A
ideia e concepção de “herdeiros necessários” está diretamente ligada á ideia de
proteção a alguém supostamente vulnerável. É assim que o artigo 1845 do Código
Civil 2002, repetindo o conteúdo do Código Civil 1916, que por sua vez advinha
do sistema originário da codificação, chegou até nós: São herdeiros necessários
os descendentes, ascendentes e o cônjuge”. Isto significa que pertence aos
herdeiros necessários a metade dos bens da herança, o que se denomina de
legítima. Isto não significa que a outra parte seja ilegítima. Apenas que a
outra metade pode ser testamentária. Em outras palavras, a herança, pode ser
legítima (ou legal) ou testamentária.
Há
quem defenda hoje a extinção da categoria de herdeiro necessário. Alega-se que
isto tolhe a liberdade do autor da herança, e que também, incentiva a terrível
“expectativa de herança”, uma situação abominável. De fato, a expectativa de
herança, que nem é propriamente um direito, e nem mesmo um direito futuro, pode
ser paralisante do sujeito e até um mau agouro, já que não existe herança de
pessoa viva (conforme Dicionário de Direito de Família e Sucessões Ilustrado –
Ed. Saraiva – Verbete Direito Expectativo - P. 262).
Sou
contra. Garantir que pelo menos a metade da herança seja distribuída aos
herdeiros necessários, tem evitado muita injustiça com a exclusão de herança a
filhos indesejados ou que não pediram para nascer. Quando um filho fora do
casamento, ou que não corresponde ao comportamento sexual imaginado pelo
pai/mãe, a primeira punição, ou mesmo no planejamento sucessório, é excluir
este filho que não está de acordo com a moral sexual imaginária do sistema
patriarcal. Portanto, o instituto da legítima e do herdeiro necessário, cumpre
a importante função de proteger certas vulnerabilidades.
Uma
das significativas inovações do Código Civil de 2002 foi ter elevado o cônjuge
à categoria de herdeiro necessário. Há quem veja isso como avanço. Vejo como
retrocesso, apesar de o espirito da lei ser também o de proteção. Embora não
esteja dito expressamente, a ideia é proteger o cônjuge-mulher. Se se pensa em
igualdade, ou pelo menos se se almeja a igualdade, a mulher não pode mais ser
considerada o sexo frágil, isto é, a parte frágil economicamente da relação
conjugal, ainda que historicamente tenha sido e às vezes ainda o é. E preciso
dar à mulher um lugar de sujeito de direitos, e de desejos, com um patamar de
igualdade, apesar de todas as diferenças, químicas, físicas e biológicas, à do
homem. Mas este não e um assunto tranquilo, nem mesmo dentro do próprio Instituto
Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Há
situações em que o cônjuge acaba herdando mais que os filhos e outras também de
extrema injustiça. Por exemplo: uma mulher, casada pelo regime de separação de
bens, sem filhos, recebeu bens de herança de seus pais, o que é bem particular
dela, já que o seu regime de casamento é o da comunhão parcial. Com a sua morte
o marido, que é herdeiro necessário (artigo 1838 CC) herdará dela os bens
advindos de seu pai. O problema é que com a morte deste marido que recebeu a
herança da mulher, estes bens irão para seus sobrinhos, que eram inimigos da
mulher deste tio. Mesmo que ela fizesse testamento, pelo menos a metade de seus
bens recebidos por herança de seu pai, iria parar nas mãos do sobrinho-inimigo.
Se o cônjuge não fosse herdeiro necessário, bastaria um simples testamento para
evitar que os bens de uma família fossem parar em outra família, que nenhum
vínculo de afeto, e nem mesmo jurídico, tenha com o autor de herança
originária.
