Cinquenta
anos após a sua fundação, a visão antiracista e anticapitalista do Partido dos
Panteras Negras mantém a mesma relevância. Artigo de Robert Greene II, na
revista Jacobin
Este
ano assinala-se o 50º aniversário da expressão “Black Power”, cunhada por
Stokely Carmichael, e também da formação do Partido dos Panteras Negras (link
is external) (PPN).
Criado
pelos ativistas radicais de Oakland, Huey Newton e Bobby Seale, Os Panteras
Negras depressa se tornaram a maior manifestação da ideologia “Black Power”
após a suA formação em outubro de 1966. No entanto, muito do que se sabe acerca
dos Panteras permanece no esquecimento ou foi distorcido, e a iconografia das
armas surge à frente de um conhecimento aprofundado dos seus objetivos.
Para
pôr a história em pratos limpos, o texto que se segue é um manual sobre o
Partido dos Panteras Negras – um grupo que meio século após a fundação ainda
tem muito para nos ensinar sobre organização, ideologia e os perigos de
defender o socialismo revolucionário nos Estados Unidos.
Origens e
objetivos
O
Partido dos Panteras Negras seguiu os passos dos grupos negros esquerdistas que
o precederam, como a African Blood Brotherhood e o National Negro Congress. Tal
como os antecedentes, os Panteras Negras adotaram tanto o nacionalismo negro
como o socialismo. Seale e Newton pretendiam criar uma organização que pudesse defender a comunidade negra contra a
brutalidade policial, dando ao mesmo tempo uma clara visão anticapitalista.
Ao
contrário das principais organizações do Movimento dos Direitos Civis, o PPN
tinha a sua base potencial no “Lumpenproletariado Negro Urbano”, como explicou
um dos seus primeiros líderes, Eldridge Cleaver, no manifesto On the Ideology
of the Black Panther Party (link is external).
Para
Cleaver e outros líderes do PPN, o lumpenproletariado negro era composto por
quem está “perpetuamente na reserva” – os Afro-Americanos, em Oakland e não só,
que não conseguiam encontrar trabalho ou obter a formação necessária para
competir numa força de trabalho em modernização. Eles dirigiram-se a este
segmento da população – em vez do agente tradicional da revolução, a classe
operária organizada – para potenciar a sua luta contra a supremacia branca, o
imperialismo e o capitalismo.
Nascido
em Oakland, cidade com longa história de radicalismo e luta pelos direitos
civis, o PPN acabou por formar núcleos por todo o país – de Nova Iorque a
Chicago e no Sul, em locais tão distintos como Winston-Salem, Carolina do Norte
(link is external) e New Haven, Connecticut. (link is external) Nos seus tempos
áureos, o PPN anunciava mais de 5.000 militantes a nível nacional. E chegavam a
muitos mais através do seu jornal, o Black Panther, que tinha uma circulação de
250.000.
O
que dava coerência aos vários núcleos não era forçosamente uma liderança do
topo para a base, mas um ethos de Black Power, organização comunitária e o
socialismo que canalizava a energia dos jovens Afro-Americanos descontentes com
a hipocrisia do liberalismo da Grande Sociedade e com a insensibilidade do
conservadorismo da Nova Direita. Surgiram líderes jovens e talentosos a nível
local, em especial Fred Hampton, em Chigago.
Na
resistência à brutalidade policial em Oakland, os Panteras escolherem a autodefesa
armada, uma tática empregada por muitos Afro-Americanos em todo o Sul do país.
A ligação geográfica não era uma coincidência. Fundada por dois sulistas (Seale
nasceu no Texas, Newton no Louisiana), o PPN partilha o seu símbolo icónico com
a Lowndes County Freedom Organization no Alabama (fundada por Carmichael).
Ambos os grupos desafiaram diretamente a supremacia branca nas bases.
