Recursos
ameaçados. Fabrique uma crise e atropele o Estado.
Geólogo
Luiz Fernando Scheibe, da Universidade Federal de Santa Catarina, critica
esforço do governo em privatizar o Aquífero Guarani, riqueza subterrânea de 1,1
milhão de quilômetros quadrados.
“A ideia de conceder tudo à iniciativa
privada, esse modelo neoliberal, é estimulada por uma crise fabricada. Essa
ideia de que você fabrica uma crise para que durante a crise os governos, os
parlamentos e as pessoas aceitem negociar coisas que antes eram inegociáveis
veio do Milton Friedman (economista norte-americano, 1912-2006, um dos
ideólogos do liberalismo de mercado).”
A
análise cairia como uma luva para o político do campo progressista, avesso ao
golpe parlamentar consolidado no país com o impeachment de Dilma Rousseff, mas
vem de um geólogo, o professor emérito da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC) Luiz Fernando Scheibe, e surge no meio do discurso de quem está
seriamente preocupado com a soberania nacional e com o direito de acesso às
riquezas do subsolo brasileiro.
Nesta
entrevista, Scheibe fala do Aquífero Guarani, área de 1,1 milhão de quilômetros
quadrados que compreende as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste do país e
também parte de Argentina, Uruguai e Paraguai, abrigando um imenso reservatório
subterrâneo de água, estratégico para o meio ambiente e o desenvolvimento
sustentável. E que está no alvo do golpe, já que, a exemplo do pré-sal, também
o aquífero poderá ser privatizado. No início de setembro, o governo Michel
Temer conseguiu aprovar o Programa de Parcerias para Investimentos (PPI),
instrumento para abrir tais riquezas às multinacionais.
“Falar
na privatização do aquífero é como falar na privatização de uma área que tem
praticamente um oitavo da área do Brasil. Não seria algo viável”, afirma
Scheibe, com a autoridade de quem conhece as riquezas que o subsolo do país
ainda guarda.
Mas
não é só a privatização que ameaça esse recurso natural, um dos maiores do
mundo. Em Ribeirão Preto (SP), o uso intensivo de suas águas já dá sinais de
esgotamento, e ainda há empresas que querem explorar o gás de xisto nas camadas
inferiores ao aquífero, o que seria mais uma aberração, já que a técnica utilizada,
o fraturamento hidráulico – ou fracking, técnica de extração que consiste em
injetar no solo areia e produtos químicos sob alta pressão, provocando fissuras
no interior da rocha para a retirada de combustíveis líquidos e gasosos –,
mostra grande impacto ambiental nos Estados Unidos, onde tem sido adotado. “O
grande drama da questão do gás de xisto está relacionado com o fato de que
primeiro ele ameaça a qualidade das águas e, em seguida, a qualidade do ar”,
diz o professor.
O sr. diria que o Aquífero
Guarani está em processo de privatização?
Nossa
preocupação maior é com os aquíferos Guarani e Serra Geral – este último é um
aquífero que está sobre o Guarani. O acesso à água é considerado direito
fundamental de todos os seres humanos. Falar em privatização de qualquer fonte
de água é algo que foge ao conceito de direito humano fundamental da água.
Quanto à privatização de uma determinada fonte de água, não existe normalmente
uma privatização, mas uma possibilidade de outorga, que é uma concessão feita
pelo Estado. O Aquífero Guarani tem 1,1 milhão de quilômetros quadrados. Falar
na privatização do aquífero é como falar na privatização de uma área que tem
praticamente um oitavo da área do Brasil. Não seria algo viável.
Mas
é uma discussão pertinente…
Sim,
é extremamente pertinente. O acesso a essa água deve ser sempre público e não
pode ser privatizado. A água não deve ser concedida de jeito nenhum, ainda que
exista a possibilidade de outorga para determinados usos, desde que eles não
comprometam o acesso das outras pessoas. No caso do Aquífero Guarani, por causa
da extensão, o grande problema é o uso localizado do aquífero. Vamos tomar como
exemplo a cidade de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. Essa cidade está
localizada sobre uma área de afloramento do aquífero e uma parte da área tem
cobertura pelo outro sistema aquífero, que é o Serra Geral. Em Ribeirão, estão
fazendo uso tão intenso que, ao cabo de 50 anos de exploração, o nível da água
dentro do aquífero já baixou mais de 60 metros, o que significa que a reserva
disponível está diminuindo drasticamente.
