A
iniciativa do governo federal de pregar o fim da quarentena adotada por
prefeitos e governadores — de forma contrária às recomendações das autoridades
sanitárias e da comunidade científica — fez com que o artigo 486 da CLT
ganhasse relevância inédita nas redes sociais.
Ao
tratar com a imprensa, o presidente Jair Bolsonaro citou o artigo em questão.
"Tem um artigo na CLT que diz que todo empresário ou comerciante que for
obrigada a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do
Executivo (...) Os encargos trabalhistas quem paga é o governador e o prefeito.
Tá ok?”
A
fala se insere em contexto de atritos políticos entre o presidente da República
e os chefes dos executivos estaduais e municipais.
Não
demorou muito para o discurso ser repetido pela militância virtual do
presidente e o assunto ganhar relevância no debate público. A ConJur ouviu
especialistas em Direito do Trabalho e Tributaristas para entender se a
aplicação de tal dispositivo é viável em um cenário de pandemia como o atual.
Prevê
o artigo 486:
No caso de paralisação temporária ou
definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou
federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a
continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a
cargo do governo responsável.
Para
o professor de Direito do Trabalho da FMU e organizador do e-book digital
Coronavírus e os Impactos Trabalhistas (Editora JH Mizuno), Ricardo Calcini, é
preciso registrar inicialmente que o artigo 486 da CLT prevê que a
responsabilidade do Poder Público se restringe à indenização da multa do FGTS e
"não ao pagamento de salários e demais verbas contratuais como férias e
13º salário".
"Há
quem defenda que o aviso prévio indenizado também ficaria a cargo do Poder
Público, mas não me perfilho a esse entendimento, na medida em que essa parcela
não está expressa no artigo 486 da CLT", explica.
Elton
Batalha, professor de Direito Trabalhista do Mackenzie, acredita que essa tese
deve ser muito utilizada em ações nos próximos meses, mas não acha que ela
prosperará.
"Provavelmente,
quando o Judiciário apreciar essas ações, considerará que o 486 da CLT não é
aplicável à situação, pois o ato governamental de determinação de quarentena (e
consequente paralisação de atividade) é justificável ante o surto da Covid-19.
Caso a atitude governamental não se justificasse cientificamente, seria
diferente", diz.
Batalha
esclarece que a ação dos governos em várias partes do mundo estão de acordo com
diretrizes da OMS. "Além disso, é claro que, embora não conste na decisão
judicial, é provável que questões práticas embasarão o raciocínio dos
julgadores (impossibilidade de assunção do prejuízo vultoso pelos cofres
públicos, por exemplo)", diz.
O
mestre em Direito do trabalho e sócio da Briganti Advogados, Alexandre
Silvestre, aponta que no caso de paralisação temporária ou definitiva do
trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, deve
prevalecer o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo
responsável.
"É
preciso entender o que motivou o poder público tomar a decisão? Foi ao que nos
consta uma medida para proteger a saúde pública. Diante deste contexto, o
judiciário decidirá se o fechamento do comércio, por exemplo, foi necessário,
ou uma medida exagerada, arbitrária, desarrazoada do Poder Público",
argumenta.
Fato do Príncipe
Geraldo
Fonseca, sócio titular da área Trabalhista Geral do Martorelli Advogados,
acredita que se "a empresa for submetida a um insustentável desequilíbrio
financeiro decorrente do cumprimento de medidas impostas pelas autoridades
governamentais, sem prescindir da cautela e da análise técnica devida, poderá
ela rescindir os contratos de seus empregados tendo como motivo justificador o
'fato do príncipe', à luz dos artigos 486, 501 e seguintes da CLT".
Em
reportagem publicada nesta quinta-feira (26/3), a ConJur noticiou decisão
judicial que aplicou analogamente o "fato do príncipe" para determinar
a prorrogação da data de pagamento de tributos.
Segundo
a doutrina, o fato do príncipe é o poder de alteração unilateral pelo poder
público de um contrato administrativo. Ou, além disso, medidas gerais da
Administração, não relacionadas a um dado contrato administrativo, mas que nele
têm repercussão, pois provocam um desequilíbrio econômico-financeiro em
detrimento do contratado.
