“O
resultado é no mínimo sombrio para o mundo do trabalho e presenciaremos a
generalização de um novo dicionário empresarial: teremos ‘uberização’ ampliada
para todas as profissões, ‘pejotização’ alargada nos mais variados ramos de
atividade econômica, trabalho ‘voluntário’ que mais seremos ‘obrigados’ a fazer
para sobreviver”, escreve Ricardo Antunes, sociólogo, em artigo publicado por O
Estado de S.Paulo, 06-11-2016.
Eis
o artigo.
Luiz
Werneck Vianna, em Liberalismo e Sindicato no Brasil, oferece uma fina
caracterização da República Velha: nosso liberalismo erigiu-se sob os escombros
da sociedade escravocrata e o máximo que conseguimos construir foi um
liberalismo excludente. Que encontrava nas oligarquias agrárias, em particular
na cafeeira, uma predominância de poder que dispensava inclusive a nascente
burguesia industrial.
E
que alijava as classes médias emergentes, mantendo o operariado à margem de
qualquer legislação social do trabalho, que era quase inexistente. Tornou-se
célebre a frase atribuída a Washington Luiz: a “questão social era caso de
polícia”.
A
Greve Geral de 1917 demonstrava, entretanto, que o cenário social estava em
aberta mutação. Poucos anos depois, em 1922, eclodiu a Semana de Arte Moderna,
mesmo ano de nascimento do Partido Comunista. E as camadas médias começavam a
se rebelar nas marchas e colunas que se espalharam pelo país. O liberalismo
excludente tinha os seus dias contados.
Já
ao final da década, uma forte dissensão no interior das frações dominantes foi
o mote para a mudança. A “Revolução de 1930”, em seu significado mais profundo,
foi mais do que um golpe e menos do que uma revolução (burguesa). Combinava um
sutil traço prussiano, assentado em um país de origem colonial e dependente.
Foi
assim que o Varguismo reordenou o poder, criando um novo equilíbrio entre as
distintas frações burguesas, incluindo as oligarquias até então coadjuvantes e
também a nascente burguesia industrial. Moldada por um condottiere que buscava
na classe trabalhadora a base social para manter o equilíbrio instável entre os
“de cima”.
A
engenharia política de Vargas foi especial e está estampada na CLT de 1943. Era
preciso incorporar a classe trabalhadora ao projeto industrializante em
gestação, formalizando-a e estabelecendo um padrão mínimo para que sua
reprodução fosse garantida. E, ao mesmo tempo, para garantir um patamar mínimo
para a extração do trabalho excedente pretendido pela indústria que se
expandia. Regulamentar a mercadoria-força de trabalho era um imperativo do novo
governo para fortalecer o mercado interno sem o qual a indústria tenderia a
patinar.
E,
para que não houvesse dúvida de que lado estava Vargas, a CLT consolidou o
sindicalismo atrelado ao Estado e desprovido de autonomia, iniciado em 1931. O
imposto sindical, a unicidade (direito de existência, definido por lei, de um
único sindicato por categoria em uma base territorial), além do imperioso
reconhecimento dos sindicatos pelo Estado, tudo isso enfeixava o círculo que
garantia a tutela estatal sobre os sindicatos. De um lado, a CLT garantia
melhores salários e condições de trabalho, regulamentando a jornada,
estabelecendo férias, descanso semanal etc. E, de outro, tolhia qualquer
exercício de autonomia e independência sindicais.
Veio
a redemocratização, depois uma nova ditadura (a militar) e a CLT se manteve. Posteriormente,
com a Constituição de 1988, novas conquistas se somaram, como o direito de
greve e de organização sindical dos funcionários públicos, dentre tantas
outras. A CLT consolidou-se, então, como uma espécie de Constituição do
Trabalho no Brasil, um patamar básico de direitos do trabalho.
Mas
o mundo já vinha sofrendo uma hecatombe, desde o início da década de 1970, com
uma crise econômica de proporções globais que redesenhou a produção e a vida
social. Tudo que parecia sólido estava derretendo. Veio, então, o advento da
pragmática da privatização e da derrogação dos direitos do trabalho,
inicialmente sob o comando de Margaret Thatcher e que se esparramou para a
totalidade do mundo. Tendo a financeirização como a sua principal impulsão.
Se
a CLT sobreviveu aos primeiros experimentos do neoliberalismo no Brasil (e do
social-liberalismo), agora os capitais estão bastante alvoroçados. A
Confederação Nacional da Indústria (CNI), com seu documento “101 Propostas para
a Modernização Trabalhista”, desde 2012 não tem outro objetivo senão implantar
imediatamente o que denominei como “sociedade da terceirização total”. Se já
não bastasse a terceirização das atividades-meio, agora exige a aprovação do
PLC 30/2015 (que se encontra para votação no Senado), isto é, a terceirização
integral nos mais distintos ramos e setores da atividade privada.
Em
clara sintonia com a formulação da CNI, o documento Uma Ponte para o Futuro, do
PMDB de Michel Temer, defende a aprovação imediata do “negociado sobre o
legislado” nas relações de trabalho. Se isso se efetivar, será finalmente
quebrada a espinha dorsal da CLT, em um período cujo desemprego explosivo já
está na casa dos 12 milhões de trabalhadores, segundo os últimos dados do IBGE.
O
resultado é no mínimo sombrio para o mundo do trabalho e presenciaremos a
generalização de um novo dicionário empresarial: teremos “uberização” ampliada
para todas as profissões, “pejotização” alargada nos mais variados ramos de
atividade econômica, trabalho “voluntário” que mais seremos “obrigados” a fazer
para sobreviver.
Como
nos exemplos recentes da Olimpíada no Rio e da Feira Internacional de Milão.
Ampliar-se-ão as inúmeras modalidades de emprego nas fábricas da terceirização
global que seguem o modelo asiático. E generalizaremos os exemplos do zero hour
contract (contrato de zero hora), herança britânica que disponibiliza todos e
todas para realizar trabalhos, mas que são desprovidos de direitos. Mas é bom
recordar que um tribunal trabalhista britânico acaba de reconhecer, em primeira
instância (em 28 de outubro), os direitos de trabalhadores do aplicativo Uber.
Recentemente,
a socióloga francesa Danièle Linhart definiu esta pragmática como “desmedida
empresarial”, em expansão na era do trabalho online e digital, de que são
exemplos o infoproletariado, o cibertariado e o precariado.
Os
críticos mais ásperos da legislação protetora do trabalho dizem: there is no
alternative! A linhagem que a defende contra-ataca: que país queremos, um que
se aproxime aos padrões da civilização ou que caminhe indelevelmente para o
modelo asiático?
http://www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias/562037-precariado-do-brasil-uni-vos-reforma-de-temer-quebra-espinha-dorsal-da-clt-diz-sociologo
Nenhum comentário:
Postar um comentário