Também
é importante a gente ter clareza do que é o aquífero – uma rocha que contém
água nos seus poros ou em suas fraturas. Não se trata de um corpo de água, mas
de um corpo de rocha que contém água. E o movimento da água dentro do aquífero
é extremamente lento. Enquanto em um rio a água se movimenta em metros por
segundo, dentro do aquífero a água se movimenta em velocidade de metros por
ano. O que acontece em uma determinada parte do aquífero tem uma abrangência
local. O fato de em Ribeirão Preto estarem praticamente esgotando as
possibilidades de exploração não quer dizer que o restante da reserva esteja
sendo ameaçado.
Mas qual seria a
situação geral do aquífero, considerando que ele se espraia também pelos países
vizinhos (Uruguai, Argentina e Paraguai)?
Exceto
em algumas localidades em que ele está sendo superexplorado, ele continua sendo
uma reserva extremamente importante do ponto de vista estratégico.
É a maior reserva de
água subterrânea do mundo?
Uma
das maiores do mundo. Sua importância está mais ligada com o fato de que ela
ocorre em uma área que é a mais habitada e industrializada da América do Sul.
Só para exemplificar: na Amazônia tem um aquífero maior, Alter do Chão, que é
quatro vezes maior, mas ele está em baixo do rio Amazonas e no meio da
floresta. Então, não é um local em que essa água tem uma importância
geopolítica, digamos assim. Embora não seja a maior reserva do mundo, 60% do
PIB dos quatro países estão na área de ocorrência do Aquífero Guarani.
O Senado aprovou medida
provisória que autoriza o chamado PPI, um dos tentáculos do governo Temer. Essa
medida, que amplia possibilidades de privatizações e concessões, chega a
preocupar no que se refere ao aquífero?
Olha,
essa medida preocupa demais com relação a muitas outras questões e também em
relação ao aquífero, porque antes de tudo é um patrimônio do povo dos quatro
países em que ele ocorre. O fato de que você vai fazer concessões no longo
prazo, especialmente para empresas estrangeiras, eventualmente limitando o
acesso das populações a essa riqueza, é extremamente preocupante, porque se
está concedendo um direito que é da população. A privatização ou outorga que
limite o acesso de outras pessoas ou mesmo de empresas a esse recurso é
extremamente preocupante. Como preocupa muito que o Estado brasileiro esteja
concedendo a empresas estrangeiras, mesmo estatais de outros países, o acesso
ao petróleo, ao pré-sal. A negociação feita pelo governo e pela Petrobras sobre
a área de Carcará (em Santos, litoral paulista) é um exemplo disso. Um
patrimônio que pode ser estimado em pelo menos US$ 60 bilhões foi entregue a
uma empresa estatal norueguesa por US$ 2 bilhões. Temos de ficar muito preocupados.
Isso já está acontecendo
na Argentina e no Paraguai, não?
O
principal país que tem grandes problemas com relação à privatização da água é o
Chile. Lá a ditadura do Pinochet realmente privatizou todas as fontes de água.
Hoje, toda a água é objeto de negociação e não há garantia de acesso para a
população em geral.
O que significa o acordo
sobre o Aquífero Guarani, firmado em San Juan, na Argentina, em 2 de agosto de
2010 (já aprovado pela Comissão de Minas e Energia da Câmara, mas que ainda
será analisado pelo plenário)?
Sem
dúvida, esse acordo é interessante. Diz que cada um de seus signatários, no seu
território, é responsável pelo bom uso e pela preservação do aquífero.
Mas chega a ser uma
garantia contra a privatização?
Não,
porque cada país faz o que quiser. Eu acho mais importante o fato de sermos
signatários da resolução da ONU que garante a água como um direito humano
fundamental. Algo que talvez você pudesse pesquisar para ter uma ideia de como
acontecem essas coisas é o caso da água mineral São Lourenço, na qual a
concessão foi dada à Nestlé, que comprou os direitos de engarrafamento. Como a
empresa tem uma rede de distribuição extremamente poderosa e diversificada, no
nosso país e em outros, está vendendo tanta água que a extração na fonte está
prejudicando a possibilidade de utilização do balneário, que na cidade (no sul
de Minas Gerais) é importante turisticamente como um direito de acesso a todos.
Está havendo aí uma forma de exploração para o capital que está fazendo com que
a população local seja prejudicada por essa privatização. É isso que não
podemos admitir, e temos de insistir que não deve ocorrer.