Mas
para o PPN, a luta contra o racismo não ficava completa sem uma luta contra o
capitalismo. A sua plataforma em dez pontos de 1966, a mais clara expressão
programática da política do grupo, apresentava uma análise crítica tanto da
supremacia branca como no capitalismo na América. Entre as suas reivindicações
estavam o “pleno emprego”, “habitação digna” e um “plebiscito fiscalizado pelas Nações Unidas”
para decidir se os Afro-Americanos desejavam separar-se dos EUA e criar a sua
própria comunidade auto-organizada.
Cada
um desses objetivos, juntamente com os outros descritos no programa de dez
pontos, apontavam para uma organização que já estava a juntar os vários eixos
do pensamento de esquerda predominantes no final da década de 1960.
As
atividades do Partido dos Panteras Negras
Entre
as principais atividades dos Panteras estavam os seus serviços sociais, ou “programas de sobrevivência”. O mais
famoso era o programa de pequeno-almoço gratuito, que fornecia refeições a
muitos jovens Afro-Americanos pobres em Oakland. Outro era o programa local de
educação para a saúde, que ajudava os Afro-Americanos sem acesso a cuidados de
saúde de qualidade.
Todos
juntos, os mais de sessenta programas de sobrevivência permitiram aos Panteras
Negras ganhar o apoio de muitos operários Afro-Americanos em luta, melhorando
de imediato a qualidade de vida dos moradores enquanto apontavam a um futuro
socialista.
O
PPN também ficou conhecido por patrulhar a ação dos agentes policiais de
Oakland nas ruas. Armados com shotguns e livros de leis da Califórnia, eles
circulavam na cidade e fiscalizavam as rusgas policiais, procurando diminuir a
brutalidade policial. O uso das armas levou a Assembleia Geral da Califórnia a
aprovar, e o então governador Ronald Reagan a promulgar, o Mulford Act de 1967, que proibiu o porte público de armas
carregadas.
A
polícia também não viu com bons olhos a fiscalização armada dos Panteras. No
mesmo ano da aprovação do Mulford Act, uma operação stop descambou num tiroteio
entre Newton e o agente da polícia de Oakland John Frey, que morreu no local.
Os julgamentos de Newton que se seguiram tornaram-se causas importantes para a
esquerda americana, que tomou o slogan “Free Huey” como o grito contra a
opressão, a brutalidade policial e a supremacia branca na sociedade.
A
inquietação aumentou nos meios governamentais sobre a ameaça que os Panteras
colocavam à segurança nacional. Para além das rusgas pontuais e emboscadas
policiais, o FBI, sob os auspícios do seu famigerado COINTELPRO (Counter
Intelligence Program) abriu guerra aos Panteras. O FBI olhou com especial
interesse para os núcleos de Oakland e Chicago, semeando a discórdia entre os
membros do PPN e muitas vezes deixando os militantes inseguros sobre em quem
confiar.
O
assassinato de Hampton e de Mark Clark, líder do Partido dos Panteras Negras no
estado do Illinois, durante uma rusga ao apartamento de Hampton em 4 de
dezembro de 1969, mostrou até onde as autoridades locais e nacionais estavam
dispostas a ir para acabar com o Partido dos Panteras Negras. Até os programas
de pequeno-almoço gratuito – vistos como fonte potencial de radicalização duma
nova geração de Afro-Americanos – foram alvo do FBI e da polícia local.
Sob
o peso de uma severa repressão estatal, acabaram por surgir divergências graves
acerca das diversas atividades do grupo. No início dos anos 1970, já os
Panteras Negras se tinham dividido tanto sobre a linha ideológica, como tática.
Huey
Newton queria centrar a atenção do PPN no ativismo local, formação e programas
de serviço comunitário. Eldridge Cleaver – que chegou a ser o ministro da
informação do PPN, mas que fugira para Cuba e depois para a Argélia na
sequência de uma cilada da polícia de Oakland – pressionava o partido para se
preparar para a insurreição armada nos Estados Unidos. O cisma foi colocado à
vista de todos em 1971, quando Newton criticou abertamente Cleaver nas páginas
do Black Panther.
