Em
novembro de 1940, o democrata Franklin D. Roosevelt venceu o republicano Wendell
Willkie com uma diferença de 5 milhões de votos e conquistou o terceiro mandato
consecutivo na Casa Branca. O presidente viria a ser um dos condutores dos
Aliados no triunfo sobre o nazifascismo. Isso é o que conta a história, porque
no romance “Complô contra a América” Roosevelt foi abatido nas urnas de 1940
pelo aviador Charles Lindbergh.
O
livro de Philip Roth lançado em 2004 narra as agruras, o medo e a resistência
de famílias norte-americanas de origem judaica sob o imaginário governo do
pioneiro da travessia aérea sem escalas do Atlântico. Na vida real, Lindbergh
voava alinhado com esquadrilhas antissemitas e fascistoides. Havia sido
condecorado pelo III Reich, confraternizava com mandachuvas alemães e defendia,
para gáudio de Berlim, os Estados Unidos à margem da guerra que conflagrava a
Europa.
Na
ficção, sua administração perseguiu e intimidou os judeus. O personagem
repugnante bolado por Roth não ousou sugerir que se pesassem seres humanos em
arrobas. Pareceria inverossímil, tamanha a perversidade, a despeito do racismo
do protagonista. “Complô contra a América” não me sai da cabeça. Não ao fabular
um passado distópico, mas ao matutar sobre o porvir. Próximo, não distante. Do
Brasil, e não da “América”.
Duas
semanas atrás, 26.791 dias depois da morte de Adolf Hitler, a embaixada em
Brasília da República Federal da Alemanha publicou no Facebook um vídeo de 67
segundos sobre o nazismo. Virou alvo da artilharia dos negacionistas do
Holocausto da Segunda Guerra, os mesmos que em nossos trópicos negam ter
vigorado uma ditadura a partir de 1964.
“Farsa”,
zurrou um mentecapto com nome iniciado com agá (copiei o comentário, mas não
promoverei seu autor). Tal cretinice recebeu 944 curtidas. Um certo L. repudiou
a caracterização do hitlerismo como de direita. Ignorância faz mal. Arrogância,
também. Misturadas, resultam em indigência intelectual diabólica. H. e L.
empenham-se, constata-se em seus perfis, na campanha presidencial de Jair
Bolsonaro.
Nem
todo bolsonarista apregoa a inexistência do genocídio ou pinta como esquerdista
o regime nazista. Mas é entre bolsonaristas que tais sandices germinam.
“Nunca
tinha visto na Alemanha essa discussão sobre o nazismo ser de esquerda”, disse
à Deutsche Welle o cientista político Kai Michael Kenke. “Lá é muito simples:
trata-se de extrema direita e pronto. Essa discussão sobre ser de esquerda ou
direita parece existir só no Brasil. Se você perguntar para um neonazista na
Alemanha se ele é de esquerda, vai levar uma porrada.”
‘Fábricas
de desajustados’
Em
meados do mês, completou meio ano a impunidade dos assassinos de Marielle
Franco e Anderson Gomes. Em reação à cobrança sobre quem os matou e quem mandou
matá-los, W. relinchou no Twitter: “Pergunta lá na Maré, o tiro veio do
traficante revoltado com a piranhagem dela, ciúme puro”. “Já foi tarde”,
sibilou L. Talvez, ululou A., “uma fechada no trânsito pode ter causado a
morte” da vereadora e do motorista.
Um
dos três animais hidrófobos é robô, mas expressa o ódio de um ser humano de
alma putrefata. O pior robô é o existencial. Adivinhe quem é o candidato
preferido de W., L. e A. Ele mesmo, o indivíduo chamado de “Coiso” ou “Mito”, a
depender da cachola e do coração de cada um. L. reverenciou ontem o vice de
Bolsonaro: “Parabéns, general! Família tem que ter pai (macho), mãe (fêmea) e
filhos!!!! É a base de uma sociedade harmônica e estável!”
Hamilton
Mourão voltara, na véspera, ao estropício filosófico. Sua doutrina doentia
pressupõe que famílias “sem pai e avô, mas com mãe e avó” são “fábricas de
desajustados”, fornecedoras de mão de obra para o tráfico de drogas. O general
se referia a famílias pobres. Em 2007, Sérgio Cabral afirmara que a Rocinha é
uma “fábrica de produzir marginais”. O pensador militar acentuou, com o componente
de gênero, o preconceito de classe do governador gatuno.