"Nessa
hipótese", acrescenta Fonseca, "para os casos de contratos com
indeterminação de prazo, a empresa arcaria com o pagamento de metade das verbas
decorrentes de uma rescisão sem justa causa".
A
aplicação do "fato do príncipe" ao Direito do Trabalho não é
consensual. Os advogados Mauricio Gasparini e Mariana Bissolli Cerqueira
Cerezer, da área trabalhista escritório Finocchio &Ustra, argumentam
"na jurisprudência trabalhista atual, são raras as hipóteses de
autorização legal, pois normalmente a teoria do fato do príncipe, de origem do
Direito Administrativo, é aplicada em contratos entre o Estado e particulares,
o que não ocorre nas relações de trabalho, que se dão entre particulares
(empregados e empregadores)".
A
dupla afirma que o risco da atividade econômica é do próprio empregador (artigo
2º, § 2º da CLT e artigo 170, III da CF) e não pode repassá-lo a terceiro, o
que inclui órgão da administração pública, de modo que se espera a prova cabal
da sua indevida interferência.
Já
Antonio Carlos Aguiar, especialista em Direito do Trabalho e sócio do Peixoto
& Cury Advogados, tem uma visão diferente. "O factum principis é ato da
autoridade pública (federal, estadual ou municipal) que, por via administrativa
ou legislativa, impossibilita a continuidade da atividade da empresa.
Sua
aplicação exclui a responsabilidade do empregador de pagar as verbas
rescisórias, eis que o encerramento de suas atividades se deu por motivo de
força maior (não previsível, o que afasta o fato dele ter assunção jurídica no
risco do negócio). Em situação de calamidade pública, como a que estamos
vivendo, sim, é possível sua aplicação", diz.
Paula
Corina Santone, sócia da área Trabalhista do Rayes & Fagundes Advogados,
acredita que "a aplicação do artigo 486 da CLT para responsabilizar
governos estaduais e prefeituras pelos prejuízos causados aos empresários em
relação aos seus empregados por conta dos decretos de quarentena e fechamento
de serviços que não são essenciais é extremamente controversa e de difícil
aplicação no contexto atual".
Jurisprudência
A
advogada Mariana Machado Pedroso, especialista em Direito do Trabalho, sócia do
Chenut Oliveira Santiago Advogados, afirma que não há dúvida de que a pandemia
que vivemos se encaixaria na situação de força maior conforme definição
prevista no artigo 501 da CLT.
"No
entanto, tendo a discordar da possibilidade de se aplicar ao caso que vivemos a
previsão contida no artigo 486 da CLT, conhecida como 'fato do príncipe',
devido sobretudo à interpretação restritiva que a jurisprudência, ao longo dos
anos, foi dando ao referido instituto", explica.
Karen
Viero, especialista em Direito do Trabalho
Empresarial, sócia de Chiarottino e Nicoletti, afirma que por conta das
circunstâncias excepcionais da pandemia, a aplicação do fato de príncipe deve
ser observada com cautela, sendo certo que o assunto será muito discutido
perante a Justiça do Trabalho e merece ser interpretado em consonância com
todos os fatores jurídicos pertinentes.
Jessica
Aparecida Gonçalves Diniz, do escritório Nelson Wilians e Advogados Associados,
aponta que diante dos riscos irreversíveis que o coronavírus pode causar, o
Estado pode tomar medidas para reduzir ou impedir a disseminação do vírus.
Ela
cita a determinação do governo estadual de São Paulo, dada por meio do decreto
nº 64.881/2020, que determinou a suspensão das atividades comerciais do estado,
à exceção de atividades essenciais, a exemplo mercados e supermercados, postos
de gasolina, padarias e farmácias.
"A
medida tomada, ainda que vise a assegurar bem tutelado pela Constituição
Federal — o direito à saúde — acarreta danos inevitáveis às atividades
empresariais, de forma temporária ou até definitiva, ocasionando dispensa de
trabalhadores, até de maneira massiva. Com a ocorrência do fato narrado,
estaremos diante do factum principis, espécie do gênero de força maior, que
deste possui ligeira diferença, pois aquele possui fato impeditivo da
continuidade das atividades empresariais, determinada por autoridade
governamental", finaliza.
Rafa Santos é
repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor
Jurídico
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