Quando
Elaine Brown se tornou a presidente do partido em 1973 – substituindo Newton,
que estava exilado em Cuba –, ela fez o partido regressar em força à sua
orientação para as bases. Brown deu destaque ao serviço comunitário, gerindo a
Oakland Community School nos anos 1970 e formando nesse processo centenas de
crianças Afro-Americanas de Oakland.
Durante
o seu mandato, o PPN tornou-se um importante agente político em Oakland e na
Califórnia. Bobby Seale fez uma grande campanha para mayor de Oakland em 1973 e
1975 (acabando em segundo entre nove candidatos após perder na segunda volta),
e Brown entrou na corrida para o conselho municipal em 1973 e 1975 (nas duas
vezes ficou perto de ganhar). Brown apoiou também a candidatura bem sucedida do
Democrata Jerry Brown a governador em 1974 (embora seja menos evidente no que é
que esse apoio beneficiou o eleitorado do PPN).
No
fim das contas, a visão de Newton para o PPN acabou por triunfar. Mas o seu
regresso do exílio em 1976 desencadeou outra luta pelo poder que acabou por
destruir o PPN.
A relação
com a esquerda
O
Partido dos Panteras Negras não se isolou do resto da esquerda. O seu núcleo de
Chicago, por exemplo, tinha uma relação de trabalho com os Young Patriots, uma
organização composta sobretudo pelos filhos e filhas dos migrantes brancos dos
Apalaches. Em 1969, o PPN convidou os Young Patriots e outras organizações de
esquerda para virem a Oakland participar na United Front Against Fascism
Conference.
A
liderança de Hampton era crucial para estabelecer esta ligação. Enquanto líder
do núcleo de Chigago, Hampton dirigia-se aos brancos pobres como parte do seu
esforço para forjar uma aliança antiracista e anticapitalista dos necessitados.
Como explicou Hampton, “Não vamos lutar contra o racismo com racismo, mas sim
com solidariedade. Não vamos lutar contra o capitalismo com o capitalismo
negro, mas sim com o socialismo”. O seu assassinato em 1969 destruiu o Partido
dos Panteras Negras e retirou ao movimento um dos seus líderes mais jovens e
promissores.
Os
Panteras também estiveram envolvidos no movimento
antiguerra, considerando que a sua luta pela libertação negra e a
autodeterminação estava ligada aos movimentos de resistência no Vietnam,
Argélia e noutros países. Chegaram mesmo a abrir um núcleo na Argélia em 1969.
Quando se envolveram no movimento anti-alistamento (“uma das primeiras alianças
bem sucedidas que tivemos, sublinhou Seale), os Panteras deixaram claro que os
abusos que os Afro-Americanos enfrentavam às mãos da polícia nos EUA eram o
reflexo da repressão que os vietnamitas e outros grupos sofriam dos militares
norte-americanos.
Os
textos de Newton sobre a ideologia do Partido dos Panteras Negras no fim dos
anos 1960 mostram uma tendência mais ampla entre os radicais Afro-Americanos –
de Martin Luther King, Jr a Stokely Carmichael – que ligavam o racismo no país
ao imperialismo no estrangeiro. Newton, por exemplo, exprimiu muitas vezes o seu apoio à Palestina nos seus
artigos, que eram muito lidos.
Nos
anos 1970, enquanto membros da esquerda Black Power mais vasta, os Panteras
entraram nos debates sobre o caminho a seguir pelos Afro-Americanos após o
declínio do Movimento pelos Direitos Civis. Figuras de proa do movimenrto Black
Power como Amiri Baraka (LeRoi Jones antes da sua adesão ao nacionalismo negro
no fim dos anos 1960) tornaram-se reconhecidos marxistas e combateram a
retórica nacionalista.