Cresceu o interesse pela
exploração do gás de xisto em camada inferior ao aquífero. Essa exploração, que
tem como base a tecnologia do fraturamento hidráulico, representa ameaça para o
aquífero?
Existe
toda uma campanha, digamos assim, no sentido de que realmente a utilização do
fracking nas áreas de ocorrência desses aquíferos, tanto o Guarani quanto o
Serra Geral, como outros que temos, ameaça esses reservatórios, e também as
águas superficiais. A tecnologia do fracking utiliza grandes quantidades de
água, e o grande problema é que praticamente a metade da água utilizada volta
para a superfície extremamente contaminada. Nos Estados Unidos, a prática mais
frequente para se livrar dessa água é injetá-la em poços profundos em outras
formações. E já está comprovado que nos locais em que estão fazendo essa
reintrodução da água em camadas profundas há um aumento na quantidade de
pequenos terremotos. Mas há pouco tempo aconteceu em Oklahoma um terremoto
relativamente grande, e todo mundo diz que nas áreas em que estão fazendo esse
tipo de injeção os terremotos são mais frequentes.
Mas
o grande drama da questão do gás de xisto está relacionado com o fato de que
primeiro ele ameaça a qualidade das águas e em segundo lugar, a qualidade do
ar. Certamente existem fugas de gases nocivos à saúde que vão ao ar também. Por
outro lado, eles representam uma ocupação de territórios muito grande, porque
acabam criando a necessidade de muitas vias de acesso, então há uma certa
incompatibilidade dessa produção com outras atividades. No oeste do Paraná, há
os cultivos e é uma das regiões em que já foi negociada pela Agência Nacional
do Petróleo (ANP) a autorização para a pesquisa do gás de xisto. Ainda não
existe uma autorização para extração, mas para pesquisa.
O
gás de xisto até agora não está explorado na área do aquífero, mas houve leilão
de lotes de exploração…
Não
temos notícia de nenhuma exploração. Nesses leilões que aconteceram, as
empresas manifestaram interesses, assumiram compromissos, algumas chegaram a
assinar contratos, inclusive com a ANP, mas como houve essa campanha contra a
imediata autorização e utilização do gás de xisto, na maior parte dos estados
em que houve esses leilões o Ministério Público Federal entrou com petições e
os juízes federais deram liminares proibindo ou suspendendo a vigência desses
contratos. A questão está toda judicializada hoje. Em julho, participei em
Porto Seguro de uma mesa-redonda com a presença da diretora-geral da ANP, Magda
Chambriard, em que ao final ela própria disse que não via inconveniente em que
se assinasse, por exemplo, um Termo de Ajustamento de Conduta suspendendo por
pelo menos cinco anos qualquer tipo de exploração de gás de xisto no país.
Então, há um acordo de que realmente não há pressa.
E
essa ideia de uma moratória para o gás de xisto vai nos dar a possibilidade de
estudar melhor essas questões e ao mesmo tempo de verificar até que ponto é
realmente interessante para o país embarcar nesse tipo de exploração. Embora
nos Estados Unidos ela esteja sendo um sucesso, não há esse mesmo sucesso em
outro lugar. E as condições dos Estados Unidos para esse tipo de exploração são
completamente diferentes, porque eles têm um conhecimento geológico de seus
terrenos muito maior do que nós. Têm uma necessidade absoluta de fontes
internas de petróleo e nós temos, até agora pelo menos, o pré-sal. Eles estão
praticamente espremendo o bagaço da terra deles, para tirar o resto de petróleo
que têm. Mas nós não temos essa necessidade, e isso tem um custo ambiental,
social e de capital extremamente grande.
Nós hoje podemos dizer
que a comunidade científica não tem mais dúvida em relação à agressividade do
fraturamento hidráulico para o meio ambiente?
Não
há nenhuma. Apesar disso, há muitas pessoas que consideram que a relação
custo-benefício apontaria para o fato de que essa agressão ao meio ambiente
pode ser feita para que exista uma maior disponibilidade local de gás,
energética etc.
É possível afirmar que
pelo menos em parte essa tecnologia e a própria exploração do xisto permitiram
aos Estados Unidos jogar para baixo o preço do petróleo no mercado
internacional?