É
compreensível a aversão maior a Bolsonaro entre o eleitorado feminino (49% de
rejeição entre as mulheres, 38% entre os homens, conforme o Datafolha). As
mulheres, incluindo mães e avós, chefiam 40% dos lares brasileiros. São 11
milhões os lares formados somente por mulheres e seus filhos. O capitão, o
general e sua turma se incomodam com o mulherio. Com mais de 2,5 milhões de
participantes, o grupo “Mulheres Unidas contra Bolsonaro” foi retirado do ar no
fim de semana, depois de um ataque cibernético no Facebook. Mourão declarou que
o grupo era “fake”. Não era.
Também
encrencam com a orientação sexual alheia. Empolgam hordas desatinadas. No
domingo, no clássico mineiro, um grupo de torcedores do Atlético bramiu: “Ô,
cruzeirense! Toma cuidado! O Bolsonaro vai matar veado!” O clube rechaçou as
“manifestações homofóbicas” e os “gestos de preconceito” e “incitação à
violência”.
HIV:
‘Problema deles’
Um
vídeo com entrevista de Bolsonaro em 2010 documenta uma das mais desapiedadas
abordagens de políticas públicas para cuidar de pessoas que vivem com o vírus
HIV. O deputado condenou “dinheiro do povo para tratar essa gente depois que
contrai a doença com esses atos”. Associou a contaminação à “vida mundana”.
A
entrevistadora Monica Iozzi ironizou: “Então dinheiro público vai para quem tem
câncer, para quem tem tuberculose. Para quem tem Aids, a pessoa que foi culpada
por pegar, ela que se vire…”. O atual candidato a presidente emendou: “Concordo
contigo”. Monica esclareceu: “Eu não acho isso”. Bolsonaro: “Se for na
sacanagem…”. Monica: “Se não se cuidou…”. Bolsonaro: “Problema deles”. Monica:
“Que morra…”. Bolsonaro: “Problema deles!”
Quem
veiculou a entrevista no Youtube não foi um detrator, mas Carlos Bolsonaro,
orgulhoso do pai. O vereador do Rio aplaudiu: “Os hipócritas dizem que quando o
vagabundo faz besteira cabe ao Estado zelar por sua irresponsabilidade. O
deputado federal Bolsonaro diz a verdade e dispara: ‘O Estado deve tratar de
doentes infortúnios [sic] e não de vagabundos que se drogam ou adquirem aids
por vadiagem’. Muitos não vão gostar, mas concordo”.
Em
alguns círculos, o jornalismo que o diga, a banalização das crueldades
bolsonaristas persistiu enquanto o deputado e seus partidários serviram a
propósitos como a deposição de Dilma Rousseff. Regrediu, porém ressurge na
desonestidade de igualar Bolsonaro a adversários que rejeitam selvagerias.
Autores
de não ficção costumam ser questionados sobre o motivo de não escrever
histórias ficcionais. Respondem que, diante de matéria-prima cotidiana tão
rica, para que inventar? A criatividade e a arte se expressam na maneira de
contar.
A
ameaça Bolsonaro é mais aterrorizante do que o país lindberghiano devaneado
pelo gênio de Philip Roth. Embora nos Estados Unidos o fascista tivesse virado
presidente, e no Brasil a eleição seja futuro. Mas lá o espectro era ficção;
aqui, é desgraçadamente real.
Bolsonaro
seria fortíssimo no 2º turno
O
Ibope divulgado ontem flagrou Bolsonaro com 28 pontos (+2), Haddad com 19
(+11), Ciro Gomes com 11 (igual), Geraldo Alckmin com 7 (-2) e Marina Silva com
6 (-3). Em uma semana, o candidato de Lula avançou 11 pontos, e sua diferença
para o líder diminuiu nove. Já é razoável especular: quando, ainda no primeiro
turno, ele ultrapassará o postulante da extrema direita?
A
pesquisa não foi ruim para Bolsonaro. Nas simulações de segundo turno, ele
vence Marina (41% a 36%) e empata com Haddad (40% a 40%), Ciro (40% a 39%, com
vantagem numérica do pedetista) e Alckmin (38% a 38%). O capitão é muito
competitivo.
Ele
já questiona preventivamente o placar eleitoral. Internado na unidade semi-intensiva
do Hospital Israelita Albert Einstein, fez uma transmissão ao vivo pela
internet. Sem provas, disse que “o PT descobriu o caminho para o poder, o voto
eletrônico”. Programas poderiam inserir na moita 40 votos por urna, de acordo
com o concorrente do PSL.
O
general Mourão propôs uma nova Constituição, mas não elaborada por
constituintes escolhidos por sufrágio universal. E sim obra de um conselho de
notáveis. Mais tarde, a Carta seria submetida a plebiscito.
Uma
vez golpistas, sempre golpistas.
https://theintercept.com/2018/09/19/bolsonaristas-negam-holocausto-desprezam-mulheres-marielle/
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