Por
mais que seja de lamentar, o problema do discurso do ódio segue ocupando a
agenda das discussões em torno do alcance da proteção da liberdade de expressão
e as possibilidades de sua (juridicamente) legítima regulação e limitação. Pior
que isso, em se prestando mínima atenção ao que se passa no cenário mundial e
no Brasil, o que se percebe é uma tendência de substancial agravamento, seja no
que diz com o aumento de tais discursos, seja no concernente ao seu impacto em
diversas searas. Além disso, com a ampliação em progressão geométrica do acesso
à internet e às mídias sociais, a facilidade de veicular manifestações de
caráter discriminatório de toda a natureza e mesmo de incitações diretas a atos
de segregação e violência praticamente não tem encontrado mais limites
quantitativos e territoriais.
Em
caráter tristemente ilustrativo, basta referir as manifestações contra os
imigrantes na Europa e nos EUA, reflexo e causa ao mesmo tempo da expansão dos
movimentos sociais e políticos de extrema direita, mas também os discursos
agressivos e mesmo a violência contra grupos que professam determinada
orientação religiosa (em particular o islamismo), discriminação étnico-racial e
homofobia, dentre outros.
Nesse
contexto, é compreensível que a preocupação com os limites da liberdade de
expressão, designadamente da proibição e mesmo criminalização do discurso do
ódio, também aumente e tenha ocupado a política e a esfera judiciária. Uma das
dimensões mais relevantes nesse processo é a compreensão mais ou menos
restritiva da definição jurídica do discurso do ódio, ou seja, quais
manifestações podem e quais não podem ser tidas como assim enquadradas e se — e
até que ponto — podem ser reprimidas.
É
precisamente aqui que as diferenças entre os diversos ordenamentos jurídicos
assumem particular importância, em especial quanto à assim chamada posição
preferencial da liberdade de expressão. Tais diferenças chegam a ser, em alguns
casos, quase que abissais, como é o caso, por exemplo, da Alemanha e dos
Estados Unidos. No primeiro caso, discursos que negam (já pela “mera” negação)
os crimes de guerra e o genocídio praticados e promovidos por causa da
ideologia e da máquina militar e burocrática nazifascista são interditados e
criminalizados, ao passo que nos EUA os mesmos discursos, ademais de outros
similares, são lícitos, pelo menos de acordo com o já antigo entendimento da
Suprema Corte e sua interpretação da Primeira Emenda (1791) à Constituição
Federal de 1787, que proíbe a limitação da liberdade de expressão (free
speech).
Nessa
quadra, nada mais atual para ilustrar e explorar o tema do que a decisão (1 BvR
673/18) de 22 de junho do Tribunal Constitucional Federal (TCF) da Alemanha,
sediado na cidade de Karlsruhe, que entendeu ser compatível com a Lei
Fundamental e a liberdade de expressão nela consagrada e protegida (artigo 5º,
1) a criminalização e consequente punição pela negação do genocídio
nacional-socialista, designadamente, no caso concreto objeto do julgamento (com
a não admissão para decisão) de reclamação constitucional (Verfassungsbeschwerde)
que impugnava decisão que havia condenado a reclamante por ter negado a
ocorrência do extermínio levado a efeito no campo de concentração de
Auschwitz-Birkenau.
Para
o TCF — aqui em apertadíssima síntese —, a difusão consciente de afirmações
fáticas comprovadamente inverídicas não contribui para a formação da opinião no
contexto público e, portanto, não se encontra protegida pela liberdade de
expressão. Ademais disso, a negação do genocídio nacional-socialista extrapola
as fronteiras de um embate de ideias pacífico na esfera pública e indica uma
afetação da paz social.
Assim,
o que se percebe — já que tal decisão adere a uma tradição consolidada ao longo
da trajetória existencial da corte desde início dos anos 1950 — é que, embora
em outros domínios o TCF tenha se mostrado progressivamente mais liberal e
favorável a uma posição fortalecida da liberdade de expressão, em situações
mais sensíveis como a do discurso do ódio e particularmente marcadas pelos atos
praticados no período nacional-socialista, manifestações de tal natureza devem
ser objeto de reprimenda.
Já
nos EUA, como adiantado, se verifica justamente o contrário, porquanto mesmo
manifestações de natureza inequivocamente contra fática, incluindo a negação do
Holocausto, mas também outras como manifestações neonazistas, afirmação da
supremacia branca, queima de cruzes em frente a residências de afrodescendentes
são tidas como protegidas pela Primeira Emenda.
Isso
nos leva aos episódios ocorridos em 13 de maio de 2017 na cidade de
Charlottesville, no estado da Virgínia, onde, por ocasião da manifestação Unite
the Right (una-se a direita), grupos de extrema direita (portando suásticas,
rifles, bandeiras confederadas e antissemitas) protestaram contra a remoção do
monumento do confederado Robert E. Lee, proferindo ataques verbais e mesmo
físicos contra grupos de manifestantes antifascistas que sustentavam tal
medida, embate que resultou em morte, por atropelamento deliberado causado por
integrante das hostes neofascistas, além de ferimentos em 20 pessoas, ademais
de outros atos de violência física e material.
Embora
a decretação do estado de emergência e de ilegalidade da manifestação (pelo seu
caráter violento), bem como da prisão do autor do atropelamento — sem prejuízo
de uma mobilização popular e em setores governamentais e da mídia contra
protestos dessa natureza, marcados pelo ódio racial, violência, discriminação
—, a postura assumida pelo presidente Donald Trump em relação aos eventos de
Charlottesville foi objeto de acirrada polêmica e reação em nível nacional e
internacional.
Note-se
que embora Donald Trump tenha acabado por se pronunciar publicamente contra os
atos e manifestações dos grupos de extrema direita, condenando veementemente
todas formas de violência, intolerância e ódio, o presidente dos EUA não
denunciou especificamente os nacionalistas brancos, neonazistas e outros que
protagonizaram os eventos (violência física e verbal) por ocasião do malfadado
evento, tendo chegado inclusive a responsabilidade a ambos os lados envolvidos.
Além
disso, é imperioso sublinhar que, na esfera internacional, o comitê da ONU que
zela pelo cumprimento da convenção contra o racismo (ratificada pelos EUA com
hierarquia equivalente às leis federais) emitiu uma advertência formal a
respeito do episódio e instou o governo americano à tomada de medidas urgentes
contra a onda de manifestações e violência e ódio racial nos EUA.
No
que diz com o ordenamento jurídico norte-americano, os acontecimentos de
Charlottesvile também reacenderam a querela em torno do entendimento da Suprema
Corte no sentido de interpretar a Primeira Emenda à Constituição como vedando a
interdição e criminalização de manifestações como a da negação do Holocausto e
outras praticadas por grupos extremistas, o que não se estende, evidentemente,
aos atos de violência praticados.
Seguindo
fiel à sua defesa da posição preferencial da liberdade de expressão na
arquitetura constitucional, a Suprema Corte tem dado à figura do discurso do
ódio um sentido restritivo. Nesse sentido, de acordo com o teor de interessante
e atual conferência ministrada no dia 3 de agosto no Programa de Pós-Graduação
em Direito da PUCRS pelo professor Brian Lepard, da Universidade de Nebraska, a
Suprema Corte admite, todavia, serem vedadas manifestações de cunho
eminentemente difamatório e calunioso, bem como a incitação à violência, as
assim chamadas fighting words.
Ainda
de acordo com Brian Lepard, embora a Suprema Corte não esteja impedida de
estabelecer novas hipóteses de limitação da liberdade de expressão, não tem
sido essa a trilha seguida. Uma alteração da jurisprudência e dos seus
precedentes exige a presença de motivos novos e relevantes que a justifiquem,
como poderia (e mesmo deveria) ser o caso da atual proliferação do discurso do
ódio, da violência racial e da discriminação dos imigrantes e outros grupos
sociais.
Se
voltarmos os olhos ao caso do Brasil, percebe-se a existência, no âmbito do
STF, de uma crescente afirmação da posição preferencial da liberdade de
expressão, abarcando, mais recentemente, a liberação de charges e sátiras na
esfera da publicidade e do embate eleitoral, interditando-se, todavia, as assim
chamadas fake news.
Embora
se possa sufragar, em termos gerais, tal entendimento, há aspectos que exigem —
e com urgência — melhor definição e equacionamento. Um deles diz respeito
justamente ao problema do discurso do ódio.
Com
efeito, não se deve olvidar que também manifestações públicas em sede de
campanhas eleitorais, assim como charges, sátiras e outros modos de veicular
opiniões e afirmações de natureza fática, podem envolver um discurso do ódio,
bem como de caráter eminentemente difamatório, calunioso e injurioso.
Coloca-se,
portanto, o delicado problema de distinguir em que casos uma charge ou sátira
implica um discurso do ódio e se nesse caso a regra da sua liberação nas
campanhas eleitorais pode ser excepcionada, sem que se corra o risco de um
esvaziamento da decisão do STF.
A
depender do manejo e compreensão do precedente formado pelo assim chamado caso
Ellwanger, no bojo do qual o STF chancelou condenação na esfera criminal do
autor de obra que negava a ocorrência do Holocausto judeu nacional-socialista,
a tese da posição preferencial poderá vir a ser revisitada e mesmo revista,
ainda que não necessariamente incompatível (a depender de quão preferencial se
considera a liberdade de expressão) com a vedação de pelo menos determinadas
formas mais graves de discurso do ódio.
De
outra parte, mesmo no concernente ao legítimo e necessariamente amplo espaço
para o embate de ideias e críticas no processo democrático-eleitoral, discursos
que se caracterizam por um conteúdo manifestamente hostil e discriminatório em
relação a determinados grupos sociais podem colocar em risco a própria
democracia e — a exemplo de determinadas modalidades de fake news (cujo
conteúdo igualmente deve ser objeto de cuidadosa densificação) — chegar ao
ponto de comprometer a necessária isonomia (igualdade de armas) indispensável a
um legítimo processo eleitoral.
Assim,
o que se espera, ao fim e ao cabo, é que, para o bem da democracia e da própria
liberdade de expressão legítima, o nosso STF, a Justiça Eleitoral, o
Legislativo, mas também a sociedade, estejam vigilantes em relação ao problema
do discurso de ódio.
Ingo Wolfgang Sarlet é
professor titular da Faculdade de Direito da PUC-RS, desembargador no TJ-RS,
doutor e pós-doutor em Direito.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-ago-10/direitos-fundamentais-liberdade-expressao-discurso-odio-karlsruhe-charlottesille
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