Tema
atual no cenário brasileiro, a corrupção, embora muitos queiram que pareça o
contrário, não nasceu hoje. Tampouco é algo surgido há poucos anos ou décadas.
O livro Corrupção e poder no Brasil – Uma história, séculos XVI a XVIII
(Autêntica) traz dados e testemunhos relacionados ao tema que mostram não só
como esse conceito era entendido no Brasil colonial mas também de que forma a
sociedade à época reagia a práticas tidas como ilícitas.
“A
corrupção aparece como fenômeno da história do Brasil desde o momento em que
Cabral pisa aqui”, diz a historiadora e professora da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) Adriana Romeiro, autora da obra que conta com uma ampla
pesquisa de documentos e testemunhos que evidenciam que condutas ilícitas eram
um elemento crucial para o funcionamento da administração colonial à época.
Ao
contrário do que muitos historiadores sustentavam, em especial antes dos anos
1990, a presença do império português no Brasil se deu não de uma forma
absolutista, mas criando-se redes horizontais e verticais próprias do contexto
local. “A avaliação que os historiadores fazem hoje é que essa dinâmica foi
fundamental para a preservação do sistema, que sobreviveu durante séculos e
isso teria concorrido para dar flexibilidade às relações políticas. Se fosse um
império mais rígido, não iria se sustentar por muito tempo.”
Esse
sistema, segundo Adriana, está na origem da ascensão da elite nacional. “A
sobrevivência desse império está ligada a essa configuração mais fluida. Foi
por meio da corrupção que as elites locais puderam se constituir como elite e
participar tanto do poder como dos lucros do processo de colonização. As nossas
elites só se tornaram elites fazendo uso desse expediente espúrio, que na
prática resultaram da flexibilização do pacto colonial.”
Não
só a corrupção é antiga como a sua instrumentalização como arma política, que
já acontecia no período colonial. “Isso é comum, no livro está demonstrado que
desde o século XVI, existem vice-reis na Índia que são acusados de corrupção,
destituídos de seus cargos, enviados de volta a Portugal, são presos, têm seus
bens sequestrados, e isso em função de rivalidades políticas. Depois que eles
morrem, seus familiares e descendentes vão à Justiça para provar que as
denúncias eram infundadas”, conta a historiadora.
Livro
Corrupção e Poder no BrasilComo se pode delimitar o conceito de corrupção
utilizado no período colonial com a corrupção da forma como é entendida hoje?
Usamos
o conceito hoje de uma forma bastante anacrônica. Ele só faz sentido em uma
cultura que pensa a sociedade como um corpo biológico, um corpo físico, como no
caso da sociedade da Época Moderna, do século 16 ao 18. O conceito de corrupção
deles era muito mais amplo que o nosso porque englobava uma série de condutas e
comportamentos que hoje não
consideraríamos corrupção. Por exemplo, comportamentos de natureza religiosa, a
presença de hereges em uma sociedade era tida como fator de corrupção daquela
sociedade. Tratava-se de um conceito mais abrangente e inserido em uma outra
lógica de se pensar a sociedade.
Não
existe uma relação direta com o conceito usado hoje, que também é bastante
fluido.
Costuma-se
usar esse conceito para designar determinada prática. Então, a a roubalheira em
tal empresa estatal é corrupção. No período que estudo, as práticas não podem
ser chamadas assim porque a corrupção é o resultado das práticas. Ou seja, as
práticas levam à corrupção do corpo político.
A
senhora tem como foco, em parte do livro, as denúncias contra os
governadores-gerais, que eram nomeados pela Coroa portuguesa, e há inúmeros
atos a eles imputados que vão desde abusos de poder até enriquecimento ilícito.
À época, o que era considerado mais grave em termos de condutas relacionadas à
corrupção para o Império e para a sociedade colonial?
A
Coroa portuguesa definia algumas práticas consideradas corruptas. Por exemplo,
o governador de capitania não podia se envolver em negócios, ter qualquer
atividade econômica no local em que ele estava servindo na condição de
governador. Isso era proibido. Mas, na prática, isso acontecia e de modo geral
as pessoas tinham uma certa tolerância em relação a isso. Os vassalos, os
moradores do Brasil, achavam que era legítimo um governador enriquecer ao longo
do exercício do cargo, desde que fossem respeitados alguns limites, em suma,
desde que o patrimônio do rei não fosse prejudicado, e nem os vassalos fossem
prejudicados ou sofressem algum tipo de violência. O limite sempre era muito
tênue. De um modo geral, as pessoas eram complacentes em relação a esses
desvios do governador.
