No
dizer de George Steiner “O Grande Inquisidor”, uma lenda contada por Ivan
Karamazov a seu irmão Aliocha, é prometeica quanto ao fincar os pés no passado,
permitir antever o futuro manipulável da sociedade de massas. Pois a
religiosidade utilitária aponta tanto para as recusas de liberdade real nas
sociedades modernas e pós-modernas, quanto para formas tão somente exteriores
das denominadas “democracias representativas”. Ao mesmo tempo, este capítulo
essencial de “Irmãos Karamazovi” prenuncia os regimes totalitários do século XX
e que ensaiam sua retomada no século XXI, como o controle do pensamento e o
prazer brutal das massas na Revolução Cultural chinesa, nas Danças de Nuremberg
nazista, no Estádio de Moscou stalinista.
Na
lenda, a aparição do Santo Inquisidor e o retorno de um Cristo redivivo ocorrem
na cidade de Sevilha, no auge da repressão do Estado atrelado à Igreja Católica
no século XVI.
Ela
segue sendo um sinal de alerta para as recusas de liberdade, para a invasão das
privacidades, para as parvoíces hipócritas, para as mentiras, que “viralizadas”
milhares e milhões de vezes, passam a ser são tidas como verdades.
Sinaliza
também a vulgaridade espantosa da cultura de massas, o consumismo desmedido, os
homens que buscam líderes, mágicos ou tiranos, até mesmo pastores religiosos
que retirem da mente dos rebanhos as reações de revolta contra as injustiças
sociais e a busca por liberdade.
O
velho empedernido, cruel condenador nos autos de fé que antecediam aos
assassinatos pela fogueira dos hereges, o Grande Inquisidor acusa Cristo de ter
superestimado a estatura do homem, sua habilidade em suportar o livre-arbítrio,
argumentando que “os homens preferem a calma bruta da escravidão”. Para o Inquisidor
os homens conhecerão a felicidade somente quando um reino perfeitamente
regulado for estabelecido sobre a terra, sob os auspícios dos milagres, da
autoridade da Igreja e da “mano militari” e do pão.
No
Inquisidor também se incorpora a ideia do Anticristo, a daquele que também
viveu no deserto, alimentou-se de gafanhoto e mel e ofereceu a Cristo a
tríplice tentação: os milagres, o pão e a autoridade, dos quais seriam
decorrentes as Igrejas e o Estado. Mas Cristo rejeitou, em nome da liberdade do
homem, todas as tentações. Se o corpo de Cristo tivesse descido da cruz ou se
Zózima, o starietz ( o padre asceta) do romance, não exalasse os odores da putrefação de seu cadáver, o homem
deixaria de ser livre, seria forçado pela evidência a crer, da mesma forma como
os escravos que obedecem ao poder da força e não por uma livre escolha.
Logo,
as Igrejas são as principais responsáveis por privarem os homens de sua liberdade essencial, interpondo entre
Deus e a agonia da alma individual, a segurança da absolvição e dos mistérios
dos rituais.
Se
por um lado, o Inquisidor era a seu modo autoritário um “progressista”, por
possuir uma crença radical no progresso humano através de meios materiais,
aliada a uma crença na razão pragmática,
com uma rejeição da experiência mística e umanuma total absorção pelos
problemas do mundo, a ponto de quase excluir Deus de seu Universo, por outro, o
Cristo dostoiévskiano não é um santo, mas
humano, profundamente humano, parafraseando Nietzsche.
Pois
Dostoiévski, além do Inquisidor, também traçou o retrato de “seu Cristo” na
lenda. A beleza e graça inefável são sutilmente evocadas em um Cristo redivivo
que perante o Grande Inquisidor nada responde nada fala. Esse silêncio, no
dizer de D.H. Lawrence, é um sinal de aquiescência, da humildade do artista em
contraposição à derrota da linguagem de seus seres polifônicos, como o
Inquisidor. Cristo se cala na contramão da polifonia humana!
E
o fulcro da lenda é a liberdade do homem. Homem que é completa e terrivelmente
livre para perceber o bem e o mal, optar por um deles e encenar sua escolha.
Toda
a ação ocorre em Sevilha na Idade Média, onde sob o comando do Grande
Inquisidor, acendiam-se fogueiras em glória a Deus e os hereges ardiam em “atos
de fé”.
Cristo
teria surgido dentre a multidão reunida na praça em frente à Catedral,
docemente, quase sem se fazer notar. No entanto, todos O reconheceram de
imediato. Ele caminha com um sorriso de compaixão infinita. Sobe os degraus da
igreja no momento em que trazem o caixão de uma menina de sete anos. A mãe
lança-se a seus pés e diz: ”Se és Tu, ressuscita-a”. Ele a contempla e apenas
diz “talita kumi”, levanta-te e anda, incontinente a morta levanta-se e sorri.
No meio da turba há agitação e choro.
Naquele
instante passa ao largo um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, rosto
ressecado, olhos cavados, o Grande Inquisidor. Ao entender a atitude de Cristo,
um brilho sinistro clareia seu olhar; ele aponta-O à guarda e ordena que O
prendam. Tão grande é seu poder, tal o medo de uma multidão acostumada à
submissão, que os esbirros prendem- nO sem nenhum trabalho. Como um só ser,
toda a multidão, esquecendo a quem louvava, inclina-se agora para o Cardeal que
a abençoa.
