O
caminho de Jair Bolsonaro à presidência foi marcado por uma profusão de
impropérios e um desprezo tosco pelas instituições democráticas. O Supremo
Tribunal Federal não passou despercebido à metralhadora engasgada da
extrema-direita. Agora, seu papel está prestes a ser remodelado. No olho do
furacão, o Brasil.
Desde
sua instalação em 1891, o STF foi responsável por julgamentos históricos. Mas
seu protagonismo aumentou exponencialmente com o transmissão ao vivo das
decisões do Plenário, a partir de 2002. Ministros, então juízes, se tornaram
estrelas e passaram a encher a boca para ler seus votos, muitos deles
quilométricos e maçantes. Rompantes vergonhosos e arroubos de botequim se
transformaram em rotina entre os membros da Corte. A população, mesmo
embasbacada pelo juridiquês, passou a assistir à TV Justiça para ver o circo
pegar fogo.
Nós
apenas não percebíamos que isso vinha acontecendo, mas a função
contramajoritária – de defender os direitos das minorias, frear os excessos do
Estado e, muitas vezes, decidir contra a opinião pública – do Tribunal foi
enfraquecida na surdina, entre a poeira das togas e o café morno servido no
Salão Branco. De guardião da Constituição, o STF passou a se preocupar com o
sentimento social – expressão perigosa utilizada pelo ministro Luís Roberto
Barroso ao reescrever, sob o argumento da inconstitucionalidade, o Decreto de
Michel Temer que concedeu indulto natalino em 2017.
O
Supremo até que vinha bem na defesa dos direitos fundamentais – a eterna
batalha entre o núcleo duro do indivíduo x a intervenção do Estado. Estabeleceu
conceitos importantes para a compreensão do crime de racismo, declarou o
entulho autoritário condensado na Lei de Imprensa incompatível com a
Constituição de 1988, descriminalizou a antecipação terapêutica de partos de
fetos anencefálicos e permitiu as pesquisas com células-tronco.
A
guinada veio com o julgamento do Mensalão, a famigerada Ação Penal 470, que
escancarou os bastidores da corrupção sistêmica e, ao mesmo tempo, alçou o STF
a um pedestal para o qual não estava preparado e com o qual não soube lidar enquanto
instituição.
Nas
intermináveis sessões televisionadas, entre um chilique e outro do ministro
Joaquim Barbosa, o Supremo julgou com a faca no pescoço uma denúncia de
proporções inimagináveis, pela qual a procuradoria-geral da República pedia a
cabeça de figurões da política brasileira.
O
STF não estava acostumado à tamanha visibilidade, mas gostou e mandou para a
cadeia o alto escalão da República.
Então
veio a Operação Lava Jato, que não se limitou ao Supremo Tribunal Federal e
envolveu outros juízes e cortes – dentre eles Sérgio Moro e o Tribunal Regional
Federal da 4ª Região. Mas o Supremo, às vezes equidistante, sempre esteve lá,
altivo e pronto a reexaminar as decisões de outras instâncias. E, nesse meio
tempo, instigado pela função requentada de juiz criminal, concedeu autorização
para a execução de penas de prisão antes do final do processo, o que foi
reafirmado no julgamento do habeas corpus de Lula, em um momento crucial e
delicado da política brasileira.
Agora,
com Bolsonaro eleito e já planejando a transição do poder, o STF está acuado,
entre outras, pela declaração debochada de que, para fechá-lo, “basta um
soldado e um cabo”, e precisa definir a sua pauta enquanto órgão de cúpula do
Poder Judiciário: encampar a agenda de um governante avesso à reafirmação de
garantias democráticas inegociáveis ou assumir o protagonismo de instituição
responsável por frear os excessos estatais.
O
dilema da Suprema Corte já tem data. O presidente eleito pretende aumentar o
número de juízes de 11 para 21. Quer, a fórceps, “colocar lá dez do nível do
Sérgio Moro, para poder termos a maioria lá dentro”.
Como,
para Bolsonaro, o Supremo não passa de uma marionete e uma massa de manobra,
resta descobrir se o guardião da Constituição vai permanecer na zona de conforto
ou honrar a toga. Logo saberemos se temos juízes na nossa devastada Berlim.
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