A
coreografia atual de Jair Bolsonaro não deve confundir ninguém. Embora o novo
presidente tenha recebido o voto de 39% dos eleitores, a partir de 1 de janeiro
de 2019 o comando do Estado brasileiro estará nas mãos de uma articulação
política que jamais escondeu sua falta de compromisso com a democracia.
Parece
razoável prever que, ao longo de um mandato previsto para durar quatro anos, o
governo Bolsonaro tentará valer-se de todos os meios a seu alcance - legais e
paralegais - para percorrer um caminho clássico. Construir uma posição de força
e evitar de qualquer maneira um possível retorno pelas urnas do bloco político
que venceu as quatro eleições presidenciais anteriores, e deixou a campanha na
posição de única opção viável - em novembro de 2018, não custa sublinhar - a um
programa de extrema-direita que até agora nunca havia recebido o respaldo das
urnas brasileiras.
Embora
se diga convencido de que o país possui força institucional para enfrentar e
vencer iniciativas de natureza golpista, o historiador José Murilo Carvalho,
com estudos importantes sobre as Forças Armadas brasileiras, enxerga o governo
Bolsonaro nos seguintes termos:
"Serão
anos difíceis e haverá tentativas de introduzir, por lei ou decreto, medidas
que representem retrocesso democrático. A principal tarefa da oposição será
combater sem tréguas essas tentativas. Já será um ganho se chegarmos ao final
do primeiro mandato com instituições intatas e os valores preservados. Se
conseguirmos, nossa democracia terá passado num teste difícil e se fortalecido.
Se não, não." (Folha de S. Paulo, 30/10/2018).
A
historiadora francesa Maud Chirio, autora de A Política nos Quartéis, que se
especializou em pesquisas sobre a direita brasileira, está convencida de que
toda aposta numa conversão democrática de Bolsonaro não passa de uma tentativa
de autoengano, incompatível com o personagem real. Ela recorda que Bolsonaro
representa uma articulação civil-militar que nunca se limitou a simplesmente
fazer oposição aos sucessivos governos constituídos entre 1985 até 2018, mas
contestava de frente, de forma global, o regime democrático instituído nos
últimos 30 anos.
"Bolsonaro
representa um segmento que sempre rejeitou a República decorrente da
Constituição de 1988 e sua apologia da diversidade étnica e religiosa e do
pluralismo, " diz. (Ilustríssima, 4/11/2018). Na mesma entrevista ela
prevê medidas drásticas logo depois da posse: "MST e o MTST serão
declarados organizações terroristas. No começo de fevereiro, o PT vai ser
interditado. Haverá um expurgo na administração pública, que já está em
preparação. Só não vê quem não quer".
A
vitória do bloco político-militar que apoia Bolsonaro se fez sobre a ruína do
sistema político construído para abrigar a democracia brasileira de 1988 para
cá. Num ambiente regressivo do ponto de vista da democracia, o injusto
encarceramento de Lula em função de um triplex que nunca foi seu é um elemento
que estrutura toda paisagem política. Não custa lembrar que pode se mostrar
ainda mais hostil aos direitos da maioria de brasileiros e brasileiras em caso
de uma segunda condenação, tão ou mais frágil do que a primeira, em função do
sítio de Atibaia.
O
grande final da eleição de Bolsonaro constitui a presença de Sérgio Moro no
ministério. É uma tentativa de fechar uma situação inaceitável do ponto de
vista do Estado Democrático de Direito e naturalizar um outro país - o Brasil
sem Lula. Como a campanha de 2018 acaba de demonstrar, a exclusão de Lula -
principal responsável pela série inédita de quatro vitórias eleitorais
consecutivas de um partido de esquerda em eleições brasileiras - é percebida
pelo andar superior da pirâmide social como o principal fator de uma
estabilidade política favorável a suas conveniências e interesses que desde
2002 não tem maior poder de sedução junto ao povão. Se o tom espetaculoso das
operações contra corrupção fez a glória de Sérgio Moro junto a uma grande
parcela de eleitores, a capacidade de investigar, perseguir e manter Lula fora
de combate lhe dá autoridade única e intransferível no interior aos 1%.
