
A
vontade de servir engendra uma sociedade tirânica de ponta a ponta.
A
proteção do tirano é dada pela sociedade que o deseja porque deseja tiranizar
também.
Mas
La Boétie compreende que o povo é ludibriado pelo seu desejo servil, pelas
artimanhas religiosas e os ardis legais que produzem ilusões.
Só
tardiamente reconhece que aceitou servir porque imaginou ser servido.
E
aí, consciente de sua fraqueza, faz o que lhe ordenam e prefere deixar o tirano
onde está a desalojá-lo, ali talvez ele possa fazer algum bem. Frequentemente
se conserva iludido pelo tirano, cuja astúcia está em deixar aos demais a
prática da violência visível e reservar para si tudo quanto possa parecer
benefício.
La
Boétie não é condescendente, como se poderia imaginar, com a classe dominante,
a escória, os que são movidos pela ambição e avareza, os que fazem as leis,
vigiam e punem, os poderosos que rapinam, torturam, destroem, esmagam e oprimem.
Os que vivem em torno do tirano, os tiranetes, os que tentam adivinhar seus
pensamentos, que avisam quem o trai, e recuando mais e mais de sua liberdade,
abraçam a servidão.
Marilena
Chaui lembra que a tradição do pensamento político nos acostumou com a ideia de
que a alienação é uma determinação própria dos explorados. La Boétie, ao
descrever os amigos do rei, inverte essa suposição.
E
por que os homens se dão um senhor?
Como
se enraizou tão antes essa obstinada vontade de servir?
Eles
o fazem porque não desejam a liberdade e não a desejam porque ela lhes parece
“demasiado fácil”.
A
renúncia à liberdade é gênese simultânea da vontade de servir e do poder do Um,
renúncia produzida por uma divisão no interior da vontade, cindida entre o
desejo de liberdade e o desejo de servir.
Dar
a palavra a Marilena, mais do que já o fiz, porque uma síntese:
–
Ter o corpo e o espírito dos homens – eis o desejo do tirano; ter parte no
mando e nos espólios – eis o desejo dos grandes; ter segurança, crenças e bens
– eis o desejo do povo. Todavia, porque nenhum desses desejos pode ser
plenamente satisfeito no real, a servidão voluntária produzirá um bem
imaginário que possa figurar de maneira fantástica o preenchimento do desejo de
servir: a figura do Um.
O
mais desconcertante no “Discurso da servidão voluntária” é que ele não oferece
um programa de ação para a luta contra a tirania. Só há uma proposição: perante
o tirano, La Boétie conclama que não se lhe dê o que ele pede, e ele então
cairá. Não propõe resistência passiva ou desobediência civil. Propõe que não
seja reiterado o ato gerador do tirano. Não servir é resgatar aquilo que é
contrário à servidão: a igualdade dos amigos, aos quais a natureza deu o dom
precioso da fala.
O
“Discurso da servidão voluntária” pode assustar, e assusta. Porque nos afasta
de algumas ideias-chave a que nós, da esquerda, estamos acostumados, sobretudo
a de romantizar o popular, como se tal ator tivesse um caminho reto, ou como se
ele só eventualmente cometesse equívocos, sem que nos debrucemos sobre as
razões pelas quais o desejo de servir se sobrepõe ao desejo de liberdade.
Não
se analisa o caldo de cultura da sociedade, não se investigam as ambiguidades
do movimento popular, tratadas por Marilena Chaui em Conformismo e Resistência.
Não se discutem os erros dos partidos políticos, das chamadas vanguardas, que
se acreditam capazes de ensinar ao movimento popular o que fazer, às vezes
ignorando a cultura mais profunda de tal movimento, de modo especial suas
ambiguidades, como já dito.
Uma
derrota de tal envergadura, como a última, que não se analisa aqui, há de nos
fazer voltar à nossa história, e não só às muitas manifestações de rebeldia em
todo o país, mas às estratégias de sobrevivência do povo, suas ambiguidades,
quem sabe sua servidão voluntária manifestada em nosso tempo, passados tantos
séculos do texto de La Boétie.
Quase
quatrocentos anos de escravidão deixam feridas abertas, e condicionam muito o
movimento das classes dominadas. A derrota foi eleitoral, e não se pode fugir
disso. Mas também cultural, simbólica, e pode ser que levemos tempo para
recuperar o terreno. Para tanto, teremos que desenvolver, e muito, o pessimismo
da inteligência e ir tateando no deserto para descobrir caminhos que nos levem
à conquista da hegemonia.
Seguramente,
não soubemos lidar com o fenômeno religioso, não obstante ser o PT, principal partido
da esquerda, originário também de comunidades eclesiais de base. Impossível ser
indiferente a um crescimento tão significativo das igrejas neopentencostais,
ser indiferente a uma movimentação do povo em direção a um abrigo. O mundo,
vasto mundo, convida-nos sempre a entender as ambiguidades, como convida
Marilena Chaui a penetrar os terrenos da resistência, mas também os do
conformismo. Mas evito resvalar em temas específicos.
Marilena
Chaui é dessas figuras admiráveis, pela capacidade de reflexão e pela
disposição de luta, de ser uma intelectual sempre presente na arena pública,
que tem posição, não se esconde, não tem medo do debate. Filosofa
politicamente, se é possível dizer assim.
Ao
trazer La Boétie à cena em seus estudos e em debates recentes, quer nos
alertar.
Chamar
para a história.
Escapar
do contingente, sem fugir dele.
Ela
já disse: encontra no pensamento filosófico uma trilha para enfrentar as
indeterminações e opacidades da ação, tanto a ação cotidiana quanto a ação
política e cultural. Ao trazer à luz com força, novamente, o “Discurso da
servidão voluntária” não está nos convidando à inação, ao contrário. Está
dizendo que é preciso conhecer mais nossa gente, ombrear-se com ela, travar a
luta político-cultural lado a lado com ela, sendo mestres e alunos, dirigentes
e dirigidos, que o exercício da política reclama reflexão, conhecimento,
teoria, sem o que não avançaremos na busca de hegemonia, não a do passado,
perdida, mas outra, a ser ganha pacientemente.
É
preciso compreender o quanto é necessário o mergulho no mundo da cultura, em
seu sentido mais amplo, antropológico, sempre, independentemente das flutuações
da conjuntura. Sem mudanças culturais, sem mudanças no coração e mentes do
nosso povo, não faremos voos consistentes. Ficaremos nos voos de galinha.
Referências bibliográficas
CHAUI, Marilena. Contra a
Servidão Voluntária. Homero Santiago (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora;
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013 (Coleção Escritos de Marilena
Chaui, 1).
CHAUI, Marilena. Conformismo e
Resistência. Homero Santiago (Org.). Belo Horizonte: Autêntica Editora; São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2014 (Coleção Escritos de Marilena
Chaui, 4).
* Emiliano José é jornalista e
escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda,
Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires –
Biografia (v. I), entre outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário