Em
recente artigo publicado na ConJur, Cezar Roberto Bitencourt fornece uma
análise minuciosa sobre a Lei 13.654/2018, que criou hipóteses de aumento da
pena para os delitos de furto e roubo, nos casos em que o meio de execução ou o
objeto da subtração esteja ligado a material explosivo, cabendo também à lei em
questão, especificamente em relação ao roubo, o estabelecimento de nova
redação, de cunho mais específico, para a hipótese de aumento de pena
decorrente do emprego de arma de fogo ou do qual resulte lesão corporal de
natureza grave.
Como
se trata, aqui, de uma análise de índole complementar ao quanto já suscitado
por Bitencourt no artigo inicialmente citado, deixa-se de ofertar uma abordagem
ampla sobre a integralidade das alterações já comentadas, privilegiando-se o
foco num único aspecto, referente aos efeitos da criação de uma nova redação
sobre a hipótese da prática de roubo à mão armada, buscando-se, em complemento,
o lançamento da discussão sobre a legitimidade dos novos parâmetros punitivos
estabelecidos em lei para a hipótese ora objeto de estudo.
O fim da discussão sobre a
arma de brinquedo
Até
o advento da nova lei ora estudada, havia no Brasil uma acalorada discussão
doutrinária/jurisprudencial sobre a eventual incidência da majoração da pena
nos casos de roubo caracterizados pelo emprego de simulacro de arma de fogo ou,
conforme uma denominação menos formal: de arma de brinquedo.
Para
que se compreenda a origem e razões da discussão ora tida por encerrada, faz-se
necessário revisitar o art. 157, §2º, inc. I, do CP, em sua redação atualmente
revogada, donde se extrai o quanto abaixo segue:
“Art.
157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça
ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena
– reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.
[...]
§2º
A pena aumenta-se de um terço até metade:
I
– se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;” (grifamos).
Como
visto, limitara-se o legislador a estabelecer uma previsão genérica sobre o
emprego de arma, sem esmiuçar a natureza ou qualidade do instrumento, o que
causara a propalada divisão, entre os aplicadores do direito, quanto ao
cabimento da causa de aumento de pena para as hipóteses em que o uso de arma
está mais ligado ao ardil, à criação de uma ilusão, do que ao perigo
propriamente dito, caso do simulacro ou arma de brinquedo.
Neste
ponto, parcela da doutrina e jurisprudência sustentava que diante da utilização
de um simulacro não incidiria a causa de aumento ora sob análise, vez que
faltaria à ação a necessária qualificação da ofensividade da conduta pela
criação do perigo extra decorrente do uso de arma de fogo (Paulo José da Costa
Júnior, cit., p. 83).
Em
sentido oposto, havia quem sustentasse que a majoração da pena não se ligava à
ofensividade da conduta, mas ao maior grau de temor infundido na vítima pela
visualização de uma arma, elemento presente em igual escala tanto para o uso de
arma real como para a fictícia (Nelson Hungria, cit., p. 58).
Conforme
dito, o debate se caracterizou pela natureza acalorada, contando inclusive com
constantes alterações de posicionamento por parte da jurisprudência, conforme
se destaca da claudicante orientação do Superior Tribunal de Justiça que, após
firmar posicionamento sumulado sobre o cabimento do aumento da pena no roubo
praticado com arma de brinquedo (Súmula 174, STJ), optou, no ano de 2001, pelo
cancelamento da Súmula em questão[2], posicionamento este novamente revisto,
anos mais tarde, para voltar a considerar o cabimento da majorante na hipótese
ora debatida (STJ, REsp 1662618-MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, DJe
22.06.2017).
Sem
que haja necessidade de adentrar ao mérito deste ou daquele posicionamento
supra relatado, observa-se ser evidente o atual descabimento da causa de
aumento de pena na hipótese em questão, tendo, por base, uma razão de índole
eminentemente legal, qual seja: o advento da Lei 13.654/18, que determinara a
revogação do inc. I, do parágrafo 2º, do art. 157, do CP, onde se encontrava a
previsão do aumento pelo emprego de arma (1/3 até metade da pena),
transportando-se a hipótese para o recém criado parágrafo 2º-A, do art. 157, do
CP, norma apta a estabelecer uma agravação de índole mais severa (padrão fixo
em 2/3 da pena), desde que constatado o emprego de arma de fogo.
Em
que pese a existência de uma legislação específica sobre armas (Lei
10.826/2003), bem como do posterior advento de um decreto para a regulamentação
desta (Decreto 5.123/2004), a delimitação do conceito de arma de fogo ainda
exige o socorro do antigo Decreto 3.665, de 20 de novembro de 2000, que
estabelece, em seu art. 3º, inc. XIII, caracterizar-se como arma de fogo toda:
“arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases gerados
pela combustão de um propelente confinado em uma câmara que, normalmente, está
solidária a um cano que tem a função de propiciar continuidade à combustão do
propelente, além de direção e estabilidade ao projétil.”
Evidente
que o conceito acima não abrange as hipóteses referentes à utilização de armas
brancas ou impróprias (facas, canivetes, porretes, caco de vidro), não sendo
possível, de igual maneira, sustentar a paridade entre a noção traçada no
Decreto supra aludido e os contornos de um simulacro ou arma de brinquedo.
Nessa
esteira, resta evidenciado que mais do que lançar uma pá de cal na discussão
sobre a caracterização ou não do simulacro como causa apta a estabelecer o
aumento de pena para o roubo, figura-se a inovação ora comentada,
especificamente em relação ao uso de simulacro de arma, como verdadeira novatio
legis in mellius, tudo a tornar forçosa a revisão das penas outrora agravadas
pelo emprego de arma ficta, operação esta a ser feita, em regra, pelos juízos da
execução (cf. Súmula 611, do STF).
Em
complemento, para os casos de roubo praticado com arma de fogo em período
anterior ao advento da nova lei ora comentada, o quadro se inverte,
qualificando-se a lei como novatio legis in pejus, haja vista ter sido adotado
um parâmetro de aumento maior do que aquele inicialmente previsto para a mesma
hipótese. Nesse ponto, deve ser respeitado, no momento da apenação destes
casos, o panorama previsto no hoje revogado inc. I, do §2º, do art. 157, do CP,
qual seja: com limitação de um terço até metade.
Da aplicação analógica à
extorsão
Conforme
o entendimento de Rogério Greco[3], o roubo e a extorsão compreendem crimes da
mesma espécie em sentido absoluto, vez que não apenas se localizam no mesmo
capítulo do Código Penal, como também caracterizam ofensa ao mesmo grupo de
bens jurídicos (patrimônio, liberdade individual e integridade física).
Resta
natural, portanto, a compreensão pela paridade de tratamento a ambas as
hipóteses delitivas, entendimento este reforçado pela identidade absoluta das
penas cominadas pelo legislador para os dois crimes (reclusão, de 4 a 10 anos,
e multa).
Neste
ponto, considerando-se que também a extorsão conta com uma causa de aumento de
pena decorrente do “emprego de arma” (art. 159, §1º, do CP), e considerando-se
ainda que aludida causa de aumento implica na majoração da pena em patamares
idênticos àqueles até então previstos para a mesma hipótese envolvendo os casos
de roubo (1/3 até metade da pena), tem-se por inequívoco que a ausência de remodelação
da hipótese no âmbito da extorsão está longe de caracterizar o resultado de uma
opção legislativa, apresentando-se, simplesmente, como fruto do esquecimento do
legislador a respeito da paridade de ambos os fenômenos delitivos.
A
situação parece afrontar a garantia constitucional da isonomia, mormente quando
adotado, para o princípio em questão, o entendimento capitaneado por Alberto
Silva Franco, para quem: “ocorre desrespeito ao princípio da igualdade quando
situações fáticas iguais são arbitrariamente cuidadas pelo legislador, como
desiguais ou situações fáticas desiguais recebem, de modo arbitrário,
tratamento igual." Em complemento, José Joaquim Gomes Canotilho sustenta
que: “quando não houver motivo racional evidente, resultante da ‘natureza das
coisas’, para desigual regulação de situações de facto iguais ou igual
regulação de situações de facto desiguais, pode considerar-se uma lei que
estabelece essa regulação, como arbitrária.”
A
esse modo, por força do princípio da igualdade, resta evidente a inviabilidade
da adoção, a partir do advento da lei ora estudada, de tratamento diverso para
os casos de roubo e extorsão, cabendo ao operador do direito a busca da
adequação da lei no plano normativo, a saber: i) aplica-se ao delito de
extorsão a exclusão da majorante com base em arma de brinquedo, mantendo-se a
base do aumento ali previsto (de 1/3 até metade); e ii) incide no delito de
roubo a exigência do uso de arma de fogo para fins de reconhecimento da
qualificadora, aplicando-se, por meio da combinação de leis, a pena prevista
para a agravante no âmbito da extorsão e consequente descarte da nova base
punitiva (fixada em 2/3).
Vale
consignar, como último argumento a favor da paridade entre os crimes e
consequente necessidade do tratamento isonômico, que o delito de extorsão
determina expressamente, por meio do §2º, do art. 158, do CP, a aplicação dos
critérios punitivos estabelecidos para o roubo na hipótese da vinculação à
circunstância “violência” (art. 157, §3º, do CP).
Nesse
lineamento, entende-se ser absolutamente inviável, por ofensa à garantia ora
destacada, a aplicação da agravante de cada delito como se fosse uma realidade
fático/normativa de índole independente, cabendo ao aplicador do direito,
conforme dito, a adequação dos novos dispositivos à realidade sistêmica em que
se encontram inseridos.
Das razões de aumento e do
princípio da proporcionalidade.
Por
fim, entendemos ser salutar a especialização promovida pela Lei no que tange à
vinculação entre a causa de aumento e o emprego de arma de fogo, vez que a
utilização do critério da maior ofensividade da conduta parece guardar
correspondência com as próprias razões fundamentais do delito de roubo.
Em
sentido oposto, não concordamos com o aumento fixo de 2/3 da pena proposto pela
nova lei, seja porque retira do juiz a capacidade de dosar, no caso concreto, o
cabimento de um aumento mínimo e máximo de acordo com as circunstâncias do
crime (conforme previsão anterior), seja porque ao incidir sobre a quase
totalidade da pena prevista para o crime, tende a majorante a extrapolar os
limites da proporcionalidade.
Como
demonstração da ausência de razoabilidade da punição ora comentada, destaca-se
que a nova lei prevê a mesma pena para o uso de arma de fogo e o emprego de
explosivo ou artefato que cause perigo comum, evento este de índole muito mais
grave. Em reforço, verifica-se que são praticamente equivalentes as punições
ofertadas para as hipóteses de roubo com emprego de arma de fogo e roubo com
advento de lesão corporal grave, vez que ao se aplicar a nova causa fixa de
aumento à pena mínima abstratamente prevista para o roubo, chega-se a 6 anos e
8 meses de reclusão, algo muito próximo aos 7 anos de reclusão previstos para a
hipótese ora indicada como parâmetro de comparação, esta sim marcada por uma
lesão grave ao bem jurídico integridade física.
Esta
ausência de proporcionalidade tende a reforçar o cabimento da aplicação, por
analogia in bonam partem, da causa de aumento da pena com esteio no prazo
definido para a hipótese correlata prevista para o delito de extorsão, qual
seja, de 1/3 até metade (art. 158, §1º, do CP).
Conclusão.
Tendo
por base as considerações e apontamentos supra, concluímos que a Lei 13.654, de
23 de abril de 2018, promoveu a extinção das razões que socorriam o entendimento
sobre o cabimento do agravamento do roubo praticado com emprego de simulacro de
arma. Este fato deve ser levado em conta pelos operadores do direito para o fim
de readequar a punição daqueles que outrora foram condenados com pena majorada
pela consideração da equivalência entre arma de brinquedo e arma de fogo.
De
outra ponta, a ausência de cuidado do legislador com o trato de questão
absolutamente equivalente prevista no crime de extorsão, evento este aliado à
ausência de proporcionalidade dos novos limites para o aumento da pena, tende a
fomentar o nascimento de discussão diversa, a respeito da necessidade da
combinação de leis para considerar a limitação da causa de aumento às hipóteses
da utilização de arma de fogo, aplicando-se, outrossim, os parâmetros punitivos
estabelecidos pela figura da extorsão com emprego de arma, raciocínio que
pensamos ser o mais correto.
Referências Bibliográficas
BITENCOURT,
Cezar Roberto. Mudanças na tipificação dos crimes de furto e roubo. Revista
Consultor Jurídico, 2018.
CANOTILHO,
José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra:
Coimbra Ed., 1982, p. 382.
COSTA
JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal. Vol. 2, São Paulo: Saraiva,
1991, p. 83.
FRANCO,
Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação. 8ª ed., São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 41.
GRECO,
Rogério. Código Penal comentado. 5ª ed., Niterói-RJ: Impetus, 2011, p. 459.
HUNGRIA,
Nelson. Comentários ao Código Penal, v. VII, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.
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Dougla Lima Goular é advogado
criminalista e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro Advocacia Criminal
Rinaldo Pignatari Lagonegro
Júnior é advogado criminalista e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro
Advocacia Criminal
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-jul-15/roubo-arma-brinquedo-fim-discussao-inicio-outra
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