Como
se não bastasse o cônjuge ter se tornado herdeiro necessário, há quem defenda
que na união estável também há herança necessária, isto é, que os companheiros
também são herdeiros necessários e que o STF ao julgar inconstitucional o
artigo 1790, declarando a igualdade entre as duas formas de constituição de
família alçou ao patamar de herdeiros necessários os companheiros. Quem assim
interpreta está tolhendo a liberdade das pessoas de escolherem esta ou aquela
forma de família. Está, na verdade, decretando o fim do instituto da União
estável. Se em tudo é idêntica ao casamento, ela deixa de existir, e só passa a
existir o casamento. Afinal, se a União Estável em tudo se equipara ao
casamento, tornou-se um casamento forçado. Respeitar as diferenças entre um
instituto e o outro é o que há de mais saudável para um sistema jurídico. Um
dos pilares de sustentação do Direito Civil é a liberdade. Se considerarmos o
(a) companheiro (a) como herdeiro necessário estaremos acabando com a liberdade
de escolha entre uma e outra forma de constituir família, já que a última
barreira que diferenciava a união estável do casamento já não existiria mais.
Isto seria o engessamento do Direito de Família / Sucessões e um atentado
contra a liberdade das próprias pessoas que escolheram viver em união estável.
Esta diferenciação não significa, de maneira alguma, que União Estável seja uma
família de segunda categoria. Ao contrário, ela poderá ser a única saída, a
única escolha possível, para evitar que heranças possam ter um destino muito
indesejável, como no exemplo acima citado.
A
saudável diferença entre as duas formas de se constituir famílias, dentre as
quais não ser herdeiro necessário é bastante clara no voto do ministro Dias
Toffoli, no referido julgamento de inconstitucionalidade do artigo 1790: “A
restrição imposta pelo código civil de 2002 ao direito sucessório da união
estável (...) me parece absolutamente legítima – assim como tantas outras
restrições a direitos civis que foram estabelecidas pelo novo código civil e
que foram realizados sob o permissivo constitucional (...) (RE 878.694).
Uma
das bases de sustentação da corrente interpretativa do (a) companheiro (a) como
herdeiro necessário está na decisão do julgamento de inconstitucionalidade do
artigo 1790 do Código Civil, que fazia diferenciação na herança legitima entre
cônjuge e companheiro e que teria atingido também o conteúdo do artigo 1845 que
estabelece quem é herdeiro necessário. Mas isto não seria possível, pois o rol
dos herdeiros necessários é taxativo, e portanto não se pode dar interpretação
que amplie a norma restritiva. E além disto, o STF não disse isto. Ao
contrário, como se depreende do voto do ministro Edson Fachin, que bem traduziu
o espirito da lei: “Na sucessão, a liberdade patrimonial dos conviventes já e
assegurada com o não reconhecimento do companheiro como herdeiro necessário,
podendo-se afastar os efeitos sucessórios por testamento. Prestigiar a maior
liberdade na conjugalidade informal não é atribuir, a priori, menos direitos ou
direitos diferentes do casamento, mas, sim, oferecer a possibilidade de,
voluntariamente, excluir os efeitos sucessórios”. (RE 646.724, Ministro Edson
Fachin, p. 57).
A
equiparação feita pelo STF limitou-se às regras relativas à concorrência
sucessória e cálculo dos quinhões hereditários facultativos para que os
companheiros não fiquem em desvantagem aos colaterais, como bem disse Mário
Delgado: (...) o artigo 1845 é nítida norma restritiva de direitos, pois
institui restrição ao livre exercício da autonomia privada e, conforme normas
ancestrais de hermenêutica, não se pode dar interpretação ampliativa à norma
restritiva. (In. Famílias e Sucessões – Polêmicas, tendências e inovações, Ed.
IBDFAM, 2018, P. 387). Portanto, companheiros não necessariamente são
herdeiros. Apenas quando eles assim o desejarem.
Rodrigo da Cunha Pereira é
advogado e presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFAM), mestre (UFMG) e doutor (UFPR) em Direito Civil e autor de livros
sobre Direito de Família e Psicanálise.
Revista
Consultor Jurídico
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