Se
o guru econômico Paulo Guedes conquista as platéias presentes com as ofertas
relativas ao patrimônio público, Moro é indispensável para a sobrevivência do
governo Bolsonaro em sentido amplo, por quem já prendeu - e por quem poderá vir
a prender. Desde já, as pesquisas eleitorais confirmam que foi ele - mais do que
Bolsonaro - quem decidiu a parada, ao eliminar o inimigo principal antes que
pudesse chegar às urnas. O resto, relativamente, estava bem mais fácil.
"O
antipetismo radical e o conservadorismo moralista colocaram o capitão e o
magistrado no mesmo barco," observa o professor Fernando Limongi (Valor
Econômico, 10, 11 e 12/11/2018). Ele recorda que Moro já deixou claro seu apoio
às principais medidas de endurecimento da atuação policial, inclusive "ao
relaxamento do excludente de ilicitude", mudança que garante a impede a
investigação de crimes violentos - inclusive homicídios - cometidos por agentes
policiais no exercício da função. "Na chegada, mostrando disposição para
jogar para o time, perdoou Onyx Lorenzoni pelas propinas recebidas,"
observou Limongi, para acrescentar ainda: "Com certeza, (o deputado) não
será o único a receber o tratamento complacente, reservado aos amigos que,
imediatamente, deixam de ser brasileiros como os demais".
A
dificuldade para discutir o futuro brasileiro depois de 1 de janeiro de 2019 é
que ninguém pode prever o elemento químico fundamental da cena política - o
grau de resistência dos trabalhadores e da população explorada para enfrentar
ameaças e ataques a direitos, que incluem - agora ou depois - a reforma
trabalhista, o enfraquecimento da saúde e da educação como serviços públicos, a
repressão à liberdade acadêmica, o desmanche dos sindicatos e a informalização
absoluta das relações de trabalho. Este é o ponto de passagem obrigatório no
novo período.
Governos
que tem um DNA semelhante ao de Bolsonaro costumam repetir um mesmo percurso em
direção a regimes que se tornaram conhecidas como "ditaduras
híbridas". Isso porque permitem a convivência de determinadas franquias
democráticas com a preservação de um poder real - acima da soberania popular -
para impor a ordem e reprimir a população. Foi assim no Paraguai após o golpe
que derrubou Fernando Lugo, trazendo de volta uma ditadura oligárquica e
anti-popular. Nove anos depois do golpe que retirou Manoel Zelaya - ainda de
pijamas - do Palácio presidencial de Tegucigalpa, uma manipulação escancarada
impediu a vitória de uma frente eleitoral de oposição e o continuísmo do
candidato do grupo golpista. Com muitas variações mas semelhanças em pontos
essenciais, a história se repete na Turquia, na Hungria, na Polônia de nossos
dias.
Quatro
décadas depois de ter iniciado, na segunda metade dos anos 1970, a luta social
que desbravou o caminho para o mais prolongado período de liberdades públicas
de nossa história, Luiz Inácio Lula da Silva permanece, mesmo na prisão, como o
fio condutor de dois momentos distintos. Vem daí a importância da luta por sua
liberdade.
Mas
o país vive outra época, com outras circunstâncias e novos personagens.
Há
40 anos, o país lutava para sair de uma ditadura. Hoje, a tarefa é impedir que
uma democracia enfraquecida por sucessivas atos de exceção, se transforme num
paisagem arruinada.
Como
se fez em outras épocas, a prioridade imediata envolve a necessidade de
organizar defesa dos trabalhadores e da população explorada para enfrentar
ataques já em curso, contra conquistas materiais e direitos políticos.
Mais
que uma opção, a resistência é uma questão de sobrevivência.
Alguma
dúvida?
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