“Demonstro
nesse livro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições
que possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói.
”
Assim,
com essas palavras, Karl Marx inicia o livro “O 18 Brumário de Luís Napoleão
Bonaparte”, publicado em 1852. No texto, Marx se pergunta como um sujeito
medíocre e grotesco conseguiu se tornar o líder máximo da sociedade que meio
século antes havia experimentado a mais importante revolução social da história
moderna.
Aqui,
neste ensaio, me inspiro em Marx para formular minha própria pergunta:
Por
que Jair Bolsonaro, até então um deputado medíocre, inexpressivo, foi eleito
presidente da quarta maior democracia do mundo?
Meu
esforço aqui é o de entender o capital político que impulsionou o bolsonarismo.
Esse capital político é substância composta e heterogênea. Neste texto,
pretendo decompor essa substância, trazendo à luz cada um dos seus elementos.
1°) O antipetismo
Desde
o final da década de 1980 que o antipetismo é fator decisivo nas eleições
presidenciais brasileiras. Até aqui nenhuma novidade. Porém, dessa vez algo
mudou. Ao velho macarthismo, que durante tanto tempo inviabilizou Lula,
somou-se uma dupla interdição moral.
A
primeira camada de moralidade refere-se ao sentimento anticorrupção. Desde
2005, existe o esforço articulado pela grande mídia e por órgãos do aparato
policial e judicial do Estado (Polícia Federal e Ministério Público) de colar
no Partido dos Trabalhadores a pecha de partido mais corrupto do sistema
político brasileiro. Essa frente antipetista sempre teve um modus operandi
muito claro: a espetacularização seletiva dos escândalos de corrupção. É
impossível compreender a ascensão de Bolsonaro sem a atuação dessa frente
antipetista.
A
segunda camada de moralidade refere-se ao plano do comportamento.
Nos
últimos 30 anos, vimos no Brasil e no mundo o fortalecimento dos direitos civis
das minorias (mulheres, pretos e pretas e LGBTs). Essa discussão já estava
presente na cena brasileira desde a redemocratização, nos anos 1980, tendo sido
contemplada parcialmente pela Constituição de 1988. Avançamos nessa agenda
tanto nos governos de Fernando Henrique Cardoso como nos governos petistas.
Poderíamos ter avançado mais, é claro.
É
uma obviedade dizer que o Brasil é um país conservador e que, por isso, a pauta
dos direitos civis das minorias tem grande impacto ofensor na moralidade
dominante. Essa moralidade dominante foi ainda mais radicalizada com a ascensão
do cristianismo neopentencostal, do qual a Igreja Universal do Reino de Deus é
a principal representante.
Hoje,
a formação política de parcela considerável da sociedade brasileira não
acontece na universidade, tampouco na escola, muito menos nos sindicatos e
associação de moradores. As igrejas evangélicas neopentencostais estão formando
a consciência política de milhões de brasileiros e brasileiras, de todas as
classes sociais.
Sem
dúvida, a aliança costurada entre a candidatura de Jair Bolsonaro e a Igreja
Universal do Reino de Deus foi elemento decisivo para o desfecho da corrida
eleitoral. No Brasil inteiro, as igrejas se transformaram em verdadeiros
núcleos de campanha. A campanha de Bolsonaro conseguiu convencer as pessoas que
os direitos civis das minorias representam um ataque à família brasileira e que
o PT seria o principal promotor desse ataque.
Resumindo:
O velho antipetismo foi turbinado e caiu no colo de Jair Bolsonaro.
Mas
por que Bolsonaro e não outro antipetista qualquer?
2°) A sensação da insegurança
pública
Nas
grandes cidades brasileiras, as pessoas estão assustadas. Os índices de
violência urbana são similares aos observados em países em situação de guerra.
Como
bem lembrou Marcelo Freixo, as esquerdas brasileiras sempre tiveram dificuldade
em discutir o tema da segurança pública, pois costumam enfrentar o assunto com
ideias abstratas como “direitos humanos”, ou com projetos que ofendem a tal
moralidade da qual falei há pouco, como a “descriminalização do consumo de
drogas”.
Enquanto
isso, Jair Bolsonaro evocou a velha máxima do “bandido bom é bandido morto”.
Foi o bastante para que as pessoas, assustadas, fossem tomadas por certo
sentimento hobbesiano, aceitando de boa vontade abrir mão de algumas liberdades
em nome de um Estado autoritário e violento, capaz de trazer a sensação de
segurança. O medo é afeto político muito poderoso.
3°) A narrativa da
ineficiência da democracia
Foram
muitos os desdobramentos dos eventos que aprendemos a chamar de “jornadas de
junho de 2013”. Ainda não entendemos bem o que aconteceu naquele momento e o
próprio significado de “2013” está sendo disputado.
Mesmo
diante de tantas incertezas e caminhando em terreno ainda pouco sólido, estou
muito convencido de que junho de 2013 passou uma mensagem para a sociedade
brasileira: a democracia representativa criada nos anos da redemocratização
seria corrupta e ineficiente na gestão dos serviços públicos e na promoção do
Bem-Estar Social.