Uma
série de condutas gerava indignação. No livro, tento rastrear algumas delas,
tendo como foco um pouco o tema do enriquecimento ilícito. Para muitos
historiadores, seria inadequado falar em enriquecimento ilícito para esse
período específico, mas centrei meu trabalho mais nessa questão, procurando
mostrar que havia sim por parte da população uma clara percepção do que era lícito
para um governador acumular por um período. As pessoas ficavam atentas ao fato
de alguns governadores chegarem ao Brasil pobres, endividados, e depois de um
tempo acumularem um patrimônio milionário. Isso provocava indignação e alguns
chegavam a escrever ao rei para denunciar essa situação.
Mas
tem outras coisas consideradas graves como o governador usar de sua autoridade
para impor algum tipo de violência contra as pessoas, ordenar prisões
arbitrárias. Havia uma ideia muito clara daquilo que era tolerável e daquilo
que era inaceitável, existia um conjunto de valores morais que conformavam esse
espaço da política e de alguma forma impunham algum tipo de limite para a
atuação dos governadores. Nem tudo era possível. Eles tinham que se submeter a
esses limites sob o risco de serem denunciados, expulsos da capitania – o que
aconteceu várias vezes – ou serem presos.
No
livro, a senhora menciona que a historiografia, a partir de certo ponto,
reconhece a existência de um Império descerebrado, conectado por redes
horizontais e verticais, e não propriamente um Estado absolutista que é quase
externo à colônia. Como essa visão influencia na análise da corrupção nesse
período?
Até
os anos 1980, aproximadamente, se via a relação entre Brasil e Portugal sob uma
perspectiva extremamente rígida no sentido de que havia um pacto colonial e uma
relação de exploração da colônia pela metrópole. É a ideia de que Portugal era
um Estado absolutista e, de certa maneira, tudo aqui refletia um projeto
colonizador dado de antemão por esse Estado. E ao longo dos anos 90, em
especial, no Brasil, os historiadores passaram a relativizar essa ideia, se
dando conta de que esse projeto não existiu de uma forma tão acabada, tão
evidente como queriam outros historiadores, e nem que a colônia cumpria
exatamente aquilo que a metrópole esperava dela. Hoje se tem a ideia de que
esse Império português, em relação ao Brasil, não detém um poder centralizado.
É o contrário, existe uma proliferação de poderes locais. Não se trata mais de
uma relação vertical entre Portugal e Brasil, mas uma relação em que os poderes
eram constituídos em um nível mais horizontal.
Pensar
essa nova configuração de Império nos permite entrar nesse espaço de autonomia
que existe entre Portugal e Brasil; a ideia de que essa configuração mais
fluida, mais solta, permitiu uma série de práticas conhecidas que hoje nós
entendemos como corrupção. Imagine o governador chegando ao Brasil no início do
século 18, quais eram as possibilidades reais desse governador ser controlado
por Portugal? Nenhuma. Ele chegava aqui e tinha completa autonomia, podia
mandar e desmandar porque sabia que a distância era um elemento importante para
a impunidade. O rei nem iria ficar sabendo e se viesse a descobrir, isso ia
demorar um tempo. Essa configuração do Império permitiu a explosão dessas
práticas que hoje podemos chamar de corruptas.
Nesse
contexto, como a corrupção se tornou um componente essencial do funcionamento
da administração colonial?
A
avaliação que os historiadores fazem hoje é que essa dinâmica foi fundamental
para a preservação do sistema, que sobreviveu durante séculos e isso teria
concorrido para dar flexibilidade às relações políticas. Se fosse um império
mais rígido, não iria se sustentar por muito tempo. A sobrevivência desse império
está ligada a essa configuração mais fluida. Foi por meio da corrupção que as
elites locais puderam se constituir como elite e participar tanto do poder como
dos lucros do processo de colonização. As nossas elites só se tornaram elites
fazendo uso desse expediente espúrio, que na prática resultaram da
flexibilização do pacto colonial.
No
passado a corrupção serviu para que houvesse a ascensão de uma burguesia
nacional, mas essa elite não se desprendeu das práticas corruptas.
Temos
uma elite que durante 400 anos se vale da corrupção como prática da ascensão.
No período colonial, se tem uma visão muito negativa do Estado por parte das
elites, entendendo que ele é inimigo, vem para cobrar impostos e tentar colocar
obstáculos à iniciativa privada, um estorvo. E hoje é um Estado para ser
espoliado, roubado, saqueado. Temos uma classe política que pensa dessa forma,
que o Estado é para ser dilapidado.
Pelos
documentos e pela literatura da época os atos da administração pública são
severamente julgados e as ilicitudes bastante rejeitadas, obviamente pelo poder
que se detinha ali. Mas há pouca menção sobre vícios e ilicitudes privados.