Não
é exatamente isso, mas podemos dizer que provavelmente o preço do petróleo
internacional baixou como uma reação dos demais países produtores de petróleo
na tentativa de tornar antieconômica a exploração do gás de xisto, que é uma
coisa que na verdade está acontecendo. Praticamente todas as pequenas empresas
produtoras de gás de xisto nos Estados Unidos estão hoje com dívidas muito
maiores do que o seu patrimônio. Se persistir esse baixo preço do petróleo,
elas não vão conseguir resistir a esse assédio dos preços baixos.
O preço baixo interessa
a quem?
Às
grandes empresas produtoras de petróleo, no sentido de eliminar a concorrência
dessa disseminação de pequenas empresas, que aconteceu nos Estados Unidos.
Essas pequenas aos poucos vão sendo absorvidas pelas grandes. Agora, isso tem
efeitos colaterais muito importantes. A baixa no preço do petróleo acaba sendo
um fator de retardamento da implantação das fontes alternativas de energia. Com
o petróleo a US$ 100 o barril, a energia eólica fica muito mais interessante,
contra a energia fóssil. Já com o petróleo a US$ 40 você pode pensar em
termelétricas, mas a US$ 100 o barril, energia elétrica, fotovoltaica (solar) e
hidráulica, que a gente discute até que ponto é tão limpa assim, ficam mais
competitivas. Isso (o preço baixo do petróleo) faz com que a implementação
dessas outras modalidades seja retardada.
No estado de São Paulo,
o governo pretende fazer concessões de parques estaduais à iniciativa privada.
Considerando que nesses parques há áreas de recarga dos aquíferos, o sr. vê
também essas concessões de parques como ameaça?
Um
parque estadual pela legislação é de uso extremamente limitado. E normalmente
tem também um plano de manejo que define uma área central do parque que é
considerada praticamente isenta de qualquer tipo de uso humano. E há uma parte
onde existe possibilidade de exploração turística ou de lazer. Mas a ideia de
conceder tudo à iniciativa privada, esse modelo neoliberal, é estimulado por
uma crise fabricada. Essa ideia de que você fabrica uma crise para que durante
a crise os governos, os parlamentos e as pessoas aceitem negociar coisas que
antes eram inegociáveis veio do Milton Friedman. Esse modelo está escrito há 80
anos – se você quer mudar as coisas, fabrique uma crise. Essas concessões do
pré-sal, por exemplo. Cinco anos atrás, o parlamentar que apresentasse um
projeto desses estaria massacrado, tanto que o José Serra (senador pelo PSDB-SP
e atual ministro das Relações Exteriores) apresentou esse projeto cinco anos
atrás e ele não caminhou. Agora você fabrica uma crise, muda o governo em cima
disso e consegue aprovar uma excentricidade como essa, de mudar um modelo que
preserva o recurso para o Estado, e consequentemente para a população, por
outro modelo que concede isso para outro Estado ganhar dinheiro em cima, como
foi a venda de Carcará para a Noruega. Isso faz com que aumente o nível de
vida dos noruegueses em detrimento do nível de vida dos brasileiros. Como se os
noruegueses precisassem disso.
Existem mais ameaças
rondando o aquífero Guarani?
Tem
as ameaças do uso abusivo de fertilizantes químicos e de agrotóxicos nas áreas
de ocorrência desses aquíferos. No caso do Guarani, sua maior parte não está à
flor da terra, mas embaixo de outros aquíferos, no caso o Serra Geral, e no
noroeste do Paraná e parte de São Paulo tem outro aquífero muito importante,
que é o Bauru. Todos estão sujeitos ao uso dessa quantidade imensa, não só dos
agrotóxicos, dos quais o Brasil é campeão mundial de utilização, mas dos
próprios adubos e fertilizantes químicos. Esses produtos têm muitos elementos
que são prejudiciais à saúde. O uso intenso de fertilizantes e agrotóxicos,
consequência direta do domínio exercido pela Monsanto, que agora foi comprada
pela Bayern, esse domínio obrigando praticamente o produtor a usar sementes
transgênicas, que por seu lado obrigam o uso do glifosato, que se revelou
cancerígeno. Enfim, esse é um modelo que afeta as nossas águas superficiais e
provavelmente dentro de algum tempo, já que subterraneamente o movimento é
lento, afetará as nossas águas subterrâneas. Esse é outro problema extremamente
grave.
http://desacato.info/temer-abre-espaco-para-entrega-do-aquifero-guarani/
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