Os
Panteras, embora com menos nacionalismo negro do que a imaginação popular lhe
dá, nunca renegou a sua marca Black Power. Mas gastaram bem mais tempo a
refletir sobre a melhor combinação de nacionalismo negro e socialismo – e
influenciou a prática de outros grupos de esquerda nesse processo.
O legado
dos Panteras
A
importância do trabalho dos Panteras Negras permanece ainda hoje, por muitas
razões. Primeiro, recordam-nos que o problema da brutalidade policial está conosco
há muito tempo (Martin Luther King, Jr até o mencionou no seu muito citado, e
muitas vezes mal interpretado, discurso do “I Have a Dream”. De fato, os
protestos que se seguiram à morte de Denzil Dowell em North Richmond, uma
localidade perto de Oakland, em abril de 1967, tiveram um papel determinante no
crescimento do PPN, que passou de uma pequena organização de quadros a uma
grande força política e social.
Em
segundo lugar, o PPN mostra-nos um bom modelo de ativismo de base e de
ideologia em ação. Enquanto o grupo era dilacerado pelos conflitos entre Newton
e Cleaver nos anos 1970, os Panteras continuaram a fazer um importante trabalho
no terreno em Oakland. Os seus “programas de sobrevivência” dirigiram-se a
Afro-Americanos na pobreza que não conseguiam apoio da administração local. E
sobretudo, eles ligaram o seu programa de educação e pequeno-almoço gratuito a
um projeto político mais amplo. Enquanto mistura genial da prática com o
visionário, o trabalho comunitário do PPN foi o trabalho mais revolucionário
que fizeram.
O
Partido dos Panteras Negras foi também um importante campo de treino para as
mulheres ativistas Afro-Americanas, como Kathleen Cleaver e Elaine Brown. Tal
como no Movimento pelos Direitos Civis, as mulheres fizeram boa parte do
trabalho básico do PPN.
Isto
não quer dizer que o PPN fosse um exemplo no que toca aos direitos das
mulheres. Quando Seale e Newton formaram o grupo, dirigiram o seu apelo aos
“irmãos do bairro” (Noutras ocasiões, a sua retórica foi bastante progressista:
em agosto de 1970, Newton tornou-se um dos primeiros líderes Afro-Americanos de
qualquer estirpe ideológica a exprimir solidariedade com os gays e lésbicas
norte-americanos. Mesmo durante o mandato de Brown na presidência do PPN; a
direção do grupo permaneceu esmagadoramente masculina e as mulheres Panteras
eram sujeitas a abusos verbais e físicos.
Ainda
assim, Brown e outras mulheres Panteras Negras conquistaram o seu espaço e
deram um contributo imenso para a organização.
Finalmente,
o legado do Partido dos Panteras Negras pode ser visto hoje no movimento Black
Lives Matter. As suas reivindicações por justiça econômica, poder comunitário e
compensações fazem lembrar a plataforma de dez pontos do Partido dos Panteras
Negras. E tal como os movimentos Black Power e dos Direitos Civis, o movimento
Black Lives Matter teve de enfrentar repetidamente a cobertura noticiosa
negativa e a crítica de muitos liberais norte-americanos para “irem mais
devagar”.
Agora
que passam cinquenta anos desde a sua fundação, os Panteras devem ser
recordados por mais do que as suas bóinas negras e as shotguns. Apesar das suas
falhas, eles combinaram a urgência e a transformação numa ideia política
poderosa, defendendo uma aliança multirracial contra o racismo, o capitalismo e
o imperialismo que resultou em ganhos tangíveis para os mais explorados. Essa
ideia continua hoje a ser tão inspiradora como então.
Artigo de
Robert Greene II publicado pela revista Jacobin (link is external). Traduzido
por Luís Branco para o esquerda.net.
http://www.esquerda.net/artigo/recordar-o-partido-dos-panteras-negras/45207?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter
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