Esse é um traço que de certa forma permaneceu na percepção sobre corrupção,
como se fosse algo ligado somente ao poder público?
Hoje,
para nós, as coisas funcionam assim. Mas pelos meus estudos, a condição diz
respeito tanto à esfera privada quanto à esfera pública, não existe essa
distinção tão clara. No meu livro, não trabalho com a corrupção fora do
aparelho estatal, interessa saber como os governantes e membros da
administração estão envolvidos com essas práticas. E uma coisa importante a
destacar é que se você tem uma classe política corrupta, tem uma sociedade
corrupta também, ela não fica restrita à esfera pública ou estatal. Ela é
sistêmica. A corrupção é sistêmica na medida em que o sistema só podia operar,
funcionar, se houvesse corrupção, e isso em todos os níveis da sociedade. Por
exemplo, a prática de corrupção mais comum era o contrabando, existia desde
escravos até governadores envolvidos com contrabando.
Sobre
essa questão do contrabando na sociedade colonial, no livro a senhora afirma
que se tratava da prática ilícita por excelência, condenada pela legislação –
embora a normatização fosse dúbia –, mas uma atividade tolerada. Em que sentido
podemos comparar com práticas igualmente tidas como ilícitas atualmente, como o
caixa 2 no sistema político ou a sonegação, com o mesmo tipo de tolerância
exercida à época com o contrabando?
É
interessante porque isso mostra o abismo entre a lei e a prática, entre aquilo
que é norma e o que as pessoas fazem no dia a dia. Da mesma forma que no
período colonial existia uma legislação que proibia o contrabando, as próprias
autoridades encarregadas de reprimir esse contrabando estavam envolvidas nisso.
Esse abismo entre norma e prática, o fato de que nem sempre as pessoas
compartilham daquilo que está na lei, vemos no Brasil de hoje. Há uma série de
comportamentos que são proibidos e que, na prática, as pessoas fazem sem o
menor escrúpulo. Não quero dizer que isso é algo brasileiro, mas é um fenômeno
que percebo lá no passado e que está presente hoje, o sujeito que atravessa no
sinal vermelho, o aluno que copia trabalhos, a pessoa que estaciona na vaga do
idoso, esses pequenos delitos para os quais somos tolerantes e sabemos que são
ilegais. É uma característica nossa.
À
época existiam muitas acusações com sérios indícios e outras infundadas e essas
têm valor histórico porque refletem o conturbado ambiente em que se digladiavam
diversas forças políticas antagônicas na disputa por recursos materiais e
simbólicos. De que forma se dava o uso das acusações de corrupção como
instrumento político àquela época? É possível fazer algum paralelo com o
cenário atual?
Procuro
mostrar que se tem denúncias que são procedentes, que se sustentam, tem também
denúncias geradas apenas por divergências políticas. Isso é comum, no livro
está demonstrado que desde o século XVI, existem vice-reis na Índia que são
acusados de corrupção, destituídos de seus cargos, enviados de volta a
Portugal, são presos, têm seus bens sequestrados, e isso em função de
rivalidades políticas. Depois que eles morrem, seus familiares e descendentes
vão à Justiça para provar que as denúncias eram infundadas. Isso é muito comum
sobretudo no período pombalino, na segunda metade do século XVIII, o Marquês de
Pombal perseguia seus inimigos usando o artifício da corrupção.
Era
uma prática habitual.
Sim.
Quando chegava um governador aqui, a primeira coisa que ele fazia era acusar
seu antecessor de praticar a corrupção.
Isso sempre foi, como é hoje no Brasil, um instrumento de luta política.
O
que a senhora acha que o estudo da corrupção desse período pode deixar como
lição para o período atual em que ela é um elemento tão central em diversos
aspectos?
Em
primeiro lugar, o fato de que a corrupção aparece como fenômeno da história do
Brasil desde o momento em que Cabral pisa aqui. Não gosto de responsabilizar os
portugueses ou atribuir isso a uma tradição ibérica porque as condições históricas
do Brasil favoreceram a cultura da corrupção. A corrupção faz parte da nossa
história e para que a gente possa superar esse legado maldito é preciso
entender a corrupção e talvez uma das formas de romper com esse passado é
conhecê-lo melhor. Estou otimista em relação a novas gerações, que não terão a
mesma tolerância que temos em relação à corrupção. Essa geração mais jovem vai
crescer com outra mentalidade.
http://www.diariodocentrodomundo.com.br/a-corrupcao-e-algo-antigo-no-brasil-e-usa-la-como-arma-politica-tambem-diz-historiadora/
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