Os
números mostram outra realidade. Desde a década de 1990, o Brasil vem
caminhando relativamente bem no que se refere à qualidade e a eficiência dos
serviços públicos.
Não,
leitor e leitora, não estou louco!
Todos
os dados apontam para a evolução no acesso à educação e à saúde, no combate à
mortalidade infantil, no aumento da rede de atendimento na saúde básica.
Mas
como o que importa é a tal da “percepção”, os dados estatísticos são pouco
relevantes. As “jornadas de 2013”, tão bem exploradas e cooptadas pela mídia
hegemônica, pintaram para a sociedade brasileira um quadro de total colapso e
ineficiência na gestão dos serviços públicos. Se o quadro não é totalmente
falso, está longe de ser completamente verdadeiro.
A
mensagem foi transmitida com sucesso e continuou a alimentar a revolta social
em 2015 e 2016. O saldo desse ativismo da sociedade civil pode ser resumido por
um sentimento de “fora todos”, de “tudo está errado”, “tem que mudar tudo isso
aí”. Temos aqui terreno fértil para o surgimento de lideranças que se
apresentam como antissistemas, como “outsiders”. Jair Bolsonaro era um dos
poucos políticos que conseguiam caminhar com tranquilidade entre a multidão,
justamente porque foi capaz de se apresentar como um crítico ao sistema vigente
(a democracia) e um defensor da ordem política superada (a ditadura), que
passou a ser objeto de toda tipo de saudosismo.
A
percepção geral da ineficiência da democracia alimentou a utopia autoritária
representada por Jair Bolsonaro.
4°) A falta de compromisso do
capitalismo com a civilização
Uma
das principais motivações para o golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff
em agosto de 2016 foi sua recusa em adotar a agenda de desmonte do Estado que
na época foi chamada de “Ponte para o Futuro”.
Não
há nenhum voo interpretativo aqui. O próprio Michel Temer disse, em palavras
cristalinas: “Dilma caiu porque não quis adotar a Ponte para o Futuro”. Essa é
uma novidade do golpe brasileiro: os golpistas assumem que foi golpe, sem nenhum
constrangimento.
É
antigo o projeto de desmonte do Estado brasileiro. Podemos encontrar sua origem
lá na década de 1950, com o udenismo. Porém, esse projeto sempre teve
dificuldades para se transformar em realidade. Nem mesmo a Ditadura militar o
fez. Na década de 1990, os tucanos avançaram, mas nem tanto.
Os
governos petistas interromperam a marcha, que foi acelerada com Temer. Em dois
anos, Michel Temer conseguiu o que três gerações de políticos e economistas
liberais não foram capazes de fazer: tirar do controle do Estado o planejamento
do desenvolvimento nacional, entregando-o ao mercado. A famosa “PEC dos Gastos”
é o grande símbolo desse sucesso.
As
forças do mercado sabiam muito bem que as eleições de 2018 representavam um
risco para continuidade desse projeto. O primeiro movimento foi garantir que
Lula ficasse de fora da corrida presidencial. Depois, foi colocada em movimento
uma campanha negativa, visando a destruição do Partido dos Trabalhadores. O
objetivo era fortalecer o outro polo do sistema político, aquele que até então
era o dono do antipetistmo: o PSDB.
Jair
Bolsonaro atravessou o processo e as forças do capital não hesitaram em abandonar
o antigo aliado e firmar matrimônio com um novo amor. A popularidade de
Bolsonaro se tornou a garantia da legitimação eleitoral da agenda econômica do
golpe parlamentar. Não houve debate econômico, projetos de desenvolvimento
nacional não foram discutidos. Jair Bolsonaro foi eleito, exclusivamente, na
base do antipetismo repaginado e do sentimento hobbesiano alimentado por uma
população assustada. Paulo Guedes foi silenciado durante toda a campanha.
As
forças do mercado comemoraram a eleição de Bolsonaro. O ideal mesmo seria
Alckmin, mas Bolsonaro, com a chancela de Paulo Guedes, serve também. Machista,
autoritário, violento, homofóbico? Sim, não importa. O capitalismo não tem o
menor compromisso com a civilização.
A
eleição de Bolsonaro inquieta e assusta o mundo inteiro. Dentro e fora do país,
aqueles que têm um mínimo compromisso com os valores que fundam a civilização
se perguntam: como isso aconteceu? Como foi possível?
Ainda
vamos nos debater muito com essas perguntas. Historiadores, sociólogos e cientistas
políticos vão propor inúmeras hipótese explicativas.
Fato
mesmo é que Bolsonaro não surgiu ontem. Ele está aí há muito tempo, no submundo
da política brasileira. Ignoramos, não prestamos atenção, subestimamos,
debochamos. Acreditamos que o Brasil não se rebaixaria tanto assim. No fundo,
bem no fundo, nos iludimos, achando que o Brasil tinha melhorado. Melhorou não.
É isso aí mesmo. Sempre foi.

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