O
Prisioneiro é levado para a masmorra do Santo Ofício. À noite, o Inquisidor vem
só e com um facho de luz ilumina a Santa Face. “És Tu, não és? Cala-te, aliás,
o que poderias dizer? Não tens o direito a acrescentar uma palavra ao que
disseste outrora. Por que nos vieste estorvar? Amanhã Te condenarei e serás
queimado como o pior dos hereges e esse mesmo povo que hoje te beijava os pés,
trará a lenha em que arderás. Tens por acaso o direito de revelar um só dos
segredos do mundo de onde vens? Todas as revelações novas feririam a liberdade
da fé, pois pareceriam miraculosas; ora, tu punhas há quinze séculos essa
liberdade acima de tudo! Pois bem, viste os ‘homens livres’”, diz com sarcasmo.
“Isso
nos custou muito caro, mas levamos a cabo aquela obra em Teu nome; foram
séculos de grande trabalho para instaurar a liberdade, mas está feito. Tu me
olhas com doçura, sem mesmo fazer-me a honra de Te indignares! Mas saiba que
jamais os homens se sentiram tão livres como agora, pois sua liberdade eles a
depositaram humildemente a nossos pés. Só agora (com a Inquisição) que se pode
pensar na felicidade dos homens. Eles são naturalmente revoltados e, revoltados
podem ser felizes?”
“Tu
estavas advertido, conselhos não Te faltavam, mas não os levaste em conta,
rejeitaste o único meio de proporcionar felicidade aos homens. Felizmente, ao
partires, nos transmitiste Tua obra, concedendo-nos o direito de ligar e
desligar e, decerto, não podes imaginar em retirá-lo agora. Por que vieste nos
estorvar?”
“O
Espírito terrível e profundo da destruição e do nada falou-Te no deserto e as
Escrituras relatam que Te “tentou”. É verdade? … quem tinha razão: Tu ou aquele
que Te interrogava? Lembra-Te do sentido da primeira pergunta? Queres ir para o
mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que lhes causa medo…
Vês as pedras do deserto árido? Muda-as em pães e atrás de Ti, correrá a
humanidade como um rebanho dócil e reconhecido. Mas Tu não quiseste privar o
homem da liberdade e recusaste, estimando que ela era incompatível com a
obediência cobrada com pães. Replicaste que nem só de pão vive o homem, mas
sabes que em nome desse pão terrestre o Espírito da terra se insurgirá contra
Ti, lutará e Te vencerá. Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca
de seus sábios e de seus intelectuais que não há crime e, por conseguinte, não
há pecados, só famintos.”
Os
famintos, desiludidos, os desesperados “nos procurarão e depositarão sua
liberdade a nossos pés dizendo: ‘reduzi-nos à escravidão, mas alimentai-nos’.
Compreenderão que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são
irreconciliáveis, pois jamais saberão reparti-lo entre si. A impotência para a
liberdade ocorre por serem fracos, depravados, nulos e revoltados. As multidões
sendo fracas e, embora depravadas e revoltosas, tornar-se-ão dóceis.”
“Acreditarão
que, nós, seus pastores, somos deuses pondo-se sob nosso comando e reinaremos
sobre eles, os quais terão medo de serem livres. Mas lhes diremos que somos
Teus discípulos e reinamos em Teu nome. E esta, a mentira, será a origem de
nosso sofrimento.” “Não há para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente que
procurar um ser diante do qual se inclinar”.
“Para
dispor da liberdade dos homens é preciso dar-lhes paz de consciência… nisto Tu
tinhas razão porque o segredo da existência humana consiste não somente em
viver, mas ainda em encontrar um motivo pelo qual viver. Sem uma ideia nítida
de sua finalidade, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá embora
cercado por montes de pão. Esqueceste-Te de que o homem prefere a paz e até
mesmo a morte à liberdade de discernir o bem do mal? Não há nada de mais
sedutor para o homem que o livre-arbítrio, mas também, nada de mais doloroso.”
“Há
três forças que podem subjugar para sempre a consciência desse fraco revoltado:
o milagre, o mistério e a autoridade. Tu rejeitaste os três… sobretudo é o
milagre que o homem procura e como não saberia passar sem ele, forja novos, os
seus próprios, inclinando-se perante o prodígio dos magos, dos sortilégios de
uma feiticeira, ainda que sejam revoltados, hereges, ímpios confessos”.
“O
homem é mais fraco, covarde e vil do que pensavas. A grande estima que tinhas
por ele fez mal à tua compaixão. Que importa que no presente se insurja por
toda parte contra nossa autoridade e se mostre orgulhoso de sua revolta? É a
alegria infantil que lhes custará caro. Derrubarão templos e incendiarão a
terra. Mas perceberão, por fim, que são crianças estúpidas, fracas, incapazes
de se revoltarem por muito tempo”.
“Corrigimos
Tua obra baseados no milagre, no mistério e na autoridade. E os homens se
regozijaram por serem de novo levados como um rebanho e serem libertados do dom
funesto que lhes causava tormentos. Não tínhamos razão? Não era amar a
humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo, tolerar mesmo o pecado
de sua fraca natureza, mas com a nossa permissão?”
“Por
que vir agora entravar a nossa obra? Por que guardar silêncio com Teu terno
olhar? Eu não Te amo. Cada um de nós sabe com quem fala. Não estamos Contigo,
mas com Ele há muito tempo. Aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos
os únicos reis da Terra”.
“Amanhã,
queimar-Te-ei, pois ninguém mais que Tu mereceste a fogueira. Dixi”.
O
Inquisidor se cala, espera a resposta do Prisioneiro. Este se aproxima em
silêncio do nonagenário e beija-lhe os lábios. É toda sua resposta. O velho
estremece, seus lábios tremem, caminha até a porta e abre: “Vai-Te e não voltes nunca mais!” O
Prisioneiro sai.
Tal
qual na essência da profecia de Dostoiévski, os homens inclinam-se
voluntariamente aos seus guardiões espirituais, exceto um pequeno número de
rebeldes. “Mas podem os revoltados ser felizes